Construir uma cena de ação é algo extremamente trabalhoso e técnico. Requer fotografia especializada, edição especializada, técnicos que vão de dublês, a coreógrafos, a efeitistas, quando não armeiros e especialistas em artes marciais. Filma-se pouco a pouco e se reconstrói tudo em montagem, onde o som e foley é tão essencial quanto os cortes para se contar essa cena. Ocorre que o cinema americano, em especial o dos últimos anos, ficou preso em tentar emular o estilo de Paul Greengrass, com seu uso frenético de comer na mão e cortes secos rápidos e velozes, onde Greengrass, inclusive, corte e omite frames para deixar a ação ainda mais veloz. O problema é que isso gerou uma legião de imitadores de menor talento - entre eles Pierre Morel, Louis Letterier e Olivier Megaton (todos discípulos de Luc Besson, que é, este sim, um grande diretor de ação) que copiem o estilo de Greengrass da pior maneira possível, gerando filmes truncados onde a ação é virtualmente incompreensível. Algo semelhante ocorreu com Marc Forster em James Bond 007 Quantum of Solace (idem, 2008), a continuação de Cassino Royale (Casino Royale, 2006, de Martin Campbell) e com o próprio Nolan. As cenas de luta em Batman Begins (idem, 2005) são mal-enquadradas e editadas, e por vezes é difícil dizer o que está acontecendo.
Soa pretensioso, mas é importante respeitar a continuidade de um plano para o outro e, principalmente, a geografia da cena. Diretores europeus e, principalmente, asiáticos, tendem a preferir uma câmera mais plástica, fixa em tripés ou com movimentos mais estabilizados de dolly ou steadycam, dando espaço para o ator e editor. Greengrass e seus imitadores fazem muito uso de planos fechados e de detalhes, ao passo que asiáticos usam planos mais abertos. É irônico isso, quando pensamos que os americanos inventaram, bem, o plano americano por conta das cenas de perseguição e duelos em westerns, mas parecem ter desaprendido isso nos últimos anos.
Para se entender o que quero dizer, basta ver uma cena como a do galpão no primeiro Robocop: o policial do futuro (Robocop, 1987, de Paul Verhoeven). O que temos é basicamente o Robocop (Peter Weller) avançando em linha reta, dentro de um galpão, disparando contra bandidos que o atacam de todas as direções imagináveis. Por ser indestrutível, Robocop simplesmente caminha e dispara e, no frigir dos ovos, a sequência é basicamente plano e contraplano. Verhoeven, no entanto, situa essa sequência em um momento pivotal da história, onde Robocop enfim identifica Clarence Boddicker (Kurtwood Smith) como sendo aquele o responsável por tê-lo “assassinado”. A catárse da cena se dá justamente por ela ser uma fantasia de poder, onde Robocop facilmente elimina quase que toda a gangue de Boddicker, e ainda por cima o apreende após uma surra brutal. A simplicidade da cena é justamente a sua força.
Como um xerife entrando no reduto dos banditos, Verhoeven enquadra o Robocop da forma mais heróica possível. A posição firme e destemida do ciborgue se contrapõe ao exército de bandidos que ele enfrentará na sequência.
Em um POV do Robocop, tanto ele quanto nós mapeamos a geografia do galpão e a posição dos bandidos.
Verhoeven retoma o primeiro enquadramento, e mostra Robocop avançando para dentro do galpão, entrando em posição de ataque.
Os bandidos se posicionam e começam a atacar Robocop. Verhoeven usa esses planos para situar alguns dos bandidos principais da quadrilha de Boddicker, e onde eles estão no galpão (alguns estão em passarelas, outros no térreo).
Esse enquadramento é interessante pois, a princípio, é um plano sem graça. Um plano aberto, de conjunto, com o personagem no centro do quadro, corpo virado para nós. Um tableaux de cinema mudo, praticamente. Mas o plano reforça a fraqueza e inépcia dos disparos dos bandidos. Seus ataques são absolutamente ineficazes.
Mais ataques, onde Verhoeven não só continua enfatizando a inutilidade dos ataques, como também faz um detalhe do peito de Robocop. O peitoral, mesmo sendo um chassi metálico, é uma clássica imagem de filme de super-herói: no caso, remonta à imagem do peito do Superman ricocheteando balas.
Plano de transição, onde a câmera segue Robocop, que faz uma pequena curva para se alinhar ao eixo (de câmera) aonde os bandidos estão posicionados. A câmera continua em contra-plongée, enfatizando o poder de Robocop.
Quando Robocop mata o primeiro bandido, não só temos uma catártica explosão de sangue, mas Verhoeven complementa o disparo enquadrando o bandido num plongée, ao contrário do que fez com Robocop nos planos anteriores. O resultado é diminuir o tamanho dos bandidos em relação ao herói. Mas há outro uso aqui: o eixo. Robocop avança da direita para a esquerda, em relação aos bandidos, que estão na esquerda e atacam para a direita. Apesar de por vezes mudar o eixo ao longo da cena, a geografia de toda a cena foi plenamente estabelecida por Verhoeven nesses planos iniciais.
E assim a cena prossegue, até o seu final, com Robocop avançando praticamente em linha reta, cruzando um cenário que Verhoeven cuidou de estabelecer para nós em cenas anteriores.
Enquanto isso, quando vamos para outra fantasia de poder, como é o caso dos filmes da trilogia Busca implacável (Taken, 2008/12/14), até mesmo as mais simples sequências de luta são filmadas com a câmera balançando freneticamente e em uma profusão absurda de cortes. Não há inteligência alguma, e a impressão que dá é que os realizadores entupiram essas sequências de planos e takes com medo que o espectador fique entediado. Bem, o resultado é exatamente esse. O cúmulo disso é uma sequência em Busca Implacável 3 onde Bryan Mills (Liam Neeson), fugindo da polícia, escala uma grade em um beco. O diretor Megaton deve ter usado mais de 8 setup diferentes de câmera para filmar essa ação, e fez questão de usar todos os enquadramentos na sequência. É risível.
O que quero dizer é que uma sequência de ação, tal como um número musical, precisa ter elegância. Mesmo numa cena caótica e sangrenta, é necessário que haja uma construção delicada, com pausas dramáticas. É por isso que não gosto dos filmes de Baz Luhrmann, em especial os seus musicais, como Moulin Rouge! (idem, 2001). Tem uma sequência de tango neste filme que é virtualmente incompreensível, e toda a sensualidade da cena é destruída por uma profusão febril de cortes e planos fechados. Curioso, sempre acreditei que a graça de um número musical, em especial um de dança, fosse justamente a possibilidade de vermos os dançarinos mostrando seus talentos.
O que diretores como Steven Spielberg - e, antes dele, Stanley Donen e Vicente Minelli - sabem é que a câmera precisa construir o ritmo junto com os dançarinos. A câmera tem que ser motivada, passando ao espectador a energia que a cena precisa ter. Não adianta também simplesmente deixar a câmera em um tripé, num plano aberto (ainda que isso às vezes funcione; Park Chan-wook que o diga). A inovação tecnológica, com câmeras e lentes mais leves, que permitem movimentos mais envolvidos de dolly, grua e steadycam deveria libertar os cineastas a experimentarem mais.
Por isso mesmo que, entre cada geração de diretor de ação americano, o gênero foi revitalizado por outsiders. O faroeste, por exemplo, foi revitalizado por tipos como Sergio Leone, na Itália, antes de ser absorvido por mentes como Peckinpah ou Walter Hill. Nos anos 80, seria Tsui Hark, Ringo Lam e John Woo a mostrar how it’s done. Mas ainda não é hora de falarmos deles. Vamos ficar no presente.
O galês Gareth Evans basicamente redefiniu o cinema de artes marciais com sua duologia Operação Invasão (The Raid: Redemption, 2011) e The Raid 2 (idem, 2014). Com uma trama hard boiled que pinta uma Indonésia apodrecida, dominada por gangues, crime organizado, políticos inescrupulosos e policiais corruptos, resta somente o código pessoal e a honra de policiais como Yuda (Iko Uwais), que enfrenta sozinho, a socos, tiros e voadoras, toda essa cadeia alimentar sanguinária. Os dois filmes de Evans podem facilmente figurar no cânone do cinema de ação e artes marciais como clássicos modernos, não fosse pelo fato que o seu diretor - formado em coreografia e dança - tivesse avançado por paragens ainda mais inusitadas. Apóstolo (Apostle, 2018), produção exclusiva da Netflix, traz uma mistura de ação de combate físico com horror sobrenatural. Com a série Gangs of London (2 temporadas até o momento), Evans retoma o universo policial de The Raid, mas em um contexto londrino.
De certa forma, o sucesso de Evans marca, na verdade, um retorno. Ao quê? Aos filmes de artes marciais de Bruce Lee. É difícil de dizer resumidamente o impacto que Lee teve na cultura pop como um todo, mas é justo reconhecer que ele talvez seja o astro chinês - quiçá asiático - mais famoso da história. Isso se dá não somente pelo seu talento extraordinário nas artes marciais e na coreografia de cenas, ou por conta de seu carisma natural, mas também pelo fato de que seus filmes inauguraram um novo tipo de filme de ação.
Se é verdade que filmes de ninjas e artes marciais já vinham se tornando populares e constituindo um gênero em si dentro do cinema de ação, a verdade é que Lee também construiu filmes que são únicos, com uma narrativa e um contexto próprio. O Dragão Chinês (The Big Boss, 1971, de Lo Wei), O Vôo do Dragão (The Way of the Dragon, 1971, escrito e dirigido por Bruce Lee), A Fúria do Dragão (The Fist of the Dragon, 1971, de Lo Wei), Operação Dragão (Enter The Dragon, 1973, de Robert Clouse) e O Jogo do Dragão (The Game of Death, 1978, de Robert Clouse e Bruce Lee) ajudaram a consolidar Lee como uma figura global, reconhecida no mundo inteiro. Seus filmes foram sucessos estrondosos de bilheteria não só na China, mas no resto do mundo, precipitando uma onda de imitadores. Não só ajudou a consolidar o filme de artes marciais, mas também a figura do ninja (seu aprendiz, Chuck Norris, capitalizaria sobre esse personagem em seus filmes americanos). Como fenômeno cultural, a primazia de Lee precipitou uma febre de academias e jovens se inscrevendo nas mesmas, algo que podemos inclusive perceber em filmes como os da franquia Karate Kid. Sua morte inesperada em 1973, aos 32 anos de idade, ajudou a consolidar a sua imagem mítica.
Os personagens de Lee, em seus filmes feitos entre 1971 e 1973 (co-produções americanas), são um misto de James Bond com a sua figura de ninja. Onde Bond usa bugigangas e a epônima Walther PPK, Bruce Lee usa suas acrobacias e golpes. Mas, ao contrário do que víamos nos filmes do agente inglês do período (as fases de Sean Connery e Roger Moore), os filmes de Bruce Lee eram muito mais viscerais e brutais. Não há nada limpinho ou certinho nesses filmes, nenhuma higienização da violência. Além disso, a comparação entre Lee e Bond não é por menos: seus filmes lidam com tramas internacionais e atacam de frente questões como colonialismo, imperialismo e nacionalismo chinês, mas com um ótica, obviamente, oriental - de certa forma, revertendo o que os filmes de Bond faziam.
Então, o que havia na coreografia de luta de Bruce Lee que permitiu que seus filmes viajassem tão amplamente e atraíssem públicos tão diversos? Como muitas pessoas apontaram, parece resumir-se à palavra real. As lutas de Bruce Lee parecem realistas de uma forma que muitos outros (ainda) não parecem. Isto talvez seja menos uma questão de questões técnicas ou bazinianas de realismo que os teóricos do cinema exploram e mais uma questão de uma avaliação por parte dos espectadores de que parecia que o que Lee estava fazendo poderia realmente ser feito e que ele próprio poderia realmente fazer. isso no mundo real. A este respeito, a coreografia de Lee estendeu uma promessa ou possibilidade, como se saísse do mundo ficcional da tela e dissesse que este também poderia ser o caso nos domínios da realidade vivida. Tenho argumentado muitas vezes que esta é uma das principais razões pelas quais os filmes de Bruce Lee tiveram tal efeito fora do mundo do cinema e em múltiplos domínios das práticas culturais populares em todo o mundo.
“The Martial Arts Supremacy”, de Paul Bowman. Pág. 231. Tradução minha. Grifos meus em negrito.
É justamente neste aspecto do brutal realismo dos filmes de Lee que Bowman o distingue de seu sucessor, Jackie Chan, que sempre optou por um estilo mais cômico, exagerado, absurdo e humorístico - além de estrelar filmes que tinham um apelo mais “família”. No entanto, como o autor nota, isso não significa diminuir o impacto ou a importância de Jackie Chan.
É claro que Chan pode ser considerado importante de várias maneiras cinematográficas e culturais. Ele foi, por exemplo, um dos principais intervenientes envolvidos na tradução dos estilos operísticos chineses para coreografias de luta cinematográficas. No entanto, em termos de estudos de artes marciais e cultura popular em todo o mundo, Lee ainda tem uma posição mais complexa e importante. Lee foi fundamental para trazer a própria ideia das artes marciais asiáticas para a consciência cultural popular ocidental - na verdade, global -, ao mesmo tempo que infundiu essa noção com o que são, sem dúvida, mais convenções ocidentais de realismo cinematográfico. Isto é, se a coreografia de luta dos filmes de faroeste tinha até então sido caracterizada por “bater tudo” em brigas de bar e se a coreografia de luta de Hong Kong há muito envolvia trocas técnicas impossivelmente precisas e refinadas (pense no trabalho do rei Hu), então a contribuição de Bruce Lee foi produzir uma síntese excepcionalmente impressionante desses dois domínios. Conseqüentemente, as lutas de Lee apresentam muitos movimentos de kung fu reconhecíveis (ou, para um determinado público, “exóticos”), mas foram executados com uma injeção única e convincente de paixão, poder, aspereza e, de fato, violência palpável. Em outras palavras, quando Bruce Lee dá um soco, pode-se ver e sentir seu poder - desde a série de tiros rápidos, de curto alcance e, em última análise, socos letais no peito do envenenador de seu professor em A Fúria do Dragão [Fist of Fury, 1972, de Lo Wei] até os golpes com o punho traseiro. contra O'Hara que são tão rápidos que são efetivamente invisíveis para a câmera em Operação Dragão, até os cruzamentos e chutes muito maiores e mais oscilantes, mas obviamente poderosos em sua luta contra Han no final de Operação Dragão ou, na verdade, contra Chuck Norris em O Vôo do Dragão.
“The Martial Arts Supremacy”, de Paul Bowman. Pág. 232. Tradução minha. Grifos meus em negrito.
O que Bowman nota é que, quando o legado de Lee nos Estados Unidos foi continuado por seu aprendiz, Chuck Norris, ao invés de se iniciar uma tradição tipicamente americana de filmes de artes marciais, o que vimos foi, na verdade, seu abandono. Pois Norris também foi gradualmente se afastando de sua imagem de artista marcial e mestre do Kung Fu e assumindo uma de típico tough guy americano: isto é, o cowboy. Mas um cowboy de diversas variantes: o tira durão (ao estilo de Dirty Harry), o soldado durão (ao estilo de Rambo) ou um como um autêntico cowboy mesmo (como vemos no seriado Walker: Texas Ranger, 1993-2002). Na prática, quando Norris entra em uma cena de luta corporal, tanto ele quanto seus coreógrafos tendem a favorecer um ou dos movimentos, de alto impacto e valor plástico no enquadramento. Quase como uma pontuação (no caso, um ponto de exclamação), tal movimento geralmente é um chute ou voadora, ou um bloqueio espectacular do ataque de um oponente. É altamente coreografado e ensaiado, sim, e rende sequências mais curtas de lutas. Isso é diametralmente oposto ao que víamos nos filmes de Lee, e mesmo nas estripulias exageradas de um Jackie Chan. Não é tanto a técnica, mas sim o espetáculo - e, de certa forma, representa a transformação da coreografia de luta em uma cena de tiro de faroeste: voadora (plano) e impacto (contraplano).
Bowman atribui essas mudanças em Norris - e nos filmes de artes marciais americanos - a motivos culturais maiores. Durante a Guerra da Coréia, e da ocupação militar do Japão, muitos soldados americanos optaram por aprender Karate, Judô e Jiu Jitsu. Ao voltarem para os Estados Unidos, estes soldados trouxeram consigo essa cultura (de novo, algo que vemos em Karate Kid): “a lógica “stop-start” (bloquear-contra-atacar) das interpretações básicas do karate kata e a sequência “um, dois, três” (interceptar, neutralizar, aplicar) de técnicas básicas de judô ou jiu-jitsu se prestam a atores, diretores e editores . As sequências “para-inicia” e “um-dois-três” podem ser facilmente ensinadas aos atores e editadas com a mesma facilidade para acelerar ou suavizar execuções lentas ou afetadas” (Bowman, 234). O estilo de Norris e dos americanos é muito mais duro, travado e rígido - apropriado aos tipos durões do Western. O estilo de Lee, no entanto, não só era mais suave, como ele podia facilmente alternar entre os dois estilos.
O estilo mais suave e sereno de luta pode muito bem ser percebido nas técnicas de Jean Claude Van Damme. Mais do que a força bruta, a ideia é usar as artes marciais como uma forma de equilíbrio espiritual - e derivar a sua força disso, não tanto dos músculos ou da brutalidade. Não é à toa que a imagem icônica de Van Damme, como o personagem Frank Dux em O Grande Dragão Branco (Kickboxer, 1989, de Mark DiSalle e David Worth), seja a dele meditando em espacate no topo de um arranha-céu, se preparando para o confronto.
Claro, isso não dispensa a brutalidade e a violência, mas é um estilo marcadamente diferente do de Norris, e pode ser traçado de volta a Lee. Quem leva esse senso adiante é o mestre do aikido Steven Seagal, cujo estilo marcadamente é o de usar a própria força e golpe dos oponentes, quando não o ambiente em si, contra eles. O resultado é longe de ser algo suave, pois geralmente implica em destruição.
(…) muitas das sequências na coreografia de Seagal envolvem transições fluidas impressionantes: a mão de um oponente pode ser pega e virada para um lado antes de Seagal virar para o outro e o oponente virar e se afastar ou ser esmagado em agonia e lesão. Mas, para fins dramáticos (e didáticos), essas sequências suaves ou fluidas também são justapostas com aplicações rígidas dos princípios do Aikido. Seagal pode fingir que se vira e se afasta antes de girar 180 graus e desferir um soco reverso no plexo solar do oponente, por exemplo. Mais frequentemente, no entanto, Seagal evitará um ataque enquanto passa despercebido e atinge o oponente em cheio no rosto com a mão ou antebraço - um atemi (golpe) que está intencionalmente em algum lugar entre um golpe e um arremesso.
“The Martial Arts Supremacy”, de Paul Bowman. Pág. 234. Tradução minha. Grifos meus em negrito.
Mas o interessante é que Seagal cultivou a imagem do tipo calmo, sereno e implacável, a perfeita fusão de um certo tipo de serenidade japonesa com a do cowboy americano (e Seagal basicamente interpretou tiras durões e agentes especiais do Exército em seus filmes). Curiosamente, ele foi ignorado em seu próprio país por ter cultivado essa persona em seus personagens.
Dada a sua apresentação do Aikido, as contribuições de Seagal tanto para o cinema americano de artes marciais como, de fato, para a percepção pública de uma arte marcial que é frequentemente considerada ineficaz e paradoxalmente pacifista podem ser consideradas significativas. No entanto, ele raramente recebeu elogios significativos. No final da década de 1980, no auge de sua carreira cinematográfica, as lutas de Seagal eram quase rotineiramente ignoradas em artigos de revistas de artes marciais como “As dez melhores cenas de luta” e similares. Em resposta às perguntas dos leitores sobre isso, um editor afirmou que Seagal coreografou apenas três cenas básicas de luta e que usou repetidamente as mesmas técnicas de cenário, fatos que diminuíram seu status.
“The Martial Arts Supremacy”, de Paul Bowman. Pág. 235. Tradução minha. Grifos meus em negrito.
O resultado prático disso tudo é que o cinema americano em si nunca desenvolveu um estilo próprio de coreografia de ação e artes marciais, pois sempre reverte para as formas mais tradicionais de ação (e, em geral, tende a favorecer cenas de tiroteio). Parte disso se dá pelo fato de que há uma barreira cultural que impede que o estilo mais grandiloquente e coreografado dos filmes de artes marciais asiáticos não se casa muito bem com a sensibilidade ocidental do americano médio, e em nenhum filme isso fica mais claro do que em Matrix.
O filme das Wachowski de fato traz uma forte carga do cinema de artes marciais chinês, em especial na linha de Bruce Lee, para um contexto tipicamente americano (e não vamos descontar o Gun Fu de John Woo; mas isso fica para a Parte 4). O wuxia de Matrix se torna palatável ao estilo americano quando esse “exagero” - os malabarismos, a coreografia extremamente elaborada etc - são inseridos em um contexto de ficção-científica - isto é, os personagens habitam um mundo de mentira, simulado. Lutar como Bruce Lee ou mesmo Jackie Chan faz sentido neste contexto, pois os personagens habitam, essencialmente, um mundo de videogame. E o que Matrix faz, no geral, é confirmar aquilo que sempre vimos no cinema americano: quando vemos um personagem fazer grandes feitos acrobáticos ou de arte marcial, é porque ele possui alguma habilidade especial: um super-poder, ou é um ciborgue. O que fica implícito é que este não é o “jeito normal” de se lutar - ou de mostrar uma luta.
E, tendo isso em mente, é de surpreender que a franquia John Wick tenha ficado cada vez mais fantasiosa? O sucesso financeiro da franquia permitiu que Stahelski e Leitch investissem não só em cenas de ação mais grandiosas e elaboradas, mas permitiu que o roteirista Derek Konstadt desenvolvesse o universo ficcional de Wick, se expandindo para locações que cobrem o mundo inteiro. Esse universo é povoado por personagens bizarros, rituais exóticos e toda uma estética retrofuturista que faz com que os filmes se aproximem cada vez mais de um… videogame. Uma das sequências mais impressionantes do quarto filme foi inclusive diretamente inspirada em um game de ação. Não afirmo isso como se fosse um ponto negativo do filme, no entanto, mas sim pelo fato de que a franquia de John Wick, tal como Matrix (que compartilham o mesmo astro), foi ficando cada vez mais irreal, existindo em um mundo próprio, com pouca conexão com o nosso. Isso confirma a tendência que o cinema americano só consegue ir para os arroubos operístico que marcam o cinema de ação asiático quando assume alguma fantasia ou irrealidade em sua diegese.
Por isso, boa parte do cinema de artes marciais acabou ficando relegado à Ásia em si e, quando muito, era adotado por alguma produtora americana de baixo-orçamento. Basta ver que as adaptações cinematográficas de Mortal Kombat (idem, 1995, de Paul W. S. Anderson) e Street Fighter (idem, 1994, de Steven E. De Souza) não possuam quase nada de coreografia, optando por cenas de efeitos especiais onde golpes únicos (ao estilo Chuck Norris) ou super-poderes são utilizados. E isso é significativo, uma vez que os personagens Liu Kang, Kung Lao e Johnny Cage (de Mortal Kombat), assim como Fei Long (de Street Fighter) são claramente inspirados em Bruce Lee e Jean Claude Van Damme.
O interessante é ver como Quentin Tarantino é extremamente consciente dessa questões de Ocidente X Oriente, no tocante ao cinema de ação, ao colocar uma cena em Era uma vez… em Hollywood (Once Upon a Time… in Hollywood, 2019) que parece ser um comentário cômico sobre essa questão. Nela, vemos o dublê Cliff Booth (Brad Pitt) - veterano de guerra, lutador e basicamente um cowboy vivendo seu ocaso - briga com um arrogante Bruce Lee (interpretado por Mike Moh) e basicamente o derrota com um único golpe - exatamente como vemos ocorrer nos filmes norte-americanos de artes marciais. Alguns críticos interpretaram essa cena como um disparate contra Lee e sua memória - o que é obviamente uma gigantesca estupidez, tendo em vista que Tarantino, em Kill Bill Vol. 1 (idem, 2004), faz nada menos que uma gigantesca homenagem não só ao cinema de artes marciais asiático, como faz uma tocante homenagem ao próprio Lee. A cena de Era uma vez… em Hollywood é nada menos que uma homenagem, por sua vez, ao cinema americano - que se vê diante de seu próprio ocaso (aos olhos de Tarantino).
Mas o diferencial de Matrix de suas contra-partes norte-americanas é o fato que as Wachowski raramente cortam os golpes e as lutas em si. Veja, não se trata somente de coreografia exagerada, mas também da maneira como elas são filmadas. As diretoras optam por planos mais abertos e menos cortes, com mais movimentos de câmera e movimentos que, são, também, motivados. Geralmente, as cenas de lutas em filmes americanos são filmadas em enquadramentos mais fechados, com mais cortes, e que terminam que por ocultar não só a coreografia, mas a própria brutalidade e violência. Se por um lado isso se dá por conta de motivos de censura e classificação etária no cinema americano, um problema perene na indústria cinematográfica do país, por outro alguns críticos leem esse tipo de coisa como um ocultamente deliberado da tradição cultural de países asiáticos. Pode ser, pode ser. Não sei. Não vou descartar por completo esse tipo de leitura, porque pode mesmo ser um fator (um fator correlato é a aversão do espectador americano a filmes estrangeiros e legendados), mas acho que ele em si está imbricado em uma série de pressões econômicas maiores. O fato é que nem sempre isso é em si algo negativo - como vimos, Paul Greengrass conseguiu pegar essas limitações e criar um estilo próprio de decupagem de cenas de ação e luta (que muitos críticos desdenham, mas enfim, não vou retomar essa discussão). Mas o fato é que raramente vemos no cinema americano uma vontade, ou mesmo uma capacidade, de se fazer grandes filmes de artes marciais onde o performer é tão importante quanto o coreógrafo da cena. E isso nos traz, finalmente, de volta a The Raid.
A trama do filme é simples: um esquadrão altamente especializado da polícia, uma espécie de SWAT da Indonésia, é enviado para um prédio residencial para apreender o drug Lord Tama Ryiadi (Ray Sahetapy). Na unidade da polícia, temos o protagonista Rama (Iko Uwais), novato na polícia, e o sargento Jaka (Joe Taslim). Logo que adentram o edifício, os policiais caem em uma brutal emboscada, e ficam presos no prédio, sem conseguir pedir reforços. O que se segue é uma brutal e extremamente tensa batalha onde acompanhamos Rama partir do andar térreo até a cobertura, onde Tama reside e vigia todo o complexo por câmeras e alto-falantes.
The Raid é um filme brutal, implacável e extremamente violento. A claustrofobia do ambiente - um conjunto residencial de classe média baixa, decrépito e escuro -, somado à coreografia extrema de Evans geram um filme que pode ser comparado a filmes de horror como REC (idem, 2007, de Paco Plaza e Jaume Balagueró) e A noite dos mortos-vivos (The Night of the Living Dead, 1968, de George Romero). Os gangsters avançam sobre Rama e Jaka com facões, machetes, correntes e facas, e os policiais devem usar tudo a sua disposição para enfrentá-los. Como os zumbis enraivecidos de Extermínio (28 Days Later, 2002, de Danny Boyle), seus ataques violentos e superioridade numérica forçam o tempo todo os heróis a se moverem pelo prédio, numa luta desesperada até o topo. Mad Dog (Yayan Ruhian), o sinistro guarda-costas de Tama, pode ser comparado a Freddy Krueger ou Jason Vorhees. É talvez o roteiro de ação perfeito, e sua influência pode ser traçada até os filmes de Bruce Lee, em especial O Jogo do Dragão. Não é só a coreografia brutal, veloz e filmada plasticamente por Evans que remontam aos filmes do chinês, mas também a sua visão de mundo.
Primeiro, o filme começa com a polícia chegando ao prédio de Tama em um dia chuvoso, cinza e escuro. Imediatamente nos lembramos da lúgubre metrópole de Se7en, de David Fincher. O próprio conjunto de apartamentos parece saído diretamente do filme de Fincher, com todas as suas marcas de desespero e degradação urbana. O tenente Wahyu (Pierre Bruno) afirma que ele organizou a operação contra Tama pois este está trabalhando com um grupo de policiais corruptos - entre eles, o próprio Wahyu. A superintendência da polícia sequer tem conhecimento da operação, não foi sancionada. Ou seja, mais do que apreender um poderoso criminoso, a operação em si existe para livrar a cara de policiais corruptos. O que resta é o próprio código de honra e senso de sobrevivência que motiva Rama e Jaka.
Rama precisa atravessar um verdadeiro corredor polonês, enquanto carrega um colega ferido. Um verdadeiro labirinto, de portas iguais de onde saem uma infinidade de gangsters de Tama, todos empunhando facas, facões e machados. Apesar do ambiente em si ser algo repetitivo, Evans deixa a ação clara ao deixar o objetivo claro: atravessar o corredor de uma ponta a outra.
Evans não corta na ação e reação, ele filma as duas ações no mesmo valor de quadro. No caso, um plano médio de conjunto. A câmera é na mão, mas não é a shaky cam frenética de Paul Greengrass, Christopher Nolan ou Michael Bay.
Evans troca o enquadramento e a angulação de câmera quando ele revela um novo atacante que se revela. E adinâmica de filmar o golpe/bloqueio/contragolpe no mesmo valor se mantém.
Mas Evans varia a decupagem de oponente a oponente, sempre sobre as mesmas bases. No caso de bandido, Evans alterna entre quatro valores diferentes de enquadramento. Neles, Rama usa uma tonfa para primeiro bloquear o ataque do bandido, e depois puxá-lo para si.
Evans abre o plano, mostrando os oponentes abatidos no chão, e marcando o progresso de Rama pelo corredor.
Este plano aqui é bem interessante. Primeiro, o enquadramento dutch segue a linha do golpe de perna que Rama faz, quebrando violentamente a perna do oponente. É pura gestalt isso aqui, e Evans enfatiza o golpe ainda mais com um movimento de câmera. Mas o dutch também enquadra Rama em contra-plongée, tornando mais heróico e poderoso em relação ao bandido. No entanto…
… logo na sequência surge um oponente vindo pela curva do corredor. Após desferir o golpe, Rama está num plano menor que o bandido - em desvantagem. Mas Evans não corta para revelar o bandido, como havia fazendo até então. Ele segue num pequeno plano-sequência, com o movimento de câmera (que sai do dutch anterior e se aproxima de Rama) enfatizando a brutalidade do contra-ataque de Rama. Diferentemente do que vemos nos filmes americanos, o chute anterior de Rama não leva a um corte seco - Evans sustenta o plano até o próximo ataque.
E corta para um plano americano de conjunto, lateral, marcando bem a coreografia da cena, e passando o eixo da câmera pelo corredor, mais uma vez, enfatizando o avanço de Rama pelo ambiente.
Ao invés de cortar frames como Greengrass faz em seus filmes de Jason Bourne, Evans os repete. Aqui, num valor de quadro (de novo, aberto), ele mostra a joelhada no abdomen do bandido - e, depois, repete a ação, voltando alguns frames (dois, três frames) da mesma joelhada. Isso enfatiza a força e o caráter definitivo do golpe, que imediatamente apaga o oponente. A troca de valor de quadro se dá também no momento que em Rama chega ao final do corredor, na interessecção em “T”. Evans faz questão de mostrar os bandidos derrotados (e mortos) atrás de Rama.
Mas, para além disso, há uma ênfase pessoal também na missão. O irmão mais velho de Rama, Andi (Donny Alamsyah) é o consigliere de Tama. Durante o filme, vemos que Andi eventualmente opta por trair o seu chefe e se juntar ao seu irmão, e ambos derrotam Mad Dog juntos, naquela que talvez seja a cena de artes marciais mais brutal que eu já vi na vida.
O final não é exatamente feliz: Tama é só mais um criminoso, dentre vários que infestam o submundo da Indonésia, e ele mesmo estava conectado com as mais altas esferas do comando da polícia. Andi não abandona o submundo, mas usa o vácuo de poder criado pela morte de Tama para ascender na hierarquia do crime. Ainda que os irmãos continuem separados ao final do filme, estão unidos na missão de um proteger o outro, que é o que Andi promete fazer com o jovem Rama. Ou seja, caso não esteja claro ao leitor, The Raid não é só um filme brutal de artes marciais, mas também um film noir implacável, com uma visão de mundo bastante dura e pessimista.
O filme de Evans revitalizou o gênero de artes marciais, e explodiu no cinema global, se tornando um clássico moderno quase que da noite para o dia. Iko Uwais se tornou uma estrela do cinema de ação, reconhecido internacionalmente, e Evans, um auteur do gênero. E é justo: seu approach para o cinema de artes marciais é inteiramente único. Não só por recuperar a tradição de Bruce Lee, mas também atualizá-la. Sua violência estilizada e brutal remonta a Sam Peckinpah, Quentin Tarantino e Nicolas Winding Refn, e sua decupagem extremamente dinâmica - mas clara, fluida, sem qualquer ocultamento ou obstrução - é permitida pelo uso inteligente de câmeras digitais novas e mais leves. Adotando um estilo documental, Evans dispensa o uso de Steadycam, e usa outros equipamentos para criar uma linguagem de câmera que é extremamente motivada, muitas vezes syncada com o próprio gestual dos atores. Isso confere ao filme uma curiosa camada psicológica ao filme, uma forma quase subjetiva, ou mesmo hitchcockiana de se filmar cenas de ação.
No fundo, The Raid repete a mesma estrutura do final de O jogo da morte, o clássico derradeiro e incompleto de Bruce Lee. O longa de Lee possui em seu clímax uma longa sequência de lutas aonde ele sobre os andares de um restaurante, rumo ao topo, e enfrente em cada andar um oponente. Quanto mais sobre, maior o desafio - é uma estrutura que se tornaria extremamente influente não só em filmes de ação mas também em viodegames de luta e combate como Street Fighte e Mortal Kombat.
Mas o interessante é ver como o filme Dredd (idem, 2012, de Peter Travers) repete a mesma estrutura de The Raid e o Jogo da morte. Uma nova - e excelente - adaptação do clássico gibi de ficção-científica distópico e de sátira social Judge Dredd, publicado na revista britânica 2000 AD, o filme é uma espécie de combinação do filme de Evans com o Robocop, de Verhoecen. Extremamente violento e brutal, o filme mostra Juiz Dredd (Karl Urban) e sua parceira novata Cassandra Anderson (Olivia Thirlby) presos em um edifício gigantesco, o mega-block, na missão quase impossível de tentar apreender a traficante Ma-Ma (Lena Headey), que reside, obviamente, na cobertura do gigantesco edifício.
O filme é interessante por mostrar essa combinação de influências mas com cenas de ação que repetem a decupagem clara e fluida de Paul Verhoeven. Apesar de ter direção assinada por Travers, o filme na verdade parece ter sido praticamente dirigido pelo seu roteirista, Alex Garland - e, a julgar pela filmografia de ambos cineastas, eu tendo a concordar com essa tese. Até mesmo por isso, tendo Dredd em mente, a rota que Evans tomou com a continuação de seu longa de 2011 teria de ser algo completamente diferente e inesperado.
O correto seria esperar mais do mesmo em uma continuação, por isso assistir Operação Invasão 2 (The Raid 2: Berandal, 2014) é tão desconcertante num primeiro momento. Não num mal sentido, muito pelo contrário. Tudo continua lá: a ação, a brutalidade, a violência, mas, como seria de se esperar para uma sequência, em maior escala e com mais elaboração. No entanto, Evans sai do confinamento do primeiro filme e criou uma narrativa épica, um verdadeiro épico policial sobre o submundo da Indonésia (e o longa tem 2h30 de duração).
A trama lida com as consequências do primeiro, e vemos Rama adentrar o submundo como um agente infiltrado, desvelando brigas familiares, guerras entre diferentes facções e mais podridão na força policial. O aspecto dramático chama a atenção aqui: por vezes Evans parece estar emulando Sidney Lumet de O Príncipe da Cidade (Prince of the City, 1981), mas com a linguagem mais barroca do Brian De Palma de Os Intocáveis (The Untouchables, 1987) e O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1991). Nesse aspecto, Evans se revela um diretor de mão cheia, pois ele costura cenas de ação (como uma extraordinária perseguição de carro ao final do filme) e luta com um intricado drama policial que envolve disputas shakespereanas de poder dentro da hierarquia da máfia.
The Raid 2 é um filme de fôlego e de escopo, mas que ainda assim consegue manter a tensão claustrofóbica do primeiro filme ao largo de suas duas horas e meia de duração. E, curiosamente, o filme, mesmo em sua estética mais barroca e dramática, consegue atingir um realismo que evoca, curiosamente, o que Michael Mann faz em seus neo-noir - muito mais do que John Wick, diga-se de passagem. Pois o que Evans faz é pintar o submundo da Indonésia como uma disputa de hierarquias dentro de uma cadeia alimentar carnívora, sanguinolenta. Não é tanto que os personagens estejam presos uns aos outros em elaboradas teias do destino - mas sim por meio de vias arteriais. É como as tragédias gregas de Eurípedes, repletas de sangue e violência praticados entre irmãos.
Há uma sequência de luta em The Raid 2 que parece um comentário sobre uma cena semelhante que ocorre no começo de Batman Begins (2005), de Christopher Nolan. Rama começa seu trabalho infiltrado em meio a gangues em uma prisão de segurança máxima. No meio das tensões, uma quebradeira acontece em um pátio enlameado. Ao contrário do que acontece no filme de Nolan, Evans arquiteta uma sequência épica de luta no lamaçal, mas faz questão de filmar a porradaria com planos-sequência curtos, coreografia clara e planos mais abertos - tudo isso sem perder o senso de caos e, bem, de sujeira na luta.
Mas eis o mais interessante de The Raid 2: como encaixar as cenas de ação e luta - em especial lutas que envolvem elaboradas coreografias de artes marciais, sem que elas fiquem gratuitas? Justamente pela dinâmica de ação e reação. O segundo filme lida com o vácuo de poder deixado com a morte de Tama no primeiro filme. Rama desferiu um golpe - tanto literal quanto metafórico - na delicada balança de poder que rege o submundo criminoso da Indonésia. Isso, naturalmente, gera uma reação. The Raid 2 é intricado pois ele é construído sobre esta mesma noção de ação e reação, e a simbologia do submundo se costura naturalmente às inúmeras sequências de lutas.
Toda essa violência e brutalidade culminam logicamente em Apóstolo (Apostle, 2018), filme de horror sobrenatural, que faz referência tanto à novela A sombra sobre Innsmouth quanto ao clássico horror de seita O homem de palha (The Wicker Man, 1973, de Robin Hardy). Uma produção exclusiva da Netflix, é uma pena que o filme tenha sido ignorado quando do seu lançamento, e que Evans não tenha seguido o caminho do horror - pois Apóstolo é um mistério gótico bastante único.
O longa acompanha Thomas Richards (Dan Stevens), um homem perturbado que se infiltra em uma misteriosa seita galesa para resgatar a sua irmã, que foi sequestrada pelos cultistas. Lá, ele se depara com horrores sobrenaturais que mistura ritos pagãos a satanismo. Até aí, poderia ser como qualquer fita barata do gênero (como as legiões de imitadores paupérrimos que The Wicker Man produziu), mas Evans casa essa sensibilidade distintamente gótica e metafísica de horror com suas cenas de brutais de ação. Isso não significa que o filme tenha cenas de artes marciais - não, não tem - mas os confrontos de Richards com os horrores que encontra na ilha são tão brutais e elaborados quanto qualquer coisa que vemos nos filmes de The Raid.
O interessante nestes filmes é ver como Evans constrói seus próprios universos ficcionais que, apesar de serem bastante barrocos e estilizados - e com sua câmera dinâmica que acompanha as ações dos personagens com uma fúria elegante - o fato é que há um centro de realismo brutal em seus filmes. Não só pelos níveis extraordinários de violência física, mas principalmente por sua visão de mundo, que revelam uma humanidade que trava uma luta sanguinolenta e apocalíptica entre si. A lógica é a de uma luta desesperada por poder, que adquire as raias da insanidade. No meio disso, a luta dos protagonistas é menos pelo poder ou pela sobrevivência, mas sim em tentar manter a sua humanidade. Nesse sentido, é sobre isso que Apóstolo trata. O personagem de Dan Stevens é o arquétipo de todos os protagonistas de Evans: o homem solitário, que vaga por uma terra corrompida e carcomida, onde a cada virada pode surgir uma violência que o destrua completamente. Thomas é revelado como um missionário cristão que sofreu uma brutal perseguição durante a revolução Boxer na China. Ao ver seus colegas serem trucidados pelos revolucionários, e ele mesmo ser brutalmente torturado, Thomas perde a sua fé em Deus, ao ver como este falhou em intervir por sua vida e de seus companheiros nas missões.
Os personagens de Evans passam por provações inimagináveis: físicas, morais, espirituais. Por isso que The Raid 2 vai para a linha narrativa inesperada de colocar Rama como um agente infiltrado: como é não perder senso de certo e errado, de sua própria identidade e valores e, principalmente, o que significa ser, literalmente, Judas, quando a sua verdadeira identidade for finalmente revelada? Todos esses temas são explorados de maneira intrincada e ainda mais ousada no próximo projeto de Evans: a série inglesa Gangs of London (2022-23, duas temporadas). De certa forma é a continuação espiritual de The Raid 2, e trata também do conflito entre diferentes famílias que dominam o submundo da capital britânica, além de ter um policial infiltrado numa das famílias.
Com todos esses projetos Evans não se revelou um diretor extremamente habilidoso, e com uma visão de mundo única, perfeitamente articulada em sua linguagem e estética inconfundíveis. Muito se diz que Tom Cruise parece emular Harold Lloyd e Buster Keaton em seus filmes recentes de Missão: Impossível. Cruise já foi diversas vezes comparado ao próprio Jackie Chan, por fazer ele mesmo suas diversas acrobacias. Mas, existe algo que o astro hollywoodiano parece ter personificado nos últimos anos: uma espécie de defesa do cinema em face dos streamings e dos hábitos de se consumir tais filmes em casa. Até acredito que haja uma verdade nisso, mas não deixa de ser interessante e ver como Gareth Evans captura o puro movimento - kino, cinemática - em seus longas de artes marciais. Há uma pureza e um diálogo único que ocorre na pura fisicalidade dos combates corpo a corpo. Um plano e contraplano, sim, uma ação e reação, sim, mas há algo mais primal ali. Sabemos que os cineastas do Expressionismo alemão ambicionavam criar uma linguagem universal no cinema, abolindo completamente o apoio verbal em seus filmes mudos. Uma espécie de esperanto cinematográfico. Eu acredito que Evans chega nesse ideal nas suas sequências de lutam. Guardadas as devidas proporções é claro.
Tendo em vista o cinema de ação e de artes marciais, no entanto, Evans parece pegar aquilo que víamos como promessa nos antigos filmes de Bruce Lee, que mostravam o lutador inserido em uma luta brutal contra forças maiores do que ele, e levar ao extremo em uma visão de mundo que, se não é noir como nos filmes de Michael Mann - é definitivamente hard boiled. E isso nos leva à próxima etapa deste ensaio: os filmes de John Woo.
Bom confirmar que o cinema respira (e sempre teve fôlego) fora da linguagem hollywoodiana! Uma pena que nem sempre esses filmes geram a bilheteria que manteria a indústria mais aquecida!