A distribuidora Versátil acabou de lançar um pacote de cinema policial japonês e asiático, e que contém alguns filmes que nunca foram lançados aqui no Brasil. Temos o filmes de artes marciais e heroic bloodshed de Hong Kong, suspenses Yakuza dos anos 60, 70 e 90, e o estranho noir japonês do mesmo período. Creio ser a primeira coleção consistente dedicada ao milagre que foi o cinema de Hong Kong dos anos 80, que lançou diretores como John Woo, Ringo Lam, King Hu, Johnnie To, Wong Kar-wai e Edward Yang. Os dois últimos são conhecidos de festivais e do dito cinema de arte, ao passo que o primeiro grupo tomou o cinema comercial ocidental de assalto com filmes de ação espetaculares, cujas influências podem ser sentidas até hoje, nos filmes de Quentin Tarantino e das irmãs Wachowski, além de franquias como John Wick. O cinema Yakuza, por sua vez, representa uma das vertentes mais importantes do Japão ao menos desde o início dos anos 60 até os dias de hoje, e também influenciou profundamente o ocidente.
I.
Eu já falei mais detalhadamente sobre o cinema de Hong Kong, em especial a filmografia de John Woo, em minha análise sobre o cinema de ação contemporâneo. A caixa de três DVDs Cinema Policial Hong Kong contém seis filmes que dão uma bela amostra de como a então ilha autônoma chinesa reinterpretou esse gênero consagrado e tipicamente oitentista.
O Matador (The Killers, 1989), de John Woo, é talvez o meu filme favorito de toda sua obra, ainda que Fervura Máxima (Hard Boiled, 1992), seja sem dúvida a sua obra-prima. Neste ano Woo retornou à sua obra de 1989, refilmando-a com atores ocidentais, e aparentemente com grande sucesso. De todo jeito, aqui temos todos os marcos de sua obra: o ator Chow Yun-Fat, a temática do sacrifício com tonalidades católicas, uma saraivada alucinante de balas, câmera lenta, muito sangue e, claro, pombas brancas.
Johnnie To pertence a uma geração mais tardia que seus colegas, mas começou a dirigir cedo. Boa parte de seus filmes dos anos 80 são comédias, musicais, romances açucarados e dramas de época, mas já no final da década de 80 To explode internacionalmente com The Big Heat (1988). A partir desse filme, To refinaria seu estilo de ação em gêneros como aventura, fantasia épica e histórica, musicais e, claro, filmes de ação e policiais atravessados de temas contemporâneo, como violência, brutalidade policial e corrupção. A plasticidade das cenas de ação, a coreografia precisa e a economia de linguagem são uma de suas marcas como diretor, e que remontam ao próprio cinema de Akira Kurosawa, o cineasta favorito de To. E Kurosawa é justamente o ponto de partida de PTU (idem, 2003), filme tardio do “estilo Hong Kong” e que integra a coleção da Versátil e que pega emprestado algumas temáticas e situações de Cão Danado (Nora inu, 1949), do mestre japonês. O cinema de Hong Kong entrou em crise a partir dos anos 90, por uma sucessiva onda de recessões econômicas na Ásia, problemas de financiamento e distribuição, competição com o ressurgimento do cinema japonês, chinês e o novo cinema coreano, e a própria anexação de Hong Kong ao resto da China em 1997. PTU, assim, é interessante também por ser um produto não só da maturidade de To, mas também como um throwback ao próprio auge do cinema de Hong Kong, a começar pelo uso de locações na cidade murada de Kowloon, um dos símbolos desse cinema.
Ringo Lam talvez seja um dos diretores mais estilosos do período, e diversos pontos de sua obra dialogam diretamente com a de Woo, seu “rival” neste campo. Assim como Woo, o sucesso de Lam também o levou para os Estados Unidos, onde ele dirigiu diversos filmes de ação, como Risco Máximo (Maximum Risk, 1996), com Jean Claude Van Damme, que também atuou no primeiro longa americano de Woo, O Alvo (Hard Target, 1993). Ambos trabalharam filmes na chave do heroic bloodshed, mesclando melodrama com ação sangrenta, além da própria temática de honra. No entanto, o cinema de Lam é no geral mais cínico e niilista que o de Woo, e o diretor parece ter prazer especial em mostrar as entranhas do submundo. É o caso de Perigo Extremo (Lung foo fung wan, 1987), que integra a coleção, e é um importante precursor de Cães de aluguel (Reservoir Dogs, 1992, de Quentin Tarantino).
O grande mestre do cinema de artes marciais de Hong Kong é sem dúvida nenhuma King Hu, que bebeu na fonte do wuxia e dos filmes de Bruce Lee para compor épicos históricos sobre o passado chinês. Não fez filmes policiais, no entanto, e é por isso que os organizadores da coleção da Versátil cobriram essa lacuna com Na Beira do Abismo, (Zhi fa Xian Feng, 1986), de Corey Yuen, que depois se tornaria mundialmente famoso como coreógrafo de The Matrix (Matrix, 1999).
A coleção é recheada com dois filmes de Benny Chan e Johnny Mak. Apesar do primeiro ser famoso por suas parceiras com Jackie Chan (sem relação) e Donnie Yen, o filme que integra a coleção, Um Momento de Romance (Tin Joek You Ching, 1990), é representativo do diretor de mostrar o mundo policial de Hong Kong. Já O Longo Braço da Lei (Sang Gong kei Bing, 1984) é o filme mais famoso de Mak, um cineasta menor dentro do ecossistema que se desenvolveu em Hong Kong no período, mas cujo filme ajudou a definir o cinema da ilha nos anos 80.
Esse cinema é importante por ter sido feito numa pequena ilha, cercada por tensões diplomáticas e que no curto espaço de dez anos conseguiu montar um verdadeiro “planeta” de cinema, nas palavras do crítico David Bordwell, que escreveu um livro inteiro dedicado a ele. A proliferação de companhias produtoras, distribuidoras e redes de financiamento, somada ao fato de que diversos diretores, produtores e atores despontaram nesse período, conquistando e influenciando o mundo inteiro, é testamento de sua força criativa e artística. Hoje, quando falamos de “cinema Hong Kong” ou “estilo Hong Kong de ação” imediatamente temos em mente toda uma gramática de ação, aventura e artes marciais no cinema. Além disso, fortemente nacionalista, os filmes de Hong Kong conseguiram bater e derrotar os poderosos cinemas japonês, chinês e americanos, que tomavam mais de 70% das telas de cinema do pequeno protetorado - e fez isso sem depender de políticas públicas de incentivo e protecionismo. É, para todos os efeitos, um pequeno milagre na história do cinema mundial.
II.
Num primeiro momento, pode parecer que o cinema yakuza é meramente a variante japonesa do cinema de gângster, tal como o vemos nos Estados Unidos, por exemplo. Na verdade, é um gênero narrativo completamente diferente. O filme de gângster americano surge nos anos 1930, na esteira da Grande Depressão, e visa problematizar o sonho americano, a desilusão da mobilidade social e capitalizar sobre o noticiário sensacionalista que cobria os feitos de tipos como Al Capone e John Dillinger. O yakuza-eiga é completamente diferente.
Em primeiro lugar, o gênero surge essencialmente em 1963, quando o estúdio Toei percebeu a oportunidade de capitalizar sobre essa temática ao perceber como os filmes chanbara - de samurai - estavam entrando em decadência. O yakuza surge ligado a esse passado feudal, portanto, e se tivermos de compará-lo a um gênero ocidental, seria o faroeste, e não o gângster. Como Paul Schrader notou, o yakuza-eiga é preocupado com a moralidade japonesa, e não com narrativas tópicas; seu escopo é atemporal, e não contemporâneo; ele prefere a mitificação, e não o realismo social. Mas o yakuza não é simplesmente um samurai fora da lei que trocou a katana por um revólver (ainda que essa seja uma imagem recorrente nos filmes dos anos 60): o gênero em grande parte tenta lidar com as consequências da Segunda Guerra Mundial e com a identidade cultural japonesa após a derrota no conflito e a ocupação americana. O yakuza-eiga, assim, articula um conflito ambivalente, por vezes apocalíptico, entre passado e presente, ao mesmo tempo em que tenta fazer sentido de conceitos como honra, sacrifício e dever.
Os filmes começaram a ser produzidos nos anos 60, e seguiam um padrão B de produção: orçamentos limitados, roteiros estabelecidos em fórmulas e muitas cenas internas, reservando uma ou outra sequência mais complexa (geralmente uma batalha) em exteriores. Como a lógica era a de cortar custos e maximizar lucros, muitos filmes yakuza, não obstante se passassem no presente, reutilizam sets de chanbaras.
O yakuza-eiga lida com dois temas: Giri (honra) e Ninjo (Humanidade). O chanbara só tinha um tema: giri-ninjo. O código do samurai feudal unia o seu senso de honra ao dever com a humanidade, isto é, o seu impulso de fazer o certo para os seus irmãos, independentemente de sua própria vida ou segurança. No contexto feudal, e especificamente do samurai, é impossível separar giri de ninjo, e ambos se confundem, inclusive. Mas, como Schrader nota, esse código não fazia muito sentido quando aplicado ao contexto do gângster moderno, isto é, o yakuza, e por isso mesmo estes filmes separam essa temática. Giri e ninjo são valores siameses, mas que se tornam conflitantes no contexto da yakuza. Assim, um herói yakuza pode ter honra mas não humanidade, e vice-versa. Sendo um criminoso - e não meramente um fora da lei -, o gângster enfrenta um dilaceramento existencial de sua alma.
Essa divisão inclusive influenciou a política do período. Estudantes radicais de esquerda assistiam assiduamente a filmes yakuza como forma de se preparem para protestos e confrontos com a polícia; para eles, o senso de humanidade (ninjo) era o elemento mais importante desses filmes. Já os radicais de direita, por sua vez, faziam a exata mesma coisa que os de esquerda, mas tomando o fator honra (giri) acima de todos os outros. Um dos grandes defensores do yakuza-eiga, afinal, foi ninguém menos que Yukio Mishima, que chegou inclusive a roteirizar diversos filmes do gênero. O pêndulo político do giri-ninjo leva tanto a um radicalismo marxista, presente em grupos de estudantes radicais como o Zenkyoto, quando proto-fascista, como é o caso da Força de Auto-Defesa de Mishima. Ou seja, os dois grupos ideológicos derivavam inspiração espiritual destes filmes, vendo o sacrifício de sua honra e dever em nome da humanidade, ou o oposto, o sacrifício de sua própria humanidade em defesa da honra e do dever.
Esse foco exacerbado na moralidade do personagem principal capta muito bem o próprio Japão do pós-guerra, que via sua cultura ser hibridizado com valores exógenos e um novo capitalismo, de inspiração americana. O herói desses filmes não tem a segurança moral do samurai, como Schrader nota, e logo se vê enredado em uma teia ambivalente de interesses conflitantes, e ele oscila entre o giri-ninjo o tempo todo. Os enredos mostram essa oscilação, e cada vez mais o protagonista percebe que os dois valores são incompatíveis, e só podem ser resolvidos em batalhas finais sangrentas.
A típica trama de uma yakuza-eiga começa com o nosso herói saindo da prisão. Descobrimos que ele foi para a prisão como forma de barrar investigações sobre o seu clã, poupando-os não só da prisão, mas também salvando a própria existência do grupo. Ao retornar para casa e o clã, o herói percebe que as coisas não são mais as mesmas. Na verdade, que elas pioraram. Desde a sua ausência, o controle do clã foi assumido por um oyabun (o chefão, il padrino, se assim quiser) maligno e perverso. Seus sendo de giri o obriga a servir o oyabun, independente de suas ressalvas morais. Dito isso, o herói ainda assim tenta mudar as coisas de dentro, diminuir de alguma forma a maldade de seu líder, mas sempre sem sucesso. Assim, conforme a trama avança, o giri obriga o nosso herói a cometer diversos atos de desumanidade: ele oprime civis inocentes, rejeita o amor de uma mulher e pode até mesmo agredir e matar um homem inocente - e bom. Seus antigos companheiros rejeitam sua desumanidade - antes da prisão, nosso herói não fazia essas atrocidades.
Assim, gradualmente, vemos esses valores entrarem em conflito. Do lado giri, da honra e dever, temos: obediência ao oyabun, obrigação e deveres ao clã (kyodai jinji), humildade, estoicismo e a disposição de morrer pelo clã. Do lado do ninjo, temos: consciência social, simpatia pelos oprimidos, amor à esposa, à namorada, aos amigos e familiares, humildade, estoicismo e a disposição de morrer pela humanidade. Esse é um ponto de mitificação desses primeiros yakuza-eiga, ou seja, os heróis encarnam perfeitamente as duas coisas. Assim, esses filmes são muito mais um conflito filosófico de ideias e estados de espírito do que qualquer outra coisa (ainda que seja embalados por cenas de ação e violência, o que os tornaram extremamente populares no Japão).
Assim, o filme termina com o herói yakuza abandonando seu giri e indo confrontar o oyabun, para defender sua ninjo. O que segue é uma batalha sangrenta, e onde o herói geralmente empunha uma espada e mostra as famosas tatuagens que cobrem toda as suas costas. Aqui ele difere do chanbara: nele, o samurai necessariamente cometeria suicídio antes de matar o seu mestre, pois o giri-ninjo era uma coisa só. No mundo do pós-guerra, no entanto, com esses valores separados, o herói yakuza é livre para confrontar e matar o oyabun. E o yakuza-eiga termina ou com o herói morrendo, ou livre para recomeçar sua vida em outro lugar.
Ao longo dessa rápida exposição eu fiz referências a um ensaio de Paul Schrader, “Yakuza-eiga: a Primer”, publicado na edição de janeiro-fevereiro de 1974 na revista Film Comment, e que até hoje continua sendo um dos melhores estudos já feitos sobre o gênero. Schrader, como sabemos, não só estudou a obra de Mishima para o seu filme, mas também roteirizou o longa Operação Yakuza (The Yakuza, 1974), de Sydney Pollack, e que estrelava o astro Ken Takakura, que se tornou célebre justamente nesses filmes (posteriormente, em 1989, Takakura também estrelaria o buddy cop neo-noir Chuva Negra [Black Rain], de Ridley Scott). Para isso, Schrader passou meses estudando e assistindo os diversos filmes yakuza-eiga produzidos nos anos 60, quando o gênero se formava nas mãos de diretores como Hideo Gosha, Masahiro Shinoda e Kiyoshi Saeki. É importante ler o ensaio de Schrader (ele é facilmente encontrável em PDF na internet), pois ele lista e enumera as principais características, cenas e estilos que atravessam o primeiro ciclo de yakuza-eigas. Mas é importante citarmos a sua conclusão em extensão:
O importante a lembrar sobre formas de gênero rígidas, como o yakuza-eiga, é que esses filmes não são necessariamente obras de arte individuais, mas variações de uma metáfora social tácita complexa, um acordo secreto entre os artistas e o público de um determinado período. Quando forças sociais massivas estão em transição, formas de gênero rígidas frequentemente surgem para ajudar os indivíduos a fazer essa transição. Os americanos criaram o faroeste para codificar a moralidade da fronteira; eles criaram o filme de gângster para lidar com as novas forças sociais da cidade. Se a metáfora social original for válida, o gênero resultante sobreviverá por muito tempo aos artistas individuais que o criaram – pode até sobreviver à época que o fez evoluir. Na cultura atual, orientada para a personalidade, as formas rígidas de gênero são o mais próximo que temos de uma "arte sem nomes" popular.
(…)
A estrutura social do Japão, de fato, foi severamente abalada nos últimos anos. A ocidentalização, a rápida ascensão do capitalismo japonês e o surgimento do Japão como uma superpotência econômica desafiaram ainda mais aquelas virtudes tradicionais japonesas que conseguiram sobreviver à guerra, a MacArthur e à Ocupação. O yakuza-eiga é um contrato social popular entre os artistas e o público do Japão para reavaliar e reestruturar essas virtudes tradicionais. O filme de samurai já não cumpria mais sua função de intermediário; novos personagens, temas e convenções precisavam ser criados. Assim como os americanos do início do século XX precisavam do faroeste, os japoneses contemporâneos precisam de um gênero que possa servir como um campo de batalha moral – um gênero no qual as virtudes tradicionais de dever e humanidade possam lutar até a morte.
A Versátil já lançou cinco volumes de sua coleção Cinema Yakuza, dando uma média de trinta filmes no total que tentam abraçar as diversas fases e períodos do yakuza-eiga. Vale lembrar que, só do período inicial do gênero, isto é, de 1963 a 1971, grosso modo, foram lançados mais de mil filmes do tipo. No entanto, não vou afirmar que a Versátil um dia não dê um jeito de compilar tudo isso, tendo em vista que eles possuem coleções dedicadas aos gêneros Faroeste e Giallo que já passaram de quinze volumes, ao passo que sua célebre série Noir já tem quase trinta volumes e diversas sub-séries com outros tantos volumes. Dito isso, o volume cinco é o que acabou de sair, depois de um aparente hiato na coleção.
Não vou listar todos os filmes aqui, mas somente alguns do marcos dela. Contos Brutais de Honra (Showa Zankyo Den, 1965), de Kiyoshi Saeki, presente no Volume 1, talvez seja um dos mais emblemáticos do modo clássico do yakuza-eiga. A trama gira em torno de um clã que se reorganiza nas ruínas do pós-guerra, estruturando um mercado negro, e Ken Takakrua e Rio Ikebe representando duas gerações de homens japoneses, inclusive pelo fato de que o primeiro prefere empunhar uma katana, ao passo que o segundo, um revólver. Um elemento latente desses filmes é uma vaga tensão homoeróticas entre os protagonistas masculinos, e o filme de Saeki capta muito bem esse subtexto. Os outros volumes da coleção contém filmes desse modo clássico, de Hideo Gosha, Tai Kato (o primeiro grande diretor associado ao gênero), Kosaku Yamashita e Masahiro Shinoda.
O Volume 2 talvez seja o mais importante, pois apresenta os cinco filmes que compõe a saga Os documentos da Yakuza, também conhecidos como Batalhas sem Honra e Humanidade (Battles Without Honor or Humanity). Tais filmes foram dirigidos por Kinji Fukasaku, um dos diretores mais importantes da “segunda era de ouro” do cinema japonês, ao lado de Nagisa Oshima e Shohei Imamura. Rompendo quase que completamente com os ditames clássicos do gênero, Fukasaku se uniu ao jornalista Kōichi Iiboshi para criar uma saga policial da Yakuza. Iiboshi era um jornalista que passou anos escrevendo uma série de reportagens sobre essas organizações criminosas e o submundo do Japão, e descrevia com brutal clareza sobre a verdadeira natureza desses grupos. Fukasaku, por sua vez, almejava tirar a pátina de mitologização sobre esses filmes. Inspirado pelos filmes de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e, principalmente, William Friedkin, Fukasaku empregou uma estética documental crua, jornalística, para seus filmes de yakuza. Começando com Guerra de gangues em Okinawa (Bakuto Gaijin Butai, 1971), e com o astro Koji Tsuruta, Fukasaku logo empreendeu sua master work. Os cinco filmes da saga Batalha sem Honra e Humanidade acompanham a trajetória do ex-soldado Shozo Hirono (Bunta Sagarawa, astro do período) pelo submundo do Japão, ascendendo no clã da Yakuza e em conflito com a polícia e outros grupos. O foco de Fukasaku, como o próprio título aponta, é mostrar que o conflito giri-ninjo não passava de uma idealização artificial: os yakuza não passam de bandidos violentos, estupradores e escroques que fazem de tudo para ganhar dinheiro e poder. Não há nada de giri, ninjo ou o elo com os samurais do passado.
Nos anos 60 e 70, o Japão viveu um verdadeiro milagre econômico. Não só tivemos o enriquecimento da classe média e a melhora no padrão de vida, com acesso a bens de consumo, mas o país começou a empreender uma revolução tecnológica e estrutural radical, refazendo sua malha viária, arquitetônica e urbana. O Japão como superpotência do futuro começou a ser desenhado nesses anos de prosperidade - que só seriam interrompidos com as bolhas econômicas dos anos 90. De todo jeito, os filmes de Fukasaku são muito interessantes por retratarem uma parcela da juventude que foi excluída desse boom de prosperidade. O gângster de Bunta Sagarawa representa todo o rancor e ímpeto raivoso daquele que foi deixado de fora.
A estética nua e crua de Fukasaku foi polêmica, sem dúvida, e mesmo diretores consagrados como Hideo Gosha e Tai Kato se opuseram a ela. O fato é que foram derrotados, e o estilo documental de Fukasaku, além de seu tratamento cínico e brutal, mudaram irremediavelmente o gênero, tornando-se um paradigma que só seria superado por uma nova geração de cineastas nos anos 90, como Takashi Miike e Takeshi Kitano. Fukasaku faria ainda uma nova trilogia de com Bunta Sagarawa, retomando seu personagem e apenas vagamente conectada à saga original. Dois destes filmes estão presentes nos Volumes 3 e 4 da coleção.
Um outro filme importante de Fukasaku é Alugados pelo Inferno (Jingi no hakaba, 1975), presente no Volume 4. Trata-se da cinebiografia de um dos mais notórios yakuza do Japão, Rikio (Tetsuya Watari). Rikio é um completo de um psicopata, violento e sexualmente perverso. Mas o filme, apesar de ser indicativo do jitsoroku-eiga (“filme documental baseado em fatos reais”), ainda assim ele é restritivo pela própria época em que foi feito. É nisso que entra O Cemitério da Honra (Shin Jingi no hakaba, 2002), de Takashi Miike, uma refilmagem do longa de Fukasaku. Talvez refilmagem não seja o termo correto, pois ele é uma nova versão da mesma história real. Mas, feito por um cineasta transgressivo e radical como Miike, que não mede esforços para mostrar a brutalidade crua de seus personagens, o filme é um perturbador retrato da podridão da natureza humana.
Apesar do sucesso paradigmático de Fukasaku, alguns mestres antigos do gênero prestaram sua despedida ao formato clássico. É o caso de Os Lobos (Sussho Iwai, 1971), um yakuza “crepuscular” que faz uma transição melancólica entre os dois estilos. O filme está no Volume 1.
Sobre os cineastas dos anos 90, falamos de Miike, mas o Volume 5 contém um dos meus favoritos: Cão na chuva (Gokudo kuroshakai, 1997). Trata-se de um filme melancólico, brutal e desesperançoso, que acompanha um yakuza em exílio em Taiwan. Interpretado de maneira minimalista por Sho Aikawa, regular de Miike, o filme acompanha a sua trajetória, enquanto ele é perseguido por assassinos nas favelas de Taiwan, acompanhando de seu filho pequeno e uma jovem prostituta.
Cão na chuva é o segundo filme de uma trilogia temática de Miike, Black Society. Os filmes abordam a experiência japonesa dos anos 90 sob o olhar do exílio, tanto físico quanto existencial. Miike já era um diretor experiente, com mais de vinte filmes no currículo, mas ele emergiu do V-Cinema, ou cinema direto para vídeo. Essa trilogia representa seus primeiros filmes que foram concebidos tendo a exibição em salas do cinema em mente. O leitor talvez conheça Miike por sua reputação em filmes de horror extremo e bizarro, mas estes filmes policiais são obras sombrias, melancólicas e dramáticas - e sim, ultra-violentas - sobre o submundo do Japão.
Miike treinou sob Shohei Imamura, um diretor que não só venceu duas vezes a Palma de Ouro em Cannes (mais que Akira Kurosawa, portanto), mas um que era especialmente interessado em retratar e confrontar os tabus culturais da sociedade japonesa. Miike não é diferente, e ele trata da xenofobia e da impossibilidade de estrangeiros se assimilarem na sociedade japonesa. O primeiro filme, Shinjuku Triad Society (Shinjuku Kuroshakai: Chaina Mafia Sensō, 1995), acompanha um policial que é filho de japoneses e taiwaneses, que investiga uma célula da Tríade, a máfia chinesa, operando no coração de Tóquio. O líder chinês, além de pedófilo homossexual, cria uma rede de tráfico de órgãos de crianças. A experiência de cinismo diante do capitalismo japonês, somada à própria perversão e violência, e a incapacidade de assimilação, tornam o filme um longo lamento sobre o beco sem saída cultural que é o Japão da era da globalização. O terceiro filme, Ley Lines (Nihon Kuroshakai Rei Rainzu, 1999), acompanha um grupo de jovens que tentam a todo custo fugir para o Brasil para escaparem do preconceito que sofrem nas províncias. Para isso, recorrem a um chefe da máfia chinesa, que passa a persegui-los. Trata-se de uma tragédia, nada mais, nada menos do que isso, onde as linhas de Ley convergem como uma teia de aranha, prendendo os personagens em um confronto impossível. Esses três filmes se inserem numa tradição do cinema dos anos 90, isto é, a do world cinema, que capta os efeitos da globalização. Podemos situá-los ao lado dos filmes de Emir Kusturica, Ang Lee, Walter Salles, Lucrécia Martel e o Dogma 95 (o outro cineasta do período é Takeshi Kitano, que possui dois filmes na coleção. Já falei sobre ele anteriormente aqui em No Escuro, e falei especificamente sobre dois filmes que integram a coleção, então, não vou abordá-lo novamente).
Outro cineasta que se faz presente é Seijun Suzuki, sem sombra de dúvidas um dos grandes mestres do cinema japonês do pós-guerra, e um estilista radical e inclassificável. Discuti-lo aqui é impossível, e apesar dos seus filmes lidarem com a temática yakuza, e terem sido feitos seguindo os ditames industriais dos estúdios japoneses, eles são muito atípicos para serem discutidos em detalhe. Quem sabe em outra ocasião. Só digo uma coisa: eu invejo aqueles que poderão assistir pela primeira vez O Vagabundo de Kanto (Kanto mushuku, 1963) e A Marca do Assassino (Koroshi no Rakuin, 1967). Suzuki é um cineasta cuja influência nos trabalhos de Tarantino e Nicolas Winding Refn é incalculável.
III.
Por fim, temos o box Filme Noir: Noir Japonês. São seis filmes, todos da década de 60, e que resvalam nestes temas e assuntos que discutimos até aqui. Eu, de minha parte, confesso que sou muito pouco versado nessa variante do noir no Japão. Todos os filmes da coleção são inéditos para mim. O pouco de contato que tive com noir japonês desse período foi através da obra de um dos cineastas japoneses mais interessantes de todos os tempos: Yasuzo Masamura. Gigantes e Brinquedos (Kyojin to gangu, 1958) é uma comédia satírica de humor negro, mostrando a batalha violenta - e absurda - de duas grandes companhias fabricantes de doces no Japão. Nessa comédia ácida e niilista, Masamura explora o surgimento do capitalismo japonês, bastante informado por valores americanos, e como esses valores começam a distorcer e modificar a própria cultura japonesa. Essa investigação continuaria nos dois filmes seguintes de Masamura, os thrillers paranóicos Black Test Car (Kuro no shisō-sha, 1962) e The Black Report (1963). O primeiro é uma trama conspiratória de espionagem industrial, onde montadoras japonesas tentam roubar os planos para o protótipo de um carro (o filme antecipa todo o imbróglio entre Carlos Ghosn e a Nissan), com direito a assassinatos. Já o segundo é um filme de tribunal, que também tem por assunto o novo capitalismo japonês. Filmados num preto-e-branco expressionista, tais filmes tem uma atmosfera sufocante e alucinatória, que Masamura continuaria no thriller de vingança feminista Irezumi (idem, 1968), que adapta o famoso romance de Junichiro Tanizaki. Por fim, temos o thriller de horror psicológico e policial Blind Beast (Mōjū, 1969), adaptado de Edogawa Rampo, e que acompanha a trajetória de um escultor insano que mantém uma mulher em cativeiro em seu ateliê. O filme é de certa forma uma versão japonesa do romance O Colecionador (1961), de John Fowles, que também foi adaptado ao cinema com sucesso por William Wyler, em 1965.
Eu já sabia da existência de Masamura tem algum tempo, mas graças à Arrow Video, que relançou seus filmes em edições primorosas em BluRay, eu pude enfim assistir o seu trabalho nos últimos anos. Black Test Car, e Black Report, são tidos como os criadores do noir japonês - que eles designam como “preto” (“Black”). É comum que subgêneros japoneses sejam codificados com cores. Assim, por exemplo, os filmes eróticos que dominaram o cinema japonês dos anos 60 e 70 (pensemos numa espécie de pornochanchada à moda japonesa) são chamados de pinku-eiga, ou pink films - “filmes rosa”. Assim, a trilogia de Takashi Miike, Black Society, é noir (ou neo-noir). Eu sempre tive curiosidade para explorar esse gênero diminuto e que até os anos 90 fora bem pouco explorado no Japão. Agora, pelo menos, com essa caixa da Versátil, enfim poderei saciar a curiosidade.
Esqueci de colocar os links no texto, mas faço referências a estes ensaios:
1) O cinema de ação contemporâneo: https://luisvillaverde.substack.com/p/no-limite-c59
2) O cinema de John Woo: https://luisvillaverde.substack.com/p/uma-rajada-de-balas
3) Filmes de artes marciais: https://luisvillaverde.substack.com/p/bang-bang
4) O cinema de Takeshi Kitano: https://luisvillaverde.substack.com/p/ciclos-de-vida-e-morte