Por aprendizado me refiro a uma atividade possível apenas para uma Inteligência capaz de escolha e autodirecionamento em relação a seus próprios impulsos e ao mundo à sua volta (…) Um aprendiz não é um recipiente passivo de impressões, nem é alguém cujas realizações brotam de meras reações às circunstâncias, nem é alguém que deixa de tentar aquilo que não sabe realizar. Um aprendiz é uma criatura de desejos mais do que de necessidades, de recordações tanto quanto de memórias; ele quer saber o que pensar e em que acredita e não meramente o que fazer. O aprendizado se ocupa da conduta, não do comportamento. Em resumo, essas analogias de argila e cera, de receptáculos a serem preenchidos e salas vazias a serem mobiliadas não tem nada a ver com o aprendizado e os aprendizes.
“Ensino e aprendizado”. In: A voz da educação liberal, Michael Oakeshott. Tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas. Pág. 84.
Dois rapazes estão em uma praia deserta, em um belo dia ensolarado. Um deles, Ken (Susumu Terajima) faz a mira com seu revólver, alinhando para uma lata de refrigerante que está apoiada sobre a cabeça de seu amigo, Katagiri (Rei Osugi). Ken acerta o tiro e a lata sai voando. Os dois jovens caem em risada, e é a vez de Ken ficar com a lata na sua cabeça. Katagiri é mais descuidado. Erra o disparo, erra a lata e quase acerta Ken, que fica, logicamente, indignado com o descuido do amigo. Mas ainda assim se divertem.
E, então, Murakawa (Takeshi Kitano), mais velho e vestindo camisa e calça social, se aproxima dos rapazes. Ele pede o revólver. Prontamente atendido - afinal, Ken e Katagiri são seus subordinados na rígida hierarquia da Yakuza -, Murakawa esvazia o tambor do revólver, deixando somente uma bala na arma. Ele gira o tambor, e a brincadeira, agora, é uma roleta russa. Murakawa decide que quem perder no Jokenpô (ou Pedra Papel Tesoura) será o alvo da arma. Disparo após disparo, e ninguém é atingido - e só resta uma câmara no tambor. E Murakawa perde. É a vez dele. Os dois rapazes se recusam a empunhar a arma, e serem responsáveis pelo assassinato de Yakuza respeitado. Bom, sem problema: Murakawa, sorridente, pega o revólver e aperta o cano contra a sua têmpora. Click.
Nada acontece. Murakawa devolve o revólver e vai embora, rindo. Os dois rapazes não entenderam nada. Naquela noite, Murakwa sonha com a roleta russa - mas, desta vez, a arma está realmente carregada, e ele dispara contra a própria cabeça.






A primeira vez que vi Sonatine foi por volta de 2008, talvez 2009, quando decidi estudar de vez a obra de Quentin Tarantino. Eu já conhecia o trabalho do diretor norte-americano desde a minha adolescência, quando assistia e re-assistia obsessivamente Cães de aluguel (Reservoir Dogs, 1992) e Pulp Fiction: tempos de violência (Pulp Fiction, 1994). Em especial, queria entender quais eram as referências contemporâneas de Tarantino - todo mundo sabe do papel de Sam Peckinpah, Brian De Palma e Jean-Luc Godard em sua formação e estilo. Entre suas influências contemporâneas, Tarantino menciona O Traidor (The Hit, 1984), de Stephen Frears e Sonatine (idem, 1993, de Takeshi Kitano).
The Hit é um filme pequeno, um road movie existencial (bem, todo road movie é existencial, de uma maneira ou outra), e acompanha dois assassinos de aluguel (interpretados por John Hurt e Tim Roth) que planejam executar Willie Parker (Terrence Stamp), um ex-gângster que delatou seus antigos colegas e, desde então, vivia escondido no programa de proteção a testemunhas. O que se segue é um thriller compacto e existencial dos três homens viajando de carro, da Espanha até Paris, com Parker tentando semear discórdia entre os dois assassinos. Trata-se de uma pequena pérola policial, um film noir com toques de Albert Camus. Tim Roth está tão bem no filme que foi escalado por Tarantino para interpretar o policial infiltrado Mr. Orange em seu filme de estréia.
Sonatine, por sua vez, é um filme muito semelhante a The Hit - mas, ao meu ver, superior. Trata-se de um drama policial, seguindo aparentemente o caminho traçado por Kinji Fukasaku (o diretor mais importante e influente do gênero), mas que, na verdade, é outra coisa inteiramente. Vou falar mais dele adiante, mas a importância deste filme para Tarantino é crucial.
O diretor americano entrou em contato com o longa de Kitano em festivais internacionais, onde a película foi agraciada com inúmeros prêmios, apesar de não ter sido um sucesso comercial em seu país natal. Tarantino ficou tão impressionado com o filme que adquiriu os seus direitos de distribuição (através de sua empresa de home video, a Rolling Thunder), chegando inclusive a gravar pequeno segmento comentando a importância de Sonatine - desde o estilo de Kitano até mesmo às inovações que ele mesmo traz ao gênero.
Quando eu vi o filme, no entanto, não entendi. Digo, eu entendi a narrativa, mas não entendi o que diabos Tarantino viu no filme que era tão importante para ele. Em seu vídeo comentário, o americano inclusive afirma que Kitano “estava fazendo a mesma coisa que ele, mas de um jeito diferente”. Sonatine é um filme enigmático, minimalista e que descontrai toda a dramaticidade das cenas. Kitano parece evocar Yasujiro Ozu tanto na mise-en-scène quanto na direção de atores (apesar de que seu filme se passa quase que inteiramente em externas). Ozu, no entanto, um mestre do “estilo transcendental” (de acordo com Paul Schrader), construía meticulosamente suas cenas, milimetricamente organizando os enquadramentos, a direção de arte e cenários, e os atores. Sonatine, por outro lado, mescla o minimalismo dramático de Ozu com uma espontaneidade e improvisação que parecem saídas de Jean-Luc Godard (uma das referências de Kitano foi O demônio das onze horas [Pierrot Le Fou], 1965). Não deveria dar certo, mas de algum jeito, dá. Tarantino reconhece que seu estilo é muito mais barroco, indo inclusive para o exagero dramático. Mas não é difícil ver como os toques existenciais e enigmáticos do filme de Kitano o impactaram em filmes como Pulp Fiction e Jackie Brown (idem, 1997).
De minha parte, eu retornei ao filme de Kitano após assistir O Assassino (The Killer, 2023), de David Fincher. São dois filmes que parecem ter bastante em comum um com o outro - talvez porque ambos se inspirem em O Samurai (Le Samouraï, 1967, de Jean Pierre Melville). E o que dizer? O filme de Kitano é um dos clássicos do cinema japonês, e um neo-noir impecável, que abriu caminhos para que Takashi Miike e outros cineastas pudessem enfim tentar outros caminhos nesse gênero para além das inovações que Fukusaku fez com o gênero Yakuza-eiga no início dos anos 70.
Sonatine é o quarto filme de Takeshi Kitano, mas só foi se tornar conhecido no Ocidente quando conseguiu distribuição comercial no Ocidente em 1997, após os esforços de Tarantino. O longa já era uma sensação em festivais de cinema mundo afora, tornando Kitano um dos mais celebrados cineastas japoneses dos anos 1990. Sua consagração de fato se deu quando da estréia de Hana-bi: Fogos de artifício (HANA-BI, 1997). Kitano foi considerado como “o novo Akira Kurosawa”, e o próprio mestre incluiu a película na sua lista de 100 filmes favoritos.
No Ocidente, Kitano é conhecido como um autêntico auteur, um cineasta que fez sua marca desconstruindo o cinema policial e Yakuza e, depois, prosseguiu com uma carreira marcada por experimentalismos com a forma cinematográfica. Geralmente interpreta policiais e gângsters durões, assassinos implacáveis que dificilmente esboçam alguma emoção. Seus filmes possuem um estética minimalista, com poucos diálogos e temas existenciais. Isso fez com que sua recepção no Japão, no entanto, fosse diferente da do Ocidente.
Takeshi Kitano é uma das celebridades mais conhecidas e famosas do país, mas fez sua fama como comediante (sob o nome de Beat Takeshi), sendo uma figura frequente em programas de televisão (no auge de sua fama nos anos 80 e 90 ele possuía diversos programas, que eram exibidos nos sete dias da semana), fazendo sketches e programas de auditório. Sua transição para o cinema, seja como ator, seja como diretor, foi mais difícil por conta disso. Kitano literalmente assumiu outra personalidade, e mesmo outro tom. Apesar de assinar a direção como Takeshi Kitano e estrelá-los sob Beat Takeshi, a verdade é o que os dois são uma única coisa no cinema. A expressividade de seus números de humor desaparece, e os personagens de Kitano são silenciosos, quase mudos, e ele quase não muda as expressões. Quando Alain Delon assistiu Sonatine, por conta da semelhança temática com O Samurai, o ator francês ficou frustrado com o estilo de Kitano, alegando que o intérprete japonês só possuía três expressões no filme inteiro. Esse estilo contribuiu para que Kitano sempre tivesse uma presença etérea nos cinemas japoneses - Sonatine, por exemplo, ficou somente duas semanas em cartaz em Tóquio, principal mercado do país.
Kitano estreou na direção com o filme Violent Cop (1989). Originalmente seria um filme de comédia dirigido por Kinji Fukusaku, mas como a agenda atribulada de Kitano gerou tensões entre os dois, e Kitano assumiu a direção após Fukusaku abandonar o projeto. Apesar de não ter recebido créditos por isso, Kitano reescreveu extensivamente o roteiro. Na superfície, Violent Cop é só mais uma variante de Dirty Harry. Kitano interpreta Azumi, um detetive durão, grosseiro, e ligeiramente corrupto. Cheio de dívidas por conta de apostas, Azumi é constantemente repreendido por seus superiores por fazer as coisas do seu próprio jeito: espanca criminosos e planta provas para prender suspeitos. O filme ainda lida com uma trama onde policiais corruptos entram em conluio com um chefão da Yakuza para traficar drogas.
Até aí, parece ser o tipo de filme de tira durão que já vimos incontáveis vezes. E Kitano sabia disso, por isso que optou por dirigir o filme de uma maneira quase bressoniana. O filme é minimalista, e quase não possui estrutura ou mesmo “ímpeto” narrativo. As cenas simplesmente acontecem, e a ligação entre os diferentes eventos é tênue. A trama de corrupção policial e drogas acontece quase que num pano de fundo, enquanto acompanhamos a rotina violenta e sórdida de Azumi, perseguindo bandidos e perdendo dinheiro em apostas. A maior parte do filme, no entanto, são longas cenas de Azumi caminhando de um lado para o outro pelas ruas de Tóquio, indo da delegacia para um restaurante, cena de crime ou sua casa. Além disso, Kitano parece mais interessado em mostrar a vida policial que não vemos no cinema. O filme é pontuado por explosões de violência que rompem com o ritmo deliberado. Espancamentos, perseguições e tiroteios são filmados de maneira rápida, controlada e extremamente violenta. A indiferença de Azumi diante de tudo isso se traduz quase como que uma apatia, que só é traída pela forma como Kitano magistralmente esconde a raiva insana que borbulha abaixo de expressões faciais rígidas. Por fim, Azumi possui uma irmã, Akari (Maiko Kawakami) que possui deficiência mental. Azumi cuida dela da maneira como pode, inclusive afastando homens que tiram vantagem sexual de sua debilidade.
A trama de tráfico de drogas eventualmente avança, e a Yakuza envia um assassino psicopata para lidar com as interferências de Azumi. Kiyohiro (Hakuryu) e seus comparsas sequestram a irmã de Azumi, enquanto Kikuchi tenta assassinar o policial. No cativeiro, Akari é estuprada repetidamente pelos homens de Kiyohiro, que também receberam as ordens de viciá-la em heroína. Ao final, Azumi executa brutalmente Kiyohiro e liberta a sua irmã. No entanto, ao ver que a jovem está viciada em droga, vasculhando desesperadamente os bolsos de Kikuchi, Azumi decide executá-la em misericórdia - só para ser morto por outro gângster. O filme termina com o detetive Kikuchi (Makoto Ashikawa) percorrendo o mesmo caminho de Azumi, de sua casa até a delegacia. Kikuchi é um jovem detetive, recém-ingresso na polícia, e que serve como aprendiz do detetive mais velho (numa dinâmica semelhante à que Antoine Fuqua faria com seu Dia de Treinamento [Training Day, 2001]). Numa virada profundamente cínica e pessimista, no entanto, Kikuchi é questionado pelo comissário se ele deseja dar prosseguimento ao esquema de distribuição de drogas. Kikuchi aceita, sorridente.
Pôster japonês de VIOLENT COP (1989).
Violent Cop é um neo-noir extraordinário, ainda mais tendo em conta que se trata de um filme de estréia. Ele tem problemas: Kitano nem sempre consegue conciliar sua linguagem minimalista com o roteiro clichê, mas quando funciona, funciona. O longa possui uma qualidade quase surreal, e somos embalados pelas imagens marcantes (Kitano utiliza poucos enquadramentos por sequência, e raramente usa detalhes ou Big closes) e pela trilha. Além disso, os personagens dificilmente explicam suas motivações, e cabe a nós supormos o que se passa em suas vidas interiores, e o que os move, sobretudo Azumi, que parece flutuar de cena a cena, semelhante ao ladrão Walker (Lee Marvin) de À Queima-Roupa (Point Blank, 1967, de John Boorman). Mas o que mais chama a atenção no longa é a visão de mundo de Kitano, marcada por um niilismo brutal e avassalador. Ao final do filme, ele deixa claro que os ciclos de violência que ocorrem no submundo e na sociedade japonesa como um todo (a película abre com jovens de classe média alta espancando um mendigo, isso sem contar as cenas de estupro) são perenes, insolúveis.
Violent Cop foi um sucesso modesto nas bilheterias japonesas, se tornando uma espécie de clássico cult instantâneo. Kitano prosseguiria explorando caminhos estéticos pelo gênero policial, efetivamente desconstruindo o gênero Yakuza que foi consagrado por Kinji Fukusaku nos anos 70. E isso nos leva a Sonatine, em 1993.
Sonata
[So-na-ta]
1 No século XVI, denominação comum a toda peça instrumental, em oposição às peças vocais.
2 Composição instrumental geralmente para piano solo ou para dois pianos, que, tendo como base a sonata clássica do século XVIII, se modifica e se renova, a partir do final do século XIX e do século XX, com a incorporação de novos sistemas e estéticas musicais.
3 Composição clássica com vários movimentos, de caráter e andamento diversos, mas relacionados tonalmente, na qual pelo menos um dos movimentos, quase sempre o primeiro, apresenta o mesmo esquema da sonata forma.
(Dicionário Michaelis)
Assim como Violent Cop, a trama de Sonatine é, num primeiro olhar, bastante simples. Murakawa é um gângster experiente, um executor que ocupa o alto escalão de seu clã Yakuza em Tóquio. Tanto que a região da cidade controlada por ele se tornou extremamente lucrativa, o que precipita o seu chefe a tomar o território inteiramente para si. Sob o pretexto de ter de viajar a Okinawa para ajudar um clã amigo numa luta contra um rival, Murakawa logo se vê afastado de Tóquio. Suas suspeitas se confirmam quando ele é acompanhado por um grupo de jovens inexperientes, recém iniciados na Yakuza.
Takeshi Kitano como Murakawa, em SONATINE (1993).
Em Okinawa, Murakawa se junta a membros do clã amigo, e logo suas suspeitas se confirmam: o conflito é inconsequente. Na verdade, o clã de Tóquio vai se fundir ao de Okinawa numa joint venture, e Murakawa estava no caminho. Logo ele e seus colegas sofrem uma emboscada violenta. Murakwa e os sobreviventes de seu grupo decidem se refugiar em uma praia deserta e afastada em Okinawa, enquanto aguardam a tormenta passar. Lá, sem contato com o resto do mundo, e tendo de sobreviver em meio à natureza enquanto esperam o tempo passar, os gângsters se envolvem em atividades lúdicas. Brincam de sumô (encenam combates), dançam e cantam, participam de uma guerra de fogos de artifício - e também “brincam” de roleta russa.
Logo após chegar de Tóquio a Okinawa, os clãs se reúnem em um ônibus. Toda a sequência é ligeiramente cômica e absurda. Parece que os gângsters estão sendo guiados em um tour escolar.
Esse é um aspecto sinistro das brincadeiras. Elas começam de forma inocente, mas toda vez que Murakawa se envolve, elas se tornam arriscadas e potencialmente mortais. O que começa como um tiro ao alvo se torna roleta russa (e Murakawa perde); no meio de bangue bangue de fogos de artifício, Murakawa saca sua pistola .45, e dispara contra seus colegas (ele não atinge ninguém).
Paralelamente a isso, vemos os Yakuza tentando se adaptar a viver em um estado de natureza, tomando banhos de chuva, pescando. Murakawa se depara, numa noite (após sonhar com bala atravessando sua cabeça na roleta russa), com uma jovem é perseguida por um homem. Murakawa observa das sombras, e nada faz, inclusive quando ela começa a ser estuprada. Após um tempo, Murakawa decide intervir. O homem tenta atacar Murakawa com uma faca, enquanto afirma que o Yakuza não passa de um pervertido, que “gosta de assistir”. Murakawa executa o homem sem cerimônias. A moça, Miyuki (Aya Kokumai), fica perplexa com a completa falta de emoção por parte de Murakawa, e decide segui-lo. A partir daí, ela passa a viver junto aos homens na casa, e segue Murakawa por onde ele vai. Os dois parecem namorados, mas não se beijam nem fazem sexo. Uma cena particularmente sugestiva se dá quando os dois adentram uma mata fechada para se protegerem de uma tempestade. Miyuki tira sua blusa e expõe seus seios para Murakawa, que ri. São como Adão e Eva no Paraíso, se divertindo com o próprio estado de natureza.
Estado de natureza que é perturbado pela entrada de um homem misterioso vestido de pescador. O misterioso pescador é na verdade um hit man que trabalha para o clã de Murakawa, e que penetra, tal qual um anjo da morte, o refúgio idílico de Murakawa, e procede a executar quase todos seus comparsas. Os que não são mortos, fogem. Talvez por um sentimento de vingança, talvez porque é simplesmente o que lhe resta a ser feito, Murakawa decide voltar a Tóquio, onde arquiteta um plano para destruir os clãs que o traíram. E Murakawa faz isso com extrema eficiência, executando todos.
Ao término da chacina, ele volta para Okinawa, para uma Miyuki que o espera ansiosamente, em pé no meio de uma estrada de terra batida, aguardando o surgimento de Murakawa no horizonte. No entanto, pouco antes dele aparecer de fato, Murakawa estaciona o carro, puxa a sua pistola .45 e se mata. O filme acaba, com Miyuki o esperando, enquanto o sol se põe.
Mais uma vez, pode parecer um filme clichê, se não típico, do gênero Yakuza. Clãs em guerra, politicagem, violência extrema, o submundo japonês - pontuado por sexo, boates, dinheiro fácil -, tatuagens, honra e tudo aquilo que já sabemos serem clichês do gênero, ainda mais quando estes clichês foram fixados para sempre por Kinji Fukusaka ainda na década de 70. No entanto, Kitano opta por dirigir seu filme de uma maneira esparsa, minimalista.
Primeiro, há poucos diálogos, e as atuações são quase que inteiramente des-dramatizadas. Murakawa é basicamente uma estátua, e quase não possui expressões faciais. E, quando exprime algo, é como se alguém estivesse trocando uma máscara: sorriso, raiva. Mas, no geral, sua expressão é de pura apatia.
A decupagem segue o mesmo princípio. Sonatine é uma colagem de sequências que são contadas em dois ou três enquadramentos (e foi o próprio Kitano quem editou o filme). As sequências operam em uma outra temporalidade, com planos que sempre parecem se esticar após as ações dramáticas terem terminado. Kitano, no fundo, está interessado, mais uma vez, naquilo que não vemos num filme de Yakuza. O massacre ao final, por exemplo, é filmado à distância. Podemos ver os flashes do fuzil de Murakawa acendendo e apagando pela janela do prédio, e escutar os ruídos. Outras cenas de violência acabam tão rápido como começaram, e aqueles que participam dela se comportam como estátuas: rígidos, suas expressões não mudam, e seus corpos cravejados de balas simplesmente tombam no chão. Apesar do sangue que espirra, além de cenas de mutilação, elas são pouco chocantes. Nem os personagens parecem muito incomodados pelo que veem e fazem. É como se o próprio filme estivesse dando de ombros. Mas Kitano é metódico em sua direção, e nos deixa diversas pistas.
A circularidade é um tema recorrente em Sonatine. Há a circularidade do tambor do revólver usado na roleta russa; há a circularidade do ringue de areia da luta de sumô; há a própria circularidade da narrativa, que começa em Tóquio, vai para Okinawa, volta para Tóquio e de novo para Okinawa. Há uma circularidade geracional também: Murakawa é um Yakuza mais velho e experiente, que conduz seus subordinados mais jovens na missão. Os jovens ficam extasiados de serem comandados por um líder respeitado, e por vezes a trama de Sonatine aparenta ser uma trama de aprendizado. Bem, em diversos aspectos ela é mesmo. As brincadeiras infantis que os Yakuza fazem em seu interregno na natureza certamente adquire tons de jogos de aprendizado, pois todos simulam batalhas e rituais - duas coisas muito caras ao cinema Yakuza. O suicídio ao final é a única cena em que o tema principal de Sonatine se manifesta: a escolha.
Kitano escolheu Sonatine - sonata - como o título do filme pois, à época, estava estudando piano (Kitano, além de ator, diretor e comediante, é também pintor, ensaísta, músico e administra uma agência de talentos, a Kitano Office), e chegou ao momento de compor e tocar sonatas, compreendeu que o músico precisa fazer uma escolha: se pretende adotar o estilo clássico, o jazz, ou a música popular. É um momento crucial, definitivo para a carreira e a arte de um músico. Segundo Kitano, essa é a essência de Murakawa, e a sua decisão mesmo - a sua escolha - é a do suicídio. Mas, do ponto de vista de Kitano - o diretor, isso é - eu suspeito que ele tenha optado pelo jazz.
Sonatine foi concebido como quatro sequências: (1) Yakuza precisam ir para Okinawa; (2) Yakuza chegam em Okinawa; (3) o massacre ao final e (4) o suicídio do protagonista. O resto foi, em grande parte, improvisado por Kitano, seu elenco e sua equipe. Isso faz com que Sonatine seja o filme que mais tenha cristalizado o estilo de Kitano em sua fase inicial. O filme parece não ter uma direção específica, e nenhum ímpeto. Essa liberdade do improviso, principalmente por não estar atrelada a nenhum roteiro, somente um esqueleto de trama, tornam o filme etéreo, ambíguo. Isso fica muito evidente no “exílio” que os gângsters se impõe na praia de Okinawa. É como se o long se metamorfoseasse em algo diferente, com pausas e digressões que pouco parecem pertencer a um filme de gângster. Não é difícil ver porque Quentin Tarantino se encantou com a película: todo este interregno tropical, com danças, jogos e brincadeiras se assemelham a Banda à parte (Bande a part, 1964, de Jean-Luc Godard), onde o trio de assaltantes começa a dançar do nada em um restaurante. Em Sonatine, no entanto, estas sequências adquirem um tom melancólico, fatalista. É como se a morte pairasse sob cada uma dessas cenas. Por se decidir desde o começo da produção que o final se daria com o suicídio de Murakami, Kitano parece ter encontrado um motivo maior para justificar o seu estilo minimalista. A sombra da morte (e da escolha pela morte) paira por todas as cenas.
No começo do filme, Murakawa confessa a um colega Yakuza que ele está cansado. Cansado da vida de gângster. O amigo simplesmente responde dizendo que ele já está rico o suficiente para essa vida. Pode ser. Em outro momento, Murakawa responde que não tem medo de morrer. Morrer poria um fim ao medo que ele tem da morte. Esse sentimento de cansaço e apatia foi o que rendeu as comparações com O Samurai, de Melville, que também conta a história de um assassino que está cansado do que faz, e que deixou de ver sentido em seus atos. Em outro momento, ao ver a calma com que Murakawa executou o homem que a estuprou, Miyuki o questiona - melhor, propõe - que Murakawa, ao não ter medo de matar outras pessoas, significa que ele não teria medo de matar a si mesmo. Murakawa simplesmente responde: “Quando se tem medo o tempo todo, você quase deseja que estivesse morto”, e que ele carrega uma arma consigo para evitar confrontos.
E, no entanto, é Murakawa quem se insere nas brincadeiras infantis dos Yakuza com uma arma. Ninguém morre, ninguém é atingido. Murakawa não morre na roleta russa porque ele tirou as balas do tambor. Mas ele sonha com a própria aniquilação.
É como se Murakawa, não só um protagonista, mas um planeta, cujo centro gravitacional faz todos os outros personagens e acontecimentos orbitarem em torno de si, estivesse puxando todos para sua apatia. No início do filme, Murakawa tortura um gambler rival amarrando-o num guindaste, que o mergulha nas águas do píer de Tóquio. Murakawa pergunta quanto tempo um homem aguenta debaixo d’água. “Dois minutos, talvez três”, um comparsa responde. Afundam o homem. Kitano quase deixa a cena correr em tempo real, com os Yakuza - e nós - observando o guindaste submerso. Os homens dão a ordem e o guindaste sobe - o homem está vivo. Abalado, mas vivo. “Vamos deixar ele por três minutos”, Murakawa propõe, como um garoto brincando com formigas e uma lupa. E voltam a abaixar o homem. Murakawa e os Yakuza se distraem, comentando as manobras politicas do clã. Quando se lembram do homem submerso, sobem o guindaste. O rival está morto. “Acho que passou de três minutos”. É tudo um grande suspiro de exaustão.
Os personagens de Sonatine se comportam como estátuas, mesmo em momentos mais dramáticos, principalmente de violência. O resultado é que o filme em si parece inconsequente, sem sentido. Volta à questão da circularidade que comentei: pessoas morrem, pessoas vivem. Clãs são aliados, clãs são inimigos. Dinheiro é feito, dinheiro é gasto. É um ciclo ininterrupto, e que não faz mais sentido - algo especialmente perturbador para uma organização como a Yakuza, permeada por uma rígida hierarquia e códigos e rituais complexos e densos.
E os principais rituais do filme se dão em seu interregno na praia, onde as duas gerações de Yakuza encenam danças, jogos e combate. É nesse espaço liminal, de transição (entre a solidez do continente e a fluidez do mar) que os personagens contemplam o horizonte de sua existência. E sua existência é um ciclo interminável e sem sentido. De violência, de dinheiro, de horror. Os membros mais jovens do clã percebem por Murakawa que ele representa nada mais, nada menos que o futuro deles. E Murakawa, por sua vez, percebe que seu futuro é viver com medo. E morrer, eventualmente. Escolher pelo suicídio não é só a conclusão lógica de sua vida, mas também uma forma de interromper o ciclo. De deixar de ter medo. É impossível não ver os ecos de Albert Camus e seu homem absurdo correndo pelas tramas do filme.
Dito dessa forma, parece um filme puramente niilista, e talvez nada mais. Mas a força do filme de Takeshi Kitano não é em qualquer mensagem, em qualquer visão de mundo. De certa forma, comentar o filme é ir contra ele. Soa clichê, eu sei, mas a beleza melancólica de Sonatine reside em suas imagens, na sua trilha sonora, onde o compositor Joe Hisaishi evoca Tangerine Dream (e que renderam comparações com os filmes de Michael Mann). Não há nada igual Sonatine, seja no cinema Yakuza do Japão, seja no contexto do neo-noir dos anos 1990. A película reside facilmente ao lado dos filmes de David Fincher, Michael Mann e Paul Verhoeven, do mesmo período.
Sonatine existe na fronteira entre o autêntico cinema japonês, seja ao evocar o estilo transcendental de Yasujiro Ozu, seja naa brutalidade realista de Kinji Fukusaku. Mas o filme também consegue transcender as fronteiras do seu próprio país ao mergulhar nas profundezas da alma humana, dialogando com Robert Bresson por vias de Paul Schrader (quem primeiro conectou o francês Bresson ao japonês Ozu por via de seu estudo sobre o estilo transcendental no cinema - e que, de quebra, também fez o primeiro estudo sobre o cinema Yakuza ainda no começo dos anos 1970).
Takeshi Kitano tem uma das carreiras mais interessantes do cinema contemporâneo. Sua carreira dos anos 1990 marca não só um aprofundamento do seu estilo minimalista, seja em filmes Yakuza, seja em dramas de formação, mas também um constante experimentalismo em outras formas e linguagens. Apesar de ser uma presença constante em festivais, o fato é que Kitano nunca teve uma carreira particularmente em seu país de origem. Nos últimos anos, o ator e diretor voltou ao cinema Yakuza com a trilogia Outrage (2010), mas numa chave mais comercial - e deu certo. Mas Sonatine continua sendo o ponto focal na carreira de Kitano, ocupando o centro de um tríptico - junto a Violent Cop e HANA-BI.
É interessante assistir Sonatine hoje e compreender como o pequeno filme de Takeshi Kitano provocou ondas desde o seu lançamento. Primeiro, serviu para expandir as possibilidades do cinema Yakuza em seu próprio país. O filme não só abre outras possibilidades a serem seguidas para além do trabalho paradigmático de Kinji Fukusaka, mas também traduzem muito bem o sentimento de desenraizamento que muitos japoneses sentiam na última década do século XX. Sonatine, portanto, abre caminho para o próprio trabalho de cineastas do mesmo período, como Kiyoshi Kurosawa e Takashi Miike.
Mas é interessante também ver como o filme transcendeu suas fronteiras. Claro, já comentei sobre o impacto que o filme teve em Quentin Tarantino (e seu esforço em divulgar Sonatine nos Estados Unidos ajudou a própria carreira de Kitano no Ocidente, que conseguiu papéis em Hollywood e até dirigiu um filme lá), mas o longa também ajuda a compreender o cinema de Nicolas Winding Refn, em especial em seu ritmo lento, meditativo e personagens pouco expressivos. Drive (idem, 2011), Só deus perdoa (Only God Forgives, 2013) e Muito velho para morrer jovem (Too Old To Die Young, 1 temporada, 2019) são exemplos nítidos da influência de Sonatine e HANA-BI. Claro, suas cores expressivas, berrantes, e uso hipnótico de trilha sonora são puxados diretamente do universo Giallo, mas o ritmo contemplativo e tom o metafísico e existencial é Kitano até a medula.
Com O Assassino (The Killer), David Fincher parece ser como Murakawa, um operador extremamente eficiente, respeitado e rico, que reflete sobre a sua própria vida - encarnando, assim, o seu duplo no cinema, um assassino de aluguel. Como Murakawa, o assassino interpretado por Michael Fassbender quase não expressa emoções, e consegue inclusive controlar o ritmo dos próprios batimentos cardíacos. Mas os filmes de diferem de maneiras pontuais, mas significativas. Diante de um filme tão enigmático, que gera reações e entendimentos perplexos, é boa hora de revisitar aqueles que vieram antes de David Fincher.