Uma Rajada de Balas
Sobre o cinema de ação contemporâneo | Parte 4: O cinema de John Woo e o "planeta Hong Kong"
John Woo talvez seja o diretor de ação mais importante dos últimos 40 anos, e acredito que vai continuar sendo influente em décadas vindouras. Isso pode soar como um arroubo ou uma bravata de um sujeito facilmente impressionável (como eu muitas vezes sou), mas o fato é que podemos traçar as principais transformações do cinema de ação mundial ao trabalho que Woo fez nos anos 80 e início dos 90 em Hong Kong.
No entanto, pode ser estranho pensar isso porque metade da carreira de Woo é… digamos, irrelevante. Ou, melhor, completamente desfalcada. Isso se dá pelo fato de que, a partir dos anos 1990, Woo começou a segunda fase de sua carreira como diretor, filmando para grandes estúdios nos Estados Unidos, e essas obras, em grande parte, são muito inferiores ao que ele fez no seu país de origem. A maior evidência disso é que Woo dirigiu aquele que é não só um dos seus piores filmes mas, também, o pior filme da franquia Missão: Impossível. Claramente a sua sensibilidade e ousadia como artista não se coaduna com um blockbuster hollywoodiano, onde todas as demandas do Star System, em especial de Tom Cruise, casam com a estética que desenvolveu em Hong Kong. Por isso, é justo dizer que boa parte do público ocidental não conhece a obra de Woo, ficando somente com os filmes que fez nos Estados Unidos, que certamente não oferecem uma visão acurada da genialidade do diretor.
Em 1993, Woo lança seu primeiro filme americano: O Alvo (Hard Target). O longa acompanha Chance Bourdreaux (Jean Claude Van Damme), um fuzileiro naval aposentado que vaga de cidade em cidade em busca de trabalho, como um drifter. Quando a história começa, Chance está em Nova Orleans, quando cruza caminho com Emil Fouchon (Lance Henriksen), um excêntrico milionário que promove caçadas esportivas em busca da presa mais perigosa de todas: o homem. Sim, mais uma vez estamos no terreno de Richard Connell, autor de The Most Dangerous Game, que já foi tantas vezes filmado, refilmado e reinventado no cinema.
Apesar da trama ser um tanto clichê e previsível, ela é perfeita para Woo. Primeiro, em termos mais amplos, é um tipo de narrativa que favorece a concepção de um roteiro de ação perfeitamente estruturado: uma série de encontros entre o herói e os caçadores, onde cada encontro termina com o herói escapando por um triz e gerando baixas no grupo inimigo, que se vê obrigado e redobrar seus esforços na tentativa de derrotá-lo. À medida que a caça - algo impessoal, meramente esportivo - avança, também avança o conflito pessoal entre a caça, Chance, e o caçador, Fouchon. As cenas de ação são a história - não há ação separada da narrativa e dos personagens, que são definidos pelas escolhas que eles fazem durante cada sequência. Segundo, é um conceito amplo o suficiente para permitir uma variedade de cenas de ação, de perseguições de carro, a tiroteios a lutas de artes marciais. Woo é mestre em conduzir a ação por esse tipo de roteiro, e é de se ficar chocado com o fato de que o estúdio (Universal Pictures) tenha designado Sam Raimi para supervisionar Woo durante as filmagens, com medo que o chinês se perderia numa produção tão grande - e, com isso, ignorando o fato de que o cineasta começou sua carreira no final dos anos 60 e já havia produzido e dirigido ao menos 10 filmes de ação (sendo 4 destes, no mínimo, clássicos absolutos).
O confronto final de “O Alvo” se dá em um galpão abandonado, repleto de carros alegóricos e fantasias do carnaval de Mardi Gras. Nas mãos de Woo, o local se torna, literalmente, um playground onírico para sequências de ação absurdas.
Lance Henriksen, que interpreta o vilão Fouchon, desempenhou quase todas as principais sequências de ação - inclusive uma prolongada onde ele, literalmente, está em chamas por um período prolongado de tempo.
Uma das marcas de Woo, incomum para cenas de ação no cinema ocidental, é o uso de planos abertos, super wide, com movimentos de câmera prolongados.
Mas, para além destes pontos, a trama em si é perfeitamente Wooniana (Wooniana? Que termo horrível). Chance é o cowboy, o drifter que vai de cidade em cidade, se envolvendo em assuntos locais (e mulheres locais), só para partir para a próxima - assim como o fez Gary Cooper, John Wayne, Jimmy Stewart e tantos outros antes dele. Mas Chance é o cowboy moderno, um veterano da Guerra do Vietnã assim como John Rambo ou o Lone Wolf McQuade (Chuck Norris). Sendo moderno - e, portanto, parte deste mundo corrompido (como vemos no cinema de Michael Mann), são personagens que habitam a periferia das grandes metrópoles. A Nova Orleans de Woo é um universo próprio, uma cidade de fronteira de Western com um tratamento quase que pós-apocalíptico. E, assim como os heróis de Michael Mann, são personagens que só sobrevivem se possuírem um rígido código pessoal. Em Mann, esse código de honra muitas vezes se confunde com o próprio profissionalismo de seus personagens. Esse profissionalismo é muitas vezes tratado quase como a missão de um devoto (aliás, a “missão de um devoto” é algo que vemos ser introduzido como uma das motivações de Ethan Hunt em Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte 1), com ecos bressonianos. No caso de Woo, a mesma coisa ocorre, mas há uma inversão sutil: a honra e o sacrifício diante do mal (seja esse mal um gângster, um policial corrupto e/ou a própria sociedade que os produz) se sobrepõe ao próprio profissionalismo. Woo basicamente inventou um subgênero de ação, o Heroic Bloodshed (o termo em si foi cunhado pelo célebre editor Rick Baker).
O design de elenco é importante no cinema de Woo e também do de Hong Kong do período. Por ser um cinema do excesso, do exagero, onde a articulação de imagens extremamente elaboradas é mais importante que a trama em si, o elenco também precisa corresponder a essas mesmas expectativas de exagero e expressividade.
Os personagens desses gênero geralmente são gângsters (da Tríade chinesa), assassinos de aluguel, ladrões profissionais ou mesmo o tira incorruptível. Todos esses personagens, sejam criminosos ou policiais, possuem um código de honra e ética extremamente firme e bem estabelecido, e geralmente convivem com um pequeno grupo de personagens, que formam uma família estendida. Honra, lealdade, fraternidade não são meras qualidades dos personagens, mas sim o eixo temático desses filmes. No caso de O Alvo, o que separa Chance de Fouchon é justamente o senso de ética, justiça e a honra do combate entre iguais. Pior do que ser um assassino, é ser um trapaceiro.
Isso também faz com que os filmes em si tenham um forte elemento de melodrama e sentimentalismo. No caso, dentro da estética e da direção de atores do cinema chinês (e asiático como um todo), um certo exagero no acting é esperado. Aos nossos olhos ocidentais, treinados por anos de atores formados no Actor’s Studio e no “Método”, tal tipo de interpretação pode parecer um erro, pelo simples fato de serem exageradas. Não excluo exagero ou melodrama, mas é um estilo que é comum à cultura asiática, e vemos isso em filmes populares chineses, japoneses e coreanos. Mas Woo cria uma estética própria que abarca muito bem essas características de direção de atores e interpretação. Começando com Alvo duplo (A Better Tomorrow, 1986), o filme que forma o gênero Heroic Bloodshed, Woo vai gradualmente construindo seu próprio universo estético - atores recorrentes, como em uma companhia de teatro de repertório; fotografia; direção de arte; trilha sonora - onde não só esse estilo de interpretação é incorporado, mas também onde todos estes temas podem florescer à flor da pele.
Agora, um aspecto interessante dos filmes Heroic Bloodshed é que, ao contrário do que vemos nos filmes americanos, não há final feliz - ou, ao menos, não no sentido do tradicional “happy end” hollywoodiano. O herói se sacrifica pela causa, pelo bem, pela missão. O mundo raramente se corrige - no máximo, temos um equilíbrio momentâneo. Geralmente o herói morre, mas o exemplo de seu sacrifício permanece com seus sobreviventes, tal como um legado - o final de Butch Cassidy (Butch Cassidy and the Sundance Kid, 1969, de George Roy Hill), com Butch (Paul Newman) e Sundance (Robert Redford), acuados em meio a um tiroteio, numa luta que vão perder com toda certeza. Isso em si é muito interessante, e muitos dos personagens de Woo podem ser comparados a anjos.
Não é de se surpreender que haja uma ressonância profundamente católica nos filmes de Woo - e não, não estou falando das pombas brancas que figuram em quase todos os seus filmes. Apesar de crescer como um cinéfilo, devorando faroestes e musicais americanos (como aqueles com a coreografia insana de Busby Berkeley), os filmes policiais de Jean Pierre Melville, os dramas existenciais que marcam os personagens de François Truffaut e Jean Luc Godard, e os épicos de Akira Kurosawa, o fato é que Woo queria ter sido, originalmente, um padre. A moral católica, assim como os personagens duros dos filmes de samurai de Kurosawa, dos westerns americanos, dos dramas existenciais de Godard e Melville formariam a imaginação moral de Woo, que desembocariam diretamente no Heroic Bloodshed. A música de Bob Dylan, com suas baladas sobre drifters percorrendo um América moderna e corrompida, o ajudariam na composição dos filmes de sua fase americana. No entanto, por ser uma criança tímida e com sérias dificuldades de fala, Woo não via a si mesmo conduzindo seus fiéis de um púlpito. O cinema era a forma mais bem acabada que encontrou para conseguir se comunicar com o mundo. E, olhando em retrospecto, faz perfeito sentido que assim seja, pois os filmes de Woo sem dúvida possuem uma gramática toda própria.
Woo é considerado o pai do Gun Fu - um estilo de direção de ação (alguns o consideram um subgênero de ação) onde os personagens fazem verdadeiros malabarismos em meio a tiroteios. A imagem comum é Chow Yun Fat se lançando no ar, com uma pistola em cada mão, desviando de disparos inimigos ao mesmo tempo em que faz chover uma rajada de chumbo nos mesmos. Woo é o poeta do tiroteio e do caos, e é comum em seus filmes vermos não só os protagonistas se lançando nos chãos, paredes ou de escadas (ou, então, deslizando por corrimãos e até mesmo skates), armas em punho, fuzilando um exército de bandidos, como também a destruição em massa: reboco, tijolos, lajotas, papéis e todo tipo de coisa é destruído nesses confrontos. Woo usa fogos de artifício para mostrar o efeito de balas se atingindo em superfícies, e a chuva de faíscas só perde para a chuva de sangue que voa dos corpos atingidos.
Alvo duplo é um filme que possui todas as características do Heroic Bloodshed em fase embrionária. Mas, por ser um filme de baixíssimo orçamento, ele é filmado de maneira quase neorrealista, e há pouco espaço para que Woo faça seus arroubos mais dramáticos de ação e violência, além do fato de depender do uso de locações e fotografia quase naturalista. O estrondoso sucesso de Alvo duplo colocou Woo - e boa parte do cinema de Hong Kong de então - em uma trajetória que levaria não só ao sucesso financeiro destes filmes, mas há um impacto no cinema global como um todo.
Alvo Duplo ( A Better Tomorrow). Filme inaugural do “Heroic Bloodshed”.
Primeiro, Woo e seu produtor, Tsui Hark, se tornariam figuras poderosíssimas no cinema chinês. Hark, inclusive, anos depois, seria responsável por revelar astros como Jet Li para o cinema mundial, além de produzir o trabalho de outro diretor especialista em Heroic Bloodshed, Ringo Lam. À Flor da Pele (Full Contact, 1992) - que também conta com Chow Yun Fat - é um dos meus filmes favoritos, e um dos exemplos mais niilistas e cínicos desse subgênero. Além de cineastas e produtores, o filme de Woo revelaria astros como Chow Yun-fat, Ti Lung, Leslie Cheung, Teresa Mo, Anthony Wong e diversos outros ao mundo.
Mas talvez o mais surpreendente sobre o cinema de Hong Kong do período é o alto grau de diversidade que ele possui. Por um lado, temos filmes extremamente populares e comercialmente bem-sucedidos, que vão de filmes de ação e artes marciais a comédias e fantasias; por outro, temos um “cinema de arte” igualmente popular e bem-sucedido mundo afora, como o de Wong Kar-wai. É uma indústria de cinema extremamente robusta, ainda mais levando em conta que Hong Kong era uma cidade-estado com pouco mais de 6 milhões de pessoas. “Em número de filmes lançados, [Hong Kong] superou regularmente quase todos Países ocidentais. Na exportação ficou em segundo lugar apenas para os Estados Unidos. Dominou o mercado do Leste Asiático, acabando por destruir a indústria cinematográfica de um país vizinho. Distribuído no Ocidente, os filmes de Hong Kong se tornaram um fenômeno cult em um ritmo sem precedentes em escala. Embora com um custo de produção típico tanto quanto um alemão ou francês, a indústria não beneficiou de subsídios do tipo que mantém vivo o cinema europeu. Filmes de Hong Kong foram feitos simplesmente porque milhões de pessoas queria assisti-los” (Planet Hong Kong, pág. 1; tradução minha).
Isso talvez seja o aspecto mais surpreendente, ainda mais tendo em vista o fato de que nós, no Brasil, continuamos presos em debates carcomidos sobre como fomentar a indústria cinematográfica no país. Mas o fato é que um blockbuster norte-americano como Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, 1981, de Steven Spielberg), uma das maiores bilheterias globais do ano, estreou em 16º lugar nas bilheterias de Hong Kong, cujos 10 primeiros filmes eram todas produções nacionais. E, de novo, ao contrário do que vemos acontecer no cinema europeu, por exemplo, onde 70% do orçamento de um filme é resultado de subsídios do governo, os filmes de Hong Kong eram inteiramente produzidos por produtores locais, sem qualquer incentivo do governo.
Alvo Duplo 2 (A Better Tomorrow II). Com mais orçamento, Woo começa a formar seu estilo único e inconfundível de filmar ação.
Um dos elementos notáveis dessa cena de ação é que, por se passar em um corredor apertado, Woo coloca a câmera deliberadamente próxima dos disparos das armas, dos corpos sendo atingidos e da destruição sendo infligida nos cenários.
A violência, bastante estilizada, segue os passos de Sam Peckinpah. Outra coisa interessante de se perceber aqui é como Woo pega uma cena que, “na vida real”, duraria uma fração de segundo, mas ele estende essa duração não só com o uso esporádico de câmera lenta (que funcionam muito mais como um “respiro”), mas também com o uso de raccords entre um corte e outro, entre a “ação e reação” dos disparos e acertos dos alvos.
Apesar de ser um simples corredor, como qualquer outro, Woo consegue dramatizar a tensão da cena não só com a ação exagerada, mas principalmente com o uso dramático de ângulos de câmera e enquadramentos.
Toda essa sequência lembra muito a do corredor no primeiro The Raid, e que analisamos no ensaio anterior. E aqui vemos como Woo forma o estilo de Gun Fu, mesclando uma decupagem de filmes de artes marciais, como os de Bruce Lee, mas com elementos de tiroteiro, como vemos nos faroestes de Sam Peckinpah e de filmes norte-americanos no geral.
“Como pode este cinema ter sido tão bem-sucedido?”. Podemos apontar diversas respostas sobre o motivo desse sucesso, mas o fato é que o público realmente gostava destes filmes. Pode ser uma resposta bastante insatisfatória, mas é o que é. Os filmes do período - não só os de John Woo, Tsui Hark, Ringo Lam, King Hu e outros - representam uma interessante intersecção entre comercialismo e arte. Porque o fato é que o cinema de Hong Kong é incrivelmente popular e comercial: as tramas são simples, e apelam descaradamente para os sentimentos do espectador, seja em cenas dramáticas “arranca-lágrimas”, seja na tentativa de provocar reações físicas nos espectadores, com pura adrenalina sangrenta em fitas de ação. Mas tudo isso é feito por cineastas que possuem uma visão bastante audaciosa e um domínio técnico da linguagem do cinema que fez com que esse cinema conquistasse o resto do mundo em festivais, cinemas especializados em filmes estrangeiros e na distribuição de fitas VHS do nascente mercado do home video.
No cinema popular, filmes altamente pessoais podem ser produzidos para a indústria do entretenimento — pensemos nos filmes de Buster Keaton, Alfred Hitchcock, John Ford, Howard Hawks e outros cineastas distintos. Mas os “filmes de arte” também são um negócio. É verdade que muitos não são produtos de indústrias ou empresários locais com fins lucrativos; eles recebem financiamento público (…) Poucos destes filmes subsidiados atraem um público local ou distribuição no estrangeiro, pelo que, sendo investimentos puramente económicos, são desastrosos. Em vez disso, o retorno do investimento muda para outro nível. O filme subsidiado compete para ganhar lugares nos quatrocentos festivais anuais de cinema do mundo, que estão famintos por produtos não convencionais de todos os tipos. Se uma inscrição no festival for aclamada, talvez um prêmio, a agência patrocinadora é confirmada em sua decisão de apoiar o projeto, com honra fluindo para a cultura nacional. Por estas razões, a rede de festivais tornou-se um circuito de produção, distribuição e exibição paralelo ao do cinema de massa. O cinema de arte nem sempre tem fins lucrativos, mas continua orientado para o mercado, e esta pressão afetou as suas tradições, gêneros e convenções.
(Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 4. Tradução minha).
O livro de David Bordwell, Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment (2011), lançado décadas depois do auge desse ciclo de filmes, é uma excelente retrospectiva sobre o que foi esse cinema. Com capítulos dedicados a cineastas individuais (como Tsui Hark, John Woo e Wong Kar-wai), a astros como Jackie Chan e Bruce Lee, e também às transformações culturais e econômicas que a região passou para formar essa indústria, o célebre crítico, teórico e historiador norte-americano faz uma profunda e complexa investigação sobre as relações entre arte e comércio, sobre a visão pessoal única de artistas que fizeram esse cinema acontecer e seu estrondoso sucesso de massa. Jackie Chan e John Woo talvez sejam os maiores astros do período, visto que eles se tornariam nomes reconhecidos no Ocidente, com extensa carreiras nos Estados Unidos e Hollywood.
Woo influenciaria diretores como Quentin Tarantino - Cães de aluguel (Reservoir Dogs, 1992) possui muito dos temas e estilo do Heroic Bloodshed - assim como León - O Profissional (The Professional, 1994, de Luc Besson), é profundamente inspirado em The Killer (idem, 1989). O próprio Matrix, das irmãs Wachowski, deve seu balé de tiros ao cinema de Woo - e podemos dizer que os próprios temas religiosos e proféticos do filme podem ser traçados de volta aos filmes de Hong Kong. Nos anos 2000, games célebres como Max Payne (2001) e Dead to Rights (2002) seriam profundamente inspirados nos filmes de Woo e Lam, e a incorporação da mecânica bullet time se dá diretamente do uso de câmera lenta nos filmes desses diretores.
Alvo Duplo 2. O final do filme é um autêntico clímax de John Woo: uma cena de ação épica, com níveis apocalípticos de mortes e destruição.
Ação e reação.
Os disparos iniciais de Chow Yun-fat é como um golpe de Bruce Lee: os adversários saem voando, e abrem uma onda entre os outros adversários. Woo emprega cabos e polias (o famoso “Wire Fu”) para lançar os dublês pelos ares, sublinhando um exagero bem ao tipo asiático.
Woo passa a empregar lentes teleobjetivas para filmar os disparos seguintes. A câmera sempre se move, passando pelos bandidos, que voam pelo ar em reação aos disparos (além de todo sangue que esguicha). Woo não individualiza nenhum dos bandidos, mas sempre que corta de volta para Chow Yun-fat, ele está centralizado no quadro, e praticamente estático, reforçando o impacto destrutuvo dos seus disparos.
A câmera avança pela casa, e Woo marca a geografia desse ambiente com curtos planos-sequência, onde a câmera avança junto com os personagens. Isso traz também um dinamismo às cenas.
Woo não desperdiça um único enquadramento. Cada frame é usado para reforçar o exagero da ação e destruição. No entanto, ele cuidadosamente insere momentos “calmos”, de respiro, com os personagens avançando pela casa, caçando inimigos. Dessa forma, a sequência, apesar de longa, não exaure o espectador com excesso.
A estilização da violência é reforçada pelo contraste entre o vermelho do sangue com os tons brancos das roupas e da própria casa.
O Alvo representa a culminação desse estilo. Ou, melhor, não é a culminação (ela veio em seu filme anterior, chinês). Mas ela é a conclusão lógica de toda a sua carreira, e a perfeita fusão de sua sensibilidade e influências com a própria tradição do cinema americano. Pois Woo sempre foi influenciado pelo Western, pelo noir e por uma série de clássicos do cinema norte-americano, mas trazendo também suas próprias influências e tradições estéticas asiáticas. Dos faroestes clássicos à música de Bob Dylan, vemos Woo finalmente incorporar de vez a tradição do cinema norte-americano aos seus próprios filmes. Mas, infelizmente, essa seria a última vez que ele faria isso.
Uma vez na América, ele estava preparado para adaptar O Alvo (1993) aos gostos locais. Depois de uma pré-estréia desastrosa em que os adolescentes riam de todas as dissoluções e congelamentos, “percebi que no filme de ação americano a técnica e a história são muito diretas.” O Alvo foi re-montado várias vezes para aplacar a censura dos EUA, um fato astutamente divulgado na publicidade. Woo ocasionalmente reclamava do rigor (“O herói americano não deveria levar tantas balas... e ele nunca morre... É tão quadrado!”), mas encolheu os ombros: “Agora conheço o sistema. Da próxima vez, evitarei algumas coisas.” Ele jogou pelo seguro ao fazer A última ameaça [Broken Arrow] (1996); se tiver sucesso, explicou seu produtor e parceiro de negócios Terence Chang, “então John terá a chance de fazer o que quiser”. Woo foi contratado para dirigir a seleção brasileira de futebol nos comerciais de TV “Airport '98” da Nike, e foi escalado para Missão: Impossível II. O diretor que pedia mais autoexpressão no cinema chinês começou a explicar que deixou Hong Kong. Kong porque “não sou muito chinês. As minhas técnicas, os meus temas, a minha linguagem cinematográfica não são tradicionalmente chineses.”
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 61. Tradução minha.
Esse é um fato triste: os filmes posteriores de Woo, em sua fase americana, não chegam perto do que ele fez em Hong Kong. A primeira coisa que tenho que dizer é que os filmes americanos de Woo são caretas. Os filmes se tornam comportados, e não há um décimo da insanidade que vemos na sua fase chinesa. Ok, eu admito que A Outra Face (Face Off, 1997) tem lá seus momentos de humor involuntário (cortesia da dupla Nicolas Cage e John Travolta), mas filmes como A última ameaça (Broken Arrow, 1996), Códigos de Guerra (Windtalkers, 2002) e O Pagamento (Paycheck, 2003) são, na melhor das hipóteses, tentativas fracassadas de Woo de fundir o seu estilo e sua senilidade em diferentes gêneros americanos, como o filme de guerra (Códigos de honra, que admito ter lá seu interesse) e a ficção-científica (O Pagamento é adaptado de um conto de Philip K. Dick). Mas simplesmente não é possível comparar estes filmes aos que Woo fez em Hong Kong.
É estranho de apontar, mas as cenas de ação parecem menos espontâneas, menos caóticas, e o melodrama, tão necessário à construção estética de Woo, vira um novelesco cafona. Woo encara temas como lealdade, fraternidade e sacrifício de forma profundamente sincera, sem cinismo ou irreverência, mas isso de certa forma se perde quando o diretor começa a filmar nos Estados Unidos dos anos 90 - talvez por ser a década marcada por filmes como Amor à queima roupa (True Romance, 1994, de Tony Scott), Assassinos por Natureza (Natural Born Killers, 1994, de Oliver Stone), Cassino (Casino, 1995, de Martin Scorsese), Pulp Fiction: Tempos de violência (Pulp Fiction, 1994, de Quentin Tarantino), Se7en: Os sete crimes capitais (Se7en, 1995, de David Fincher), Fogo contra fogo (Heat, 1995, de Michael Mann). Walter Hill terminaria que por desmontar a figura do cowboy em filmes como Gerônimo - Uma lenda americana (Geronimo: An American Legend, 1993), Wild Bill - Uma Lenda no Oeste (Wild Bill, 1995), e se juntaria a Martin Scorsese ao terminar por desmontar a figura do gângster em O último matador (Last Man Standing, 1996) - e isso tudo termina culminando em 1999 com a estréia de uma série como Família Soprano (1999-2007, 6 temporadas).
Woo está claramente deslocado ao fazer um filme como Missão: Impossível 2. Não há mais espaço para espiões como James Bond (o Bond de Pierce Brosnan já estava em franca decadência), que logo seria substituído por Jason Bourne, que é literalmente produto de um experimento científico criminoso da CIA. Os heróis musculosos de outrora - Schwarzenegger, Van Damme, Stallone, Lundgren - seriam substituídos pelo Peter Parker de Tobey Maguire, o Bruce Banner de Eric Bana, o Bruce Wayne/Batman de Christian Bale e os mutantes complexados de X-Men. É irônico, mas tanto no cinema Buddy cop dos anos 80, quanto o atual cinema de super-herói, poderiam muito se beneficiar da visão de John Woo. Mas o fato é que, em 2000, com o lançamento de Missão: Impossível 2, Woo estivesse claramente no lugar errado, e na hora errada. A carreira americana de Woo é bastante medíocre, e só posso mesmo destacar O Alvo como um autêntico filme do diretor.
Alvo Duplo 2. O estilo dramático, que mescla o western de Sergio Leone com os filmes de Akira Kurosawa, duas referências importantes para John Woo.
Com isso, Woo retorna à China, onde produz uma série de épicos históricos (alguns filmes tem mais de 4 horas de duração), que no geral foram bem-recebidos pela crítica e público, e de fato são interessantes, ainda que eu pessoalmente prefira os primeiros filmes da carreira do diretor. E, neste ponto, a carreira de Woo se assemelha à de Anthony Mann, que começou fazendo westerns e film noir B, de baixo-orçamento para, depois que atinge o grau máximo de desenvolvimento de seu estilo dentro desses gêneros - Moeda Falsa (T-Men, 1947); Pecado Sem Mácula (Side Street, 1949); Winchester ’73 (idem, 1950) e Um Certo Capitão Lockhart (The Man From Laramie, 1955) - partiu para uma série de épicos históricos, como Cimarron - Jornada da vida (Cimarron, 1960), El Cid (idem, 1961) e A Queda do Império Romano (The Fall of the Roman Empire, 1964). No entanto, parece que Woo vai retornar às suas origens com Silent Night. Uma co-produção entre China (através da produtora de Woo, A Better Tomorrow Productions) com a Thunder Road Films, já fico empolgado com a ideia do filme por ele ser, inteiramente, mudo. Sim, não há diálogos de qualquer tipo - o que remonta ao experimentalismo febril dos primeiros filmes do diretor.
E esse tipo de ousadia radical talvez seja exatamente o que Woo precise fazer em 2023, pois o cinema de ação atual, que passa por uma boa fase, é literalmente um mundo construído por John Woo. Afinal, o que são os mundos noir e distópicos de John Wick e Anônimo (Nobody, 2021)? Todos os filmes da 87Productions, comandados ou supervisionados por Chad Stahelski e David Leitch, possuem não só a coreografia elaborada em cenas de luta mas, principalmente, o balé caótico do Gun Fu de John Woo. Mas não só: estas cenas de ação são filmadas em um universo estético próprio, cenas banhadas em luzes neon coloridas, em universos ficcionais onde o submundo é quem de fato rege a estrutura do mundo. De John Wick a Aves de Rapina, passando por Anônimo e Deadpool, o que vemos nos filmes de Leitch, Stahelski e Ilya Naishuler é a fusão do universo de Woo ao de Michael Mann.
Com isso, não quero diminuir os filmes da 87Productions. Eles possuem seus próprios méritos, e constroem sua estética de ação referenciando Woo e os mestres do Heroic Bloodshed da mesma forma que Woo criou esse estilo (ou gênero) a partir de suas próprias influências díspares, que vão de westerns clássicos e Bob Dylan a catolicismo e Akira Kurosawa. E temos de agradecer o fato de que Stahelski e Leitch, assim como Gareth Evans, tenham pego o exemplo de Woo e levado o gênero adiante aonde ele próprio não foi capaz de fazer em sua fase americana. O resta saber é se esses realizadores vão conseguir continuar a sua tendência de inovação, pois o fato é que, após Anônimo e John Wick Capítulo 4: Baba Yaga, a impressão que eu tenho é que eles podem estar no mesmo impasse que Woo esteve logo após fazer Fervura Máxima e O Alvo.









Por isso que estou bastante ansioso para o lançamento do novo filme de John Woo - Silent Night (2023). Produzido pela mesma turma por trás de John Wick, Atômica e Nobody, Silent Night pode muito bem significar o encontro - e, quem sabe, 0 fechamento - desse ciclo de filmes de ação. Mas, talvez mais importante, pode ser mesmo um retorno à forma.
O novo longa possui um protagonista que fica mudo após um acidente. Isso não é um mero twist narrativo, pois como David Bordwell bem nota em seu livro sobre o cinema de Hong Kong, é um antigo anseio de cineastas da geração de Woo a vontade de se fazer filmes puramente visuais, com pouco ou nenhum diálogo.
A vulgaridade oferece um tipo de contundência; imagens impressionantes produzem outra. O diretor de Hong Kong, Ringo Lam, fala em nome de muitos de seus colegas: “Gosto de recursos visuais e de histórias simples. Eu preferiria que meus filmes tivessem poucos diálogos”. Quando Robert Parrish perguntou como poderia aprender a dirigir atores, John Ford sugeriu que assistisse Stagecoach [No tempo das diligências, 1932]. Parrish voltou da exibição protestando que John Wayne mal tinha uma dúzia de falas. “Essa é a maneira de dirigir atores”, respondeu Ford. “Não deixe eles falarem.” Os intelectuais muitas vezes citam diálogos idiotas para mostrar a insensibilidade do cinema popular, mas não percebem o que está nas imagens.
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 5. Tradução minha.
Curiosamente, crítica semelhante foi feita ao filme John Wick 4, onde o astro Keanu Reeves possui menos de 20 linhas de diálogo em filme de mais de 3 horas - é uma crítica tola e mal-informada em relação à história do cinema de ação e às próprias referências de Stahelski, Leitch e Konstadt (sendo que os próprios filmes de Woo e Lam se inspiravam no lacônico cowboy de Clint Eastwood dos velhos filmes de Sergio Leone). De todo jeito, Silent Night pode ser um retorno à forma para Woo não só porque ele retoma o cinema de ação, mas ele o retoma em uma chave que pode ser muito próxima aos filmes ousados e audaciosos que fazia nos anos 80 e 90, e que nunca conseguiu fazer na terra de Tio Sam.
É difícil precisar por quê John Woo nunca conseguiu decolar de fato nos Estados Unidos, para além de O Alvo. Woo é um cineasta popular, que gosta e trabalha dentro de temáticas populares. Gosta de tramas simples, onde o puro dinamismo visual são mais importantes que os diálogos ou tramas intrincadas. Ao que tudo indica, isso deveria ser um ponto pacífico com o cinema blockbuster hollywoodiano. O problema é que acredito que Woo tenha esbarrado em certas condições corporativas e culturais em seus filmes feitos neste país.
Primeiro, os diretores de Hong Kong faziam os seus filmes em uma indústria que, apesar de não ser tão jovem, ainda era provinciana. Não haviam tantas regulamentações, regras de segurança e mesmo estruturas corporativas e de marketing que pudessem atravancar - e encarecer - a produção de um filme. Segundo, apesar de Woo, Lam, Hark e outros cineastas do período terem crescido junto às estrelas dos seus filmes, nunca houve um Star System de fato em Hong Kong, ao contrário do que vemos nos filmes hollywoodianos. Isso pode muito bem ser evidenciado em filmes de Woo como A outra face (Face Off, 1996), O pagamento (Paycheck, 2003) e, claro, Missão: Impossível 2 (2000). Podemos perceber Woo tentando colocar o seu estilo de direção de atores e construção de personagens nos protagonistas destes filmes, mas simplesmente não dá certo. Tom Cruise é Tom Cruise, afinal, e ele é quem manda na franquia. O resultado é que os filmes são tépidos, e pontuados por um estilo de atuação esquizofrênico. O verdadeiro Missão: Impossível de John Woo é Rajadas de fogo (Once a Thief, 1991).
Neste filme, uma comédia de ação que acompanha um trio de ladrões altamente especializados promovendo roubos ousados e exagerados por todo o mundo, temos a fusão do heist movie com o filme de gângster. O submundo de Rajadas de fogo é, em essência, o mesmo mundo secreto da Impossible Mission Force (IMF) ou do MI6 de James Bond. Woo consegue criar uma unidade familiar improvável, onde excluídos da sociedade roubam para sobreviver, se divertir e também encontrar o seu lugar ao mundo. A trama de Rajadas de fogo é sentimental, sim, como muitos filmes do mesmo período, mas as particularidades de direção de atores, caracterização, e desenvolvimento de personagens funciona. E nenhuma das cenas espetaculares de ação contidas nesse filme deixam a desejar a que vemos em qualquer aventura de Ethan Hunt. Pelo contrário.
“Rajadas de fogo” já começa com uma sequência espectacular de roubo.
Joey (Chow Yun-fat) e James (Leslie Cheung) precisam roubar um quadro em um castelo medieval europeu - que é totalmente equipado com um sistema de segurança hight tech - lasers e sensores de movimento e peso. Semelhante ao que Brian De Palma faria quase dez anos depois no primeiro filme de “Missão: Impossível”, Woo orquestra uma elaborada - e tensa - sequência de acrobacias, onde os dois heróis driblma o sistema, sempre por um triz.
Seguindo a mesma lógica de acrobacias, Woo chega perto de inventar algo como um “Car Fu”, em uma sequência de perseguição de carros que poderia ter saído de um filme de Buster Keaton ou Harold Lloyd - mas ainda mais exagerada e absurda.
A perseguição termina com Joey lançando seu carro contra uma lancha - a explosão, naturalmente, rivaliza com aquelas criadas por J. Robert Oppenheimer.
Mesmo nas sequências de tiroteio mais elaboradas, Woo mantém um senso de physical comedy, variando sobre temas que ele mesmo criou em filmes anteriores. O filme continua sendo violento, mas não é cruel - o nível de violência aqui chega ser de desenho animado. Os oponentes atingidos por tiros e explosões são lançados e arremessados por salas, se chocando contra paredes e atravessando janelas, cômodos…
E ainda por cima temos um oponente que lança cartas de baralho cortantes. Absurdo? Talvez, mas não muito diferente do que vemos em um filme de James Bond.
E isso nos traz de volta a Silent Night. É fato que Stahelski e o time da 87Productions são profundamente influenciados pelo Gun Fu desenvolvido por Woo e Lam, e conseguiram abrir um caminho comercial e artístico nos Estados Unidos para esse tipo de filme, que nunca tinha dado certo antes. Mas é mais surpreendente ainda que tenham conseguido fazer isso trazendo a pura plasticidade pictórica que tanto influenciava o cinema de Hong Kong. Já falei do delírio de cores e música que são os filmes de John Wick, Atômica e Trem-Bala (Bullet Train, 2023, de David Leitch) - mas são filmes que conseguem ser ainda mais ousados visualmente por conta dos avanços tecnológicos que o cinema sofreu desde os anos 80 e também pelo fato de que a própria indústria americana é muito mais bem equipada e financiada que a de Hong Kong de 40 anos atrás (e, claro, continua assim até hoje). Então, o encontro de Woo com Stahelski e Leitch faz sentido pois, ironicamente, seus aprendizes podem possibilitar que o mestre, enfim, realize o seu potencial nos Estados Unidos. Isso vai acontecer de fato? Não sei. Só posso afirmar quando o filme sair de fato. Mas é promissor.
Meu ponto é: Woo foi superado? Talvez essa pergunta em si não seja correta, pois ela pressupõe que o cinema - ou mesmo a arte - seja uma sucessão de estágios, e não creio que seja assim. Grandes artistas possuem suas marcas, suas vozes que são únicas e, portanto, não estão sujeitas a serem superadas ou ultrapassadas. Com isso, não creio que seja correto dizer algo como “Paul Greengrass é menos que John Woo”. Os dois fazem filmes de ação, mas filmes que são consideravelmente diferentes uns dos outros. No entanto, quando eu vejo o sucesso - merecido - das produções da 87 eu me pergunto se Woo de fato foi superado.
John Wick 4: Baba Yaga é sem sombra de dúvida o melhor de toda a franquia, e o melhor filme até então do time Stahelski-Leitch-Konstadt. Mas é um filme totalmente calcado nas inovações trazidas por John Woo anos atrás. Se há algo que John Wick 4 faz muito bem é ser, de certa maneira, um filme “puro” - semelhante ao que George Miller fez em Mad Max: Estrada da Fúria Mad Max: Fury Road, 2015). Ambos os filmes - que coincidem de ser o episódio quatro de suas respectivas franquias - tem uma certa pureza que remetem ao cinema de Hong Kong: protagonistas lacônicos, em narrativas simples que são basicamente uma grande e longa cena de ação. John Wick 4, assim como Mad Max: Estrada da Fúria, supera os anteriores ao não se preocupar mais em apresentar personagens, tramas e o universo ficcional. Esses elementos narrativos se tornam um playground colorido para que os cineastas possam conceber cenas cada vez mais elaboradas de ação - e os filmes se tornam exatamente isso. Por isso, de certa forma, representam a vontade ansiada (e muitas vezes atingida) de diretores como Woo, Lam e Hark. Cinema popular, de entretenimento, mas com um ousadia artística e experimental. A diferença, claro, é que Mad Max: Estrada da Fúria capitaliza numa tradição tipicamente ocidental do filme de ação - no caso, o filme de perseguição, cuja origem pode ser traçada aos irmãos Lumière, Edwin Porter e D. W. Griffith, mavericks dos primórdios da Sétima Arte. Já John Wick 4 é a culminação do estilo Gun Fu nos Estados Unidos - e a franquia em si bebe nas mesmas fontes que Woo bebeu em seus anos de formação na China: faroestes, filmes de samurai, rock’n’roll e a ideia de um protagonista estilo “cavaleiro solitário” que enfrenta, sozinho, a ordem que rege o mundo.
Mesmo um filme tépido como “Missão: Impossível 2” conserva as qualidades puramente visuais do cinema de John Woo.
No entanto, John Wick 4 - e a franquia como um todo - possuem um certo distanciamento irônico em relação ao próprio material. Para dizer isso de uma forma bastante pretensiosa, é um tipo de postura tipicamente pós-moderno em relação ao gênero e ao personagem. Não digo isso como uma crítica per se. Stahelski e Konstadt abraçam o gênero e as cenas de ação com uma fúria plenamente consciente do material que tem às mãos, e John Wick 4 é um como um longo solo virtuoso de guitarra. Já os filmes de John Woo - talvez por seu catolicismo - possuem uma visão de mundo mais profunda, e o senso de sacrifício (que vemos tanto em Butch Cassidy and the Sundance Kid quanto nos filmes de Bruce Lee) dos seus heróis ganha uma ressonância diferente. O típico herói de Woo - Chow-Yun Fat - se lança no ar com duas pistolas na mão, sozinho contra um exército de oponentes, com um senso de desespero. Sim, há um cuidadoso balé nessa coreografia, mas os níveis apocalípticos de destruições desenfreada e sangue que resulta desses tiroteios possuem uma realidade crua.
A primeira sequência de ação de “Hard Boiled” mostra um Woo perfeitamente maduro, onde a primeira cena do filme supera tudo o que o diretor havia feito até então em Hong Kong.
A sequência se passa em um restaurante e casa de chá. Parte da inteligência de Woo e dos produtores foi filmar em um prédio que estava abandonado e seria demolido. Isso permitiu aos cineastas não só cenografarem o restaurante como quisessem, mas que também o destruíssem com explosivos usados no tiroteio.
A ação começa e o caos se instaura. A destruição do restaurante, somada ao fato de termos civis e garçons tentando fugir, e Chow Yun-fat (como o Inspetor Tequila) saltando por todos os lados e deslizando no chão, logo tornam a cena em caos completo. Isso funciona, no entanto, pois a ideia é apresentar Tequila como um policial durão estilo Dirty Harry (Clint Eastwood), que não mede esforços para eliminar os bandidos.
A cena termina com Tequila completamente coberto de farinha branca. Mesmo tendo rendido o bandido, ele o executa do mesmo jeito. O branco o codifica como herói, mas o sangue que espirra em seu rosto pintado de branco o marca como um tira durão - hard boiled, portanto.
Boa parte disso vem da própria câmera de Woo, assim como a sua montagem. Essas sequências de ação são cortadas com uma precisão visual e rítmica que fariam um Sergei Eisenstein aplaudir. É difícil conceber em imagens e texto o puro deleite visual de uma sequência de ação, mas podemos ressaltar alguns elementos, de ordem interna e externa.
Na ordem interna, temos as composições de cada quadro. Woo usa poucos planos médios, favorecendo planos abertos e fechados, de detalhe. Nos abertos, usa lentes grande-angulares, que possuem uma certa distorção (estilo fish-eye). Esses planos abertos abarcam múltiplas camadas de profundidade, e é onde Woo situa o espectador na geografia espacial da cena. Faíscas, fogo, explosões e disparos de armas - vindos de todas as direções - são comuns, e geralmente vemos o herói saltando com duas pistolas na mão no meio desse caos. Já os planos fechados, no entanto, geralmente temos lentes macro (50mm para cima) - enquadramentos de faroeste, ao estilo Sergio Leone. O posicionamento de câmera complementa essa escolha de lentes, e não há qualquer negociação com o meio termo - Woo vai para o limite o tempo todo.
Na ordem externa, temos a própria montagem desses diferentes planos. Planos fixos se alternam a planos abertos, com movimento de câmera. São pequenos planos-sequência, que geralmente ficam abaixo de 1 minuto de duração, mas que aumentam a tensão e o suficiente a ponto de que o corte seco - geralmente para um enquadramento fechado - funcionam quase como um golpe na montagem do filme.
A sequência final de “Hard Boiled” é, com justiça, uma das maiores sequências de ação da história do gênero. Nela, a Tríade tomou para si um hospital inteiro, fazendo de reféns e escudos humanos todos os funcionários e pacientes que lá se encontram.
Cabe a Tequila e o detetive infiltrado Alan (Tony Leung) tomarem o hospital de volta. A sequência, que dura quase 40 minutos, é a culminação de tudo que Woo aprendeu em seus filmes anteriores. Por um lado, é como o final apoteótico de “A Better Tomorrow II”, onde um exército de gangsters é morto pelos heróis; por outro, temos as acrobacias - o Gun Fu - de “Once a Thief”, mas com toda a violência existencial de “The Killer”, ao invés do humor. É o exemplo, até hoje, mais perfeito e bem acabado do “Heroic Bloodshed” e do Gun Fu de John Woo.
3A. Um dos exemplos de como Woo fragmenta o tempo, misturando diferentes velocidades de filme e raccords. Primeiro, vemos Tequila se lançar de joelhos no chão, com a espingarda, deslizando em direção aos gangsters da Tríade, enquanto os civis abrem caminho, como as ondas do Mar Vermelho se abrindo para Moisés.
3B. No contraplano, Tequila já está de joelhos no chão, escorregando em direção aos gangsters, e os civis se deitam no chão, saindo da linha de fogo.
3C. Woo retorna ao plano inicial, mas usa outro take, e usa um raccord anterior, repetindo a ação de Tequila cair no chão de joelhos, com os civis saindo do caminho, Mas, nele…
3C. … quebrando a continuidade da cena, Tequila dispara, mesmo com os civis ainda saindo do caminho. Woo mistura tempos e valores de lente (o acima é mais telado, ao passo que o contraplano é uma grande angular). O resultado é concentrar a ação em Tequila, e criar movimento e dinamismo na ordem interna e externa da montagem da cena.
A parte mais impressionante do clímax de “Hard Boiled” é uma sequência onde Tequila e Alan precisam abrir caminho entre um exército de gangsters da Tríade.
É um plano sequência de 4 minutos de duração. Nele, Tequila e Alan avançam por um labirinto de corredores, enfrentando um exército de gangsters que os atacam de todas as direções. Sem sombra de dúvida, é uma sequência que inspirou Gareth Evans no primeiro “The Raid”, onde dois policiais - principalmente Yuda (Iko Uwais) - tinham de enfrentar um exército de criminosos. O que torna o plano-sequência de “Hard Boiled” impressionante até hoje é a precisão de tudo: desde o uso acertado de câmera na mão, passando pela coreografia impecável dos atores e dos dublês, sem contar os disparos das armas e a destruição causada no cenário, que envolve a detonação de explosivos remotos, iluminação dinâmica e o disparo de efeitos físicos como partículas e fumaça. O plano-sequência em si gera uma sensação de tensão máxima, pois o corte, afinal, é um respiro. Não há respiro algum. Tequila e Alan chegam até um elevador e entram nele.
É um momento onde esperaríamos que Woo cortasse, mas não.
A sequência ainda continua em outro andar, com ainda mais ação e explosão.
O plano-sequência termina com a chegada de Mad Dog (Philip Kwok), o guarda-costas de Johnny Wong (Anthony Wong), líder da Yakuza. Vale lembrar que Mad Dog é o mesmo nome que Gareth Evans usa para um personagem semelhante em “The Raid” (interpretado por Yayan Ruhian).
Mesmo em um filme inferior como Missão: Impossível 2 podemos vislumbrar um pouco dessa genialidade visual de John Woo.
Na arte do cinema popular, os visuais vívidos são repletos de emoção. Para atrair um público de massa, a arte popular lida com emoções como raiva, repulsa, medo, felicidade, tristeza e indignação. Como estes sentimentos evidentemente operam em todas as culturas, um filme que os atrai viaja bem. O entretenimento mobiliza paixões de playground, respostas directas à agressão, bondade ou egoísmo flagrantes. O cinema é particularmente bom em despertar emoções cinestesicamente, através da ação e da música. Bruce Lee pediu a seus alunos que dessem às suas técnicas de luta “conteúdo emocional”, como raiva propositalmente dirigida. , você pode sentir-se tenso e se contorcendo ao ritmo da luta. Esta é a emoção cinematográfica em sua forma mais puramente física.
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 6. Tradução minha.
Bordwell nota como o cinema extremamente popular e comercial de Hong Kong mobiliza paixões intensas e reações extremas através do seu puro deleite visual, essa dinâmica interna X externa que comentei. O gênero de Heroic Bloodshed, popularizado por John Woo, Ringo Lam e Tsui Hark, que remonta aos próprios arroubos furiosos do cinema de Bruce Lee, dispensa as típicas noções de melodrama que temos aqui no Ocidente em favor de uma expressividade puramente visual. Essa expressividade aparece em todas as dimensões dos filmes, da atuação até as cenas de ação em si.
As bases da “linguagem cinematográfica” foram lançadas pelo cinema de entretenimento dos anos 1900 e 1910, quando os diretores tinham que transmitir as histórias de forma rápida e vívida. D. W. Griffith, Victor Sjöström e Louis Feuillade, os três melhores diretores do período anterior a 1918, produziam filmes para o público de massa. O cinema popular de hoje preserva muitos dispositivos dos primeiros anos do meio – a perseguição, a fuga por um fio de cabelo, o herói pendurado no penhasco, a luta contra as tempestades, a gravidade ou as locomotivas. O cinema de Hong Kong, na sua busca por clareza e impacto, revitalizou as técnicas do cinema mudo. Câmera lenta e rápida, edição dinâmica, ângulos de câmera marcantes e outros dispositivos que a vanguarda da década de 1920 declarou serem “puramente cinematográficos” tornaram-se estoque no comércio neste cinema popular. Seus criadores redescobriram intuitivamente o flashback curto e nítido que serve para lembrar ao público uma cena anterior, bem como a “inserção simbólica” adorada nas primeiras histórias cinematográficas.
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 6. Tradução minha.
Imagens de “À Flor da Pele” (“Full Contact”), de Ringo Lam. O primeiro filme de ação de Lam, filmado inteiramente em Taiwan, e calcado no estilo de John Woo. No entanto, apesar de haver muito derramamento de sangue, há pouco heroísmo. O mundo de Ringo Lam é muito mais cínico, niilista e noir. Se Woo bebe na fonte do “hard boiled”, Lam busca inspiração em tramas simples que articulam a pura brutalidade do mundo.
No entanto, é interessante ver como Lam sabe construir imagens icônicas e únicas, tal como John Woo e outros de seus colegas do mesmo período. O objetivo, aqui, é a pura comunicação visual, com o uso de cores expressivas e enquadramentos igualmente expressivos.
É interessante contrastarmos esse estilo de Woo e Lam com o de Michael Bay. O norte-americano parece querer afundar o espectador numa blitzkrieg de sons, cores e puro caos. É um cinema agressivamente visual, de linguagem de videoclipe. Já os chineses parecem interessados em comunicar ideias, sentimentos e mesmo as narrativas de seus filmes com o visual, por isso que bebem na fonte do cinema mudo.
É interessante ver como John Woo constrói essa linguagem puramente visual em The Killer. Lançado em 1989, podemos afirmar que, neste filme, Woo conseguiu de fato, pela primeira vez, colocar sua visão em prática. É notório a evolução do cineasta desde o primeiro Alvo duplo. Os sucessos comerciais e críticos de seus filmes anteriores permitiram ao diretor mais acesso e controle criativo sobre os seus filmes, principalmente no quesito a ter um corte final (Tsui Hark produziu os filmes anteriores do diretor, e seu controle criativo sobre certos aspectos da produção e da montagem fez com que ambos rompessem a parceria criativa e financeira). Sobre certos aspectos, The Killer chega ser um filme abstrato, que existe num nível puramente visual. Suspeito que, se tirássemos o som dele, ainda assim compreenderíamos perfeitamente a sua história. Essencialmente um tributo a Jean Pierre Melville e Martin Scorsese, o longa de Woo é um veículo para que o diretor possa explorar temas como honra, sacrifício, redenção e sobre como duas pessoas virtualmente opostas e antagônicas podem desenvolver laços profundos de amizade. Ao meu ver, é o exemplar mais bem acabado e realizado do gênero Heroic Bloodshed (ainda que, também de acordo com minha visão, Hard Boiled seja a obra máxima do diretor).
Ah Jong (Chow Yun-fat) é um assassino profissional, de contrato e, após um serviço - que deveria ser o seu último antes de se aposentar -, ele acidentalmente cega uma cantora de jazz (Jennie, interpretada por Sally Yeh), durante um tiroteio. Culpado, Jong passa a cuidar da moça (que não sabe ter sido ele o responsável pelo seu ferimento). Gradualmente os dois desenvolvem um relacionamento, que é perturbado pela notícia de que, caso Jennie não faça uma caríssima cirurgia de transplante de córnea, ela ficará permanentemente cega. Com seu senso de responsabilidade e culpa diante do que fez a Jennie, Jong retorna ao trabalho como assassino, para ganhar dinheiro para a operação.
Paralelamente a essa história, acompanhamos a vida do inspetor Li Ying (Danny Lee). Durante uma perseguição a um criminoso, Ying sem querer causa a morte indireta de um inocente, o que o faz ser demovido de seu posto. Isso faz com que ele seja colocado em rota de colisão com Ah Jong, que assassina um poderoso líder da Tríade, a máfia chinesa. A partir desse momento, Ying e Jong são colocados em um violento jogo de gato e rato, e a trama se complica ainda mais quando não só Ying descobre a existência de Jennie, como também Jong é traído por seus contratantes, uma facção rival da Tríade. Os dois percebem que, na verdade, são aliados - Woo deixa claro que o senso de honra e dever, assim como a possibilidade de redenção - é o que pode os unir. O filme termina em um violento tiroteio numa igreja que serve de esconderijo para Ah Jong. Ao final, o assassino por contrato morre nos braços de Ying, que promete cuidar de Jennie e providenciar a cirurgia com o dinheiro sujo da Tríade.
É uma trama simples, clichê, previsível. Mas ela mesmo não importa - o que importa para Woo é a pura articulação das ideias contidas na trama em termos visuais. Por isso que afirmo que The Killer é um filme abstrato, pois ele existe puramente no nível audiovisual. Não há as típicas ambições literárias ou dramatúrgicas, nenhuma tentativa de se atingir alguma forma de profundidade psicológica. A ação - compreendida aqui em seu sentido mais amplo - é a única coisa que importa. A título de ilustração, a forma como Woo trabalha os figurinos de Ah Jong e Li Ying é exemplar.
No começo do filme, Ah Jong veste preto e branco, mas majoritariamente, preto. Isso já aponta para a natureza de sua personalidade.
Após a sequência inicial, ele se veste quase que inteiramente de preto. Aqui, ele visita Jennie, e passa a cuidar da jovem cantora. Ah Jong aparece banhado por uma luz neon vermelha, que remete à…
Visão que Jennie tem do dia em que Ah Jong a cegou. Uma típica composição do cinema mudo, Woo articula o puro simbolismo nesta composição: Ah Jong, de preto, atirando diretamente no espectador, com uma explosão de sangue em um fundo abstrato.
No primeiro confronto entre Ah Jong e Li Ying, Woo demarca bem a posição (existencial) dos personagens com seus figurinos: Jong está de preto, e Li Ying, espelhando Jong na cena de abertura do filme, está majoritariamente de branco, mas possui linhas escuras em seu figurino.
Com o avançar da história, Li Ying percebe que vive em um mundo permeado por corrupção e travas burocráticas. Ele também precisa cruzar a linha e, de certa maneira, se tornar um fora da lei, para prender Ah Jong e as tríades que estão envolvidas na trama. Seu figurino reflete isso, como nesta cena em sua roupa é quase inteiramente preta, com pequenas listras brancas.
Em igual medida, Ah Jong também passa a se vestir de branco (com algumas peças escuras, como a gravata).
Quem é herói e vilão nesta cena? Importante notar a entrada uma terceira cor: o vermelho sangue.
Ao final, Ah Jong e Li Ying estão, finalmente, unidos, e seus figurinos refletem essa condição existencial: são “irmãos de sangue”.
Com isso, Woo está deliberadamente seguindo uma clássica codificação do gênero western: o herói usa chapéu branco e o vilão, preto. Isso é uma tradição que remonta aos primórdios do gênero, durante o cinema mudo e, claro, preto-e-branco. Pode ser um clichê, mas Woo o retoma num contexto de cinema falado e colorido para expressar visualmente a transformação interna dos personagens, e quais papéis eles passam a desempenhar na trama. O mesmo vale para as próprias composições icônicas que Woo faz. A força artística de The Killer reside na pura maestria que Woo possui como artesão, como criador de imagens.
Para orquestrar uma abundância de apelos [visuais e emocionais], você precisa de artesanato. Intelectuais que discorrem sobre significado cultural de um filme ou música pop não prestam praticamente nenhuma atenção às maneiras pelas quais o artesão usou o meio. Talvez eles pensem que é fácil fazer algo divertido, emocionante. Deixe-os tentar. O entretenimento de massa parece fácil apenas para aqueles que não lutaram para filmar uma cena coerente, escrever uma música aceitável ou desenhar um desenho animado decente. A competência no cinema é uma conquista a ser valorizada; muitos dos jovens diretores de hoje poderiam estudar com proveito o Roy Del Ruths da Era Dourada [do cinema]. “Um grande diretor”, observou Andrew Sarris certa vez, “tem que ser pelo menos um bom diretor.” E o cinema especializado não pode consistir apenas em seguir regras mecanicamente, pois não há dois problemas criativos exatamente idênticos. O veterano conhece as rotinas práticas, as soluções padrão e, em seguida, as adapta a situações novas - talvez configurando tecnologias e problemas técnicos a serem engenhosamente superados. Arte exige flexibilidade, engenhosidade e não pouca quantidade da imaginação. Os efeitos diretos e fortes valorizados pela estética popular são muitas vezes o produto de modelagem sutil.
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 9. Tradução minha.
“The Killer”.
Não é à toa que Bordwell, após uma extensa e brilhante discussão sobre como o cinema comercial popular pode, também, ser artístico, termine com uma análise sobre a forma como Michael Mann, em Fogo contra fogo, subverte as sutis técnicas de plano e contraplano em uma “simples” cena de diálogo entre dois personagens. Um artista, por mais comercial ou popular que o seja, sabe perfeitamente como usar ou explorar tais convenções (industriais, comerciais e mercadológicas) para benefício próprio. É isso que faz um Mann, um Alfred Hitchcock, um David Fincher e um Christopher Nolan, por exemplo, se destacarem dos seus colegas igualmente focados em cinema comercial. E isso se aplica, claro, a John Woo. Inclusive, é interessante ver como essa própria pureza audiovisual presente em The Killer de certa forma antecipa o próprio trabalho de Mann em Fogo contra fogo (eu me responsabilizo por esses paralelos, pois Bordwell não o faz).
A Hong Kong de “The Killer” é uma distopia de neon e urbanismo descontrolado, uma “capital da solidão”.
Cena de “The Killer” que parece antecipar “Fogo contra fogo”, de Michael Mann.
O legado do cinema de Hong Kong é extenso. A atriz Maggie Cheung, por exemplo, que foi “descoberta” por Jackie Chan em Police Story: A Guerra das Drogas (Police Story, 1985, dirigida e estrelada por Chan), interpretaria a personagem principal no filme Irma Vep (idem, 1998), do francês Olivier Assayas. Uma espécie de remake/homenagem metalinguística aos filmes de aventura que Louis Feuillade fazia na década de 1910, Assayas reconhece não só o papel do cinema de Hong Kong na indústria global de cinema no final dos anos 1990, como também percebe como este cinema recupera a tradição artística e popular do cinema mudo, de uma maneira que o próprio cinema europeu e ocidental não conseguia mais.
E talvez seja com essas conclusões de Assayas que eu me pergunto se de fato tivemos um cinema de ação popular e artisticamente tão acabado quanto o de John Woo no Ocidente. Apesar de conter referências e homenagens visuais a filmes do passado, o fato é que Woo criou um cinema autêntico e com uma voz única. Revisitar os seus filmes dos anos 80 e começo dos 90, em especial The Killer e Fervura Máxima, é ver algo que poucas vezes no cinema atual. Trata-se de um dinamismo visual, de uma ousadia cinematográfica que só pode ser rivalizada nos dias de hoje nos filmes de Gareth Evans e Mad Max: A Estrada da Fúria - e, talvez, em John Wick 4. O que diferencia o mais recente filme da franquia John Wick dos longas de Woo é o fato de que o último é absolutamente comprometido com sua visão de mundo, sem qualquer tipo de distanciamento irônico ou crítico. Seus temas explodem na tela, pura e simplesmente.
A autoria de Hong Kong, como tudo o mais neste cinema, pode superar a norma: extravagantemente eclética, agressivamente distinta. Woo é o derradeiro autor de Hong Kong, plenamente consciente da sua personalidade de realizador, adaptando os seus temas e técnicas às necessidades do momento, ansioso por torná-los o seu cartão de visita internacional, pronto para transformá-los em marcas registadas. “John Woo é Deus”, meus alunos me dizem. A observação lembra dois momentos. A primeira ocorre em Confusão à Moda Chinesa [Plain Jane to the Rescue, 1982]: a heroína está trabalhando em um escritório de desempregados e John Woo se aproxima dela explicando que é diretor de cinema. Jane: “O que um diretor faz?” Uau: “Ele é um deus!” Ao levantar os braços, ele é banhado por um raio de luz. Em Alvo Duplo, Ho pergunta a Mark: “Você acredita que existe um Deus?” “Claro”, responde Mark. “Eu sou um... Um deus é alguém que controla seu próprio destino.”
Planet Hong Kong: Popular Cinema and the Art of Entertainment, de David Bordwell. Pág. 71. Tradução minha.
O cinema de ação de Hollywood sempre esteve de alguma forma ligado ao cinema de ação asiático - e vice-versa. Mas é curioso que a indústria norte-americana nunca tenha de fato absorvido plenamente as influências de Hong Kong. Não só pela carreira que John Woo e Ringo Lam tiveram nos Estados Unidos, mas mesmo projetos que visavam referenciar diretamente este cinema, como é o caso de O monge a prova de balas (Bulletproof Monk, 2003, de Paul Hunter), que conta com Chow Yun-fat no papel principal e que, sendo uma adaptação de história em quadrinhos deveria ao menos conter algum(ns) dos arroubos estilísticos ousados do cinema de Hong Kong, termina que por ser um filme tépido e entediante.
Como falei anteriormente, os Estados Unidos conseguiram seguir o cinema asiático em filmes mais fantásticos como Matrix, mas no geral as influências mais profundas desses filmes ocorreram mesmo nos videogames. O mais significativo de todos é o game Max Payne (2001), desenvolvido pela finlandesa Remedy Entertainment e com roteiro e direção artística de Sam Lake. O game, distribuído pela infame Rockstar Games (a mesma desenvolvedora por trás dos games da franquia Grand Theft Auto e Red Dead Redemption), é um denso neo-noir de vingança, que acompanha a trajetória de Max Payne, um policial de Nova York que busca os verdadeiros culpados pelo brutal assassinato de sua esposa e filha.
O game é o perfeito casamento entre Ocidente e Oriente. Do lado do Ocidente, temos uma trama de vingança perfeitamente calcada em um universo brutal. A trama de vingança se assemelha a filmes dos anos 70 como Desejo de Matar (Death Wish, 1971, de Michael Winner) e A outra face da violência (Rolling Thunder, 1977, de John Flynn), e o game possui uma estética inspirada nas graphic novels de Frank Miller. A Nova York do jogo - por vezes chamadas de “Noir York City” - passa por uma violenta tempestade de neve, e o cenário é nada menos que apocalíptico. Do lado do Oriente, temos a típica ação de John Woo - o jogador pode desacelerar o tempo e lançar Max contra os oponentes, disparando neles enquanto mergulha pelo ar, desviando de tiros, exatamente como Chow Yun-fat o faz em incontáveis filmes do diretor. Além disso, Sam Lake não tem medo de colocar melodrama e outros aspectos mais bizarros em seu game, em uma trama que envolve uma conspiração biopunk (com a mega-corporação Aesir envolvida nos crimes) e o desenvolvimento de uma droga chamada Valkyrie. Lake costura elementos da mitologia nórdica tal qual os cineastas chineses colocam folclore típico em suas tramas que envolvem as Tríades e a Yakuza. O resultado é um game único, a perfeita continuação dos experimentos de Woo e Lam.
Reforço que os games souberam seguir aonde esses cineastas pararam pois nem mesmo a adaptação cinematográfica de Max Payne, o péssimo filme de 2008, de mesmo nome, dirigido por John Moore, conseguiu chegar perto do que Hong Kong fazia nos anos 1980. A franquia Max Payne continuou firme e forte, tanto que o terceiro game, lançado em 2012, se passa em São Paulo e mistura a estética de ação dos chineses com a brutalidade neorrealista de Tropa de elite (2007, de José Padilha).
O próprio John Woo deve ter percebido a mesma coisa, pois em 2007 ele produz Stranglehold, a continuação de Fervura Máxima. Com gameplay fortemente inspirado em Max Payne (mais uma vez, o círculo se fecha) e com uma tecnologia até hoje surpreendente de destruição de cenários, controlamos o inspetor Tequila (mais uma vez interpretado por Chow Yun-fat) em uma trama que envolve uma disputa de Tríades no submundo de Hong Kong.
Mas o fato é que, salvo algumas exceções aqui e ali, o cinema de ação americano ou continuou fazendo o que sempre fez (seguindo a linha de westerns) ou, mais recentemente, foi tomado por blockbusters repletos de efeitos especiais digitais. Por isso que devemos celebrar os filmes da 87Productions, pois eles representam uma tentativa de mudar esse cenário. Há muitos paralelos no que Stahelski, Leitch e outros fazem em seus filmes com o próprio cinema de Hong Kong: já mencionei que todos os seus protagonistas são variações no mesmo motivo de assassino/combatente/agente secreto de meia-idade versus o resto do mundo. Woo e Lam também faziam variações sobre o mesmo tema, explorando em diferentes filmes diferentes possibilidades de ação, ora mesclando com comédia, ora mesclando com aventura e espionagem. Os delírios visuais dos filmes da 87 também bebem na mesma fonte, e não tem medo de arroubos estilísticos puramente pictóricos. Assim como ocorre em The Killer, Fervura Máxima e À Flor da Pele, suspeito que John Wick 4 (assim como Mad Max: Estrada da Fúria) possa ser compreendido mesmo se pudéssemos tirar todo e qualquer diálogo do filme.
Todos esses longas nos convidam a pensar: o que é exatamente o cinema de ação? É fato que, quando assistimos a um filme de ação, imediatamente sabemos do que se trata e conseguimos identificar o gênero, mas ele em si não é de fácil definição, como é uma comédia ou o cinema de horror. Filmes de artes marciais são assim definidos pela sua complexa coreografia e decupagem, e o mesmo vale para os filmes de Gun Fu de John Woo. Mas e suas tramas? Podem envolver gangsters, ladrões, policiais corruptos, agentes secretos e até mesmo super-heróis e alienígenas (ou, como Gareth Evans nos mostrou, até mesmo horror sobrenatural). Há um senso permanente de dinamismo, de movimento. A ação em estado puro, como vemos nos filmes de John Woo e nos exemplares recentes de Chad Stahelski e George Miller, mostram algo que praticamente somente o cinema sabe fazer. Afinal, o cinema deriva da própria cinemática, a área da física dedicada a estudar o próprio movimento dos corpos, sua velocidade e aceleração em um determinado período de tempo e num determinado espaço. Ora, quando falamos em slow motion, fragmentação do tempo em múltiplos cortes e geografia de cena, estamos falando exatamente disso. O elemento especial do cinema de ação é justamente captar esse momento único, não mediado. Apesar das balas de festim, coreografia elaborada, squibs de sangue e explosões controladas, um acaso surge nos melhores exemplos desse cinema. De alguma forma, os cineastas parecem conseguir capturar algo. Sob o risco de soar pretensioso, busca-se capturar algo da essência do cinema. Quem melhor entendeu isso foi Olivier Assayas com seu Irma Vep - tanto o filme de 1998 quanto a minissérie de 2022 - por isso que são filmes sobre o próprio ato de se fazer filmes, e o quanto especial eles podem ser. E, sendo filmes comerciais, de nítido e explícito apelo popular, os cineastas tentam compartilhar com o grande público - a massa, se assim quiser - o que é exatamente essa magia.