O ano de 2023 foi, no mínimo, estranho para o cinema. Como falei em meu ensaio O ano do flopbuster, vimos uma série de super-produções americanas fracassarem nos cinemas. Filmes de super-herói e outros blockbusters de franquias consagradas, como Indiana Jones, Velozes e Furiosos e Missão: Impossível. Isso chama a atenção por que, nos últimos 10 anos, pelo menos, vimos que o cinema mainstream foi simplesmente tomado por produções do tipo, em especial as de super-herói. A Marvel Studios e seu universo cinematográfico se tornaram o símbolo daquilo que convencionou se chamar de Era das Franquias. Nela, filmes de super-herói, assim como remakes, reboots, legacy sequels e todo tipo de filme derivado de uma franquia ou, principalmente, uma marca (brand), dominaram Hollywood - a ponto de, inclusive, empurrar filmes de outros gêneros tradicionais, como o drama, o policial, o suspense e outros para fora dos multiplexes.
Eu diria que parte disso se dá pelo fato de que o gênero super-herói consegue abarcar e absorver outros. Ação, aventura, comédia, romance, horror, ficção-científica, filme catástrofe… sempre tendo um personagem central - obviamente heróico - como fio condutor e eixo da narrativa. Eu diria que boa parte do sucesso do gênero se dê pelo fato de que Hollywood, após anos, conseguiu, enfim, dominar a fórmula.
No entanto, ao ser uma espécie de uma quimera genética de vários gêneros, mas sem ser propriamente nenhum deles, o cinema de super-herói terminou achatando esses diferentes formatos narrativos e suas variações. Não quero transformar a Marvel Studios em Judas, mas o fato é que o estúdio comandado por Kevin Feige, com sua profusão de lançamentos anuais e domínio do mercado por anos terminou transformando esses outros gêneros - agora, subgêneros do filme de super-herói - em mero referencial simbólico. Assim, podemos dizer que Homem Formiga e a Vespa (Ant-Man and the Wasp, 2019, de Peyton Reed) é um filme de super-herói com elementos que remetem às comédias românticas dos anos 2000 (geralmente estreladas por Sandra Bullock e/ou Hugh Grant); Capitão América: O Soldado Invernal (Captain America: The Winter Soldier, 2014, de Anthony Russo) é um thriller paranóico de conspiração; Viúva Negra (Black Widow, 2021, de Cate Shortland) é um filme de espionagem; e por aí vai.
Parte disso se dá pelo fato de que Hollywood, ao menos desde os anos 1980, desenvolve projetos seguindo o modelo high concept. O marketing é o fundamental em tal modelo, e a venda e comercialização dos filmes é em grande parte o que os determina. Assim, por exemplo, um pitch de sucesso é algo como tivemos recentemente com Besouro Azul (Blue Beetle, 2023, de Angél Manuel Soto, produzido pela rival da Marvel, a DC): “e se fizéssemos um filme que é um herói tipo Homem-Aranha, mas com uma armadura e poderes do Homem de Ferro mas, ao invés de ser um garoto branco da classe trabalhadora, ele fosse um latino filho de imigrantes mexicanos?”. Eu nem sei se o longa de Soto é fiel ou não aos quadrinhos, mas o fato é que Besouro Azul é um filme genérico e sem alma.
Mas o que importa, no entanto, é o fato de que tais ideias são facilmente comunicadas e, principalmente, vendidas. Homem-Aranha e Homem de Ferro são personagens que estrelaram filmes multi-bilionários, que fizeram sucesso no mundo todo. Por que não combiná-los, e ainda por cima jogando um tempero identitário por cima para tornar o filme “relevante” e “importante”, que “gere debates sobre a experiência imigrante” (pu seja, quem sabe se não gera um polêmica em rede social?). O problema é que Besouro Azul não é só um filme sem alma - ele também desapontou nas bilheterias.
Até os posters são parecidos - talvez para comunicarem exatamente a mesma ideia?
Uma grande homogeneização tomou Tinseltown, que passou a ser comandada por uma nova geração de executivos e seguindo um modelo de negócios que remonta aos anos 80 e também aos anos 30, a Era de Ouro dos Estúdios (na acepção de Thomas Schatz). Até mesmo filmes improváveis como Thor, Pantera Negra, Homem Formiga, Venom, Aquaman, Shang-Chi e outros baseados em personagens desconhecidos se tornaram sucessos bilionários no mundo inteiro. Parecia que os executivos dos estúdios tinham, enfim, descoberto a tal “equação completa do cinema” de que fala F. Scott Fitzgerald em seu romance (incompleto) O último magnata. Mas, então, tivemos o ano de 2023.
Shazam: Fúria dos Deuses (Shazam! Fury of the Gods, 2023, de David F. Sandberg), The Flash (idem, 2023, de Andy Muschietti), Velozes e Furiosos X (Fast X, 2023, de Louis Leterrier), Indiana Jones e o Chamado do Destino (Indiana Jones and the Dial of Destiny, 2023, de James Mangold), As Marvels (The Marvels, 2023, de Nia da Costa), A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 2023, de Rob Marshall), Homem Formiga e a Vespa: Qunatumania (Ant Man and the Wasp: Quantumania, 2023, de Peyton Reed), Besouro Azul e outros blockbusters foram fracassos abismais de bilheteria (ou, então, tiveram uma performance abaixo do esperado). Podemos levantar a já surrada desculpa da pandemia, dos streamings e tudo o mais, mas o fato é que há… algo no ar.
Podemos falar disso pois, ao mesmo tempo em que tivemos estes fracassos, tivemos o sucesso surpreendente de filmes como Barbie (idem, 2023, de Greta Gerwig) e Oppenheimer (idem, 2023, de Christopher Nolan), John Wick 4 (idem, 2023, de Chad Stahelski) e Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, 2023, e Martin Scorsese). Filmes estes, que, aliás, não só foram extremamente bem-sucedidos de crítica e bilheteria, com também deliberadamente nadaram contra a corrente dos últimos anos ao serem lançados nos cinemas e multiplexes mundo afora, com extensa - e tradicional - campanha de marketing. E, agora, como que coroando este ano atípico, tivemos uma grande surpresa com o sucesso crítico e comercial de Godzilla: Minus One (idem, 2023, de Takashi Yamazaki). Um sucesso, inclusive, nos Estados Unidos, um país tradicionalmente avesso a filmes estrangeiros, principalmente asiáticos, dada as diferenças culturais.
Mas Godzilla: Minus One é relevante por uma série de motivos (e acredito que valha uma análise mais detalhada sobre o filme - que não cabe neste ensaio). Um desses motivos é imediatamente aparente: os efeitos especiais. Sim, Godzilla é, em sua essência, um filme de kaiju e tokusatsu como o Japão faz há anos - e tokusatsu significa, afinal, “filme de efeitos especiais”. Godzilla Minus One se trata de um blockbuster que possui efeitos especiais que, quando não melhores (muito melhores) do que qualquer um desses filmes recentes de super-herói, é ao menos equiparável aos de filmes de franquia norte-americanos. Isso surpreende ainda mais quando descobrimos que o longa de Takashi Yamazaki custou 15 milhões de dólares, uma fração do que custa um blockbuster americano contemporâneo (que ficam na faixa de 150 milhões a 300 milhões de dólares). Mas não só os efeitos especiais. O filme de Yamazaki possui roteiro, fotografia, direção de arte e atores muito mais bem trabalhados do que qualquer um dos filmes do mesmo calibre lançados neste ano (ou mesmo nos últimos anos). Godzilla Minus One é um filme que conta uma história emocionante de um piloto kamikaze que, ao término da Segunda Guerra Mundial, abandona o seu posto (e missão suicida) por medo e covardia, e precisa lidar com as consequências de seus atos, tentando reconstruir sua vida em um país arrasado pela guerra e com o peso da humilhação de ser um covarde. Em meio a isso, temos o ressurgimento de Godzilla, agora um monstro radioativo (fruto de testes com armas nucleares realizadas pelos americanos em águas do Pacífico) praticamente indestrutível. Godzilla Minus One é um filme blockbuster extremamente bem escrito, dirigido e atuado, com uma trama emocionante e tensa e que ainda por cima não se esquiva nem por um segundo de abordar temas sensíveis e extremamente complexos da história recente do país. Ou seja, o filme não apela para questões fáceis e bobas de identitarismo ou qualquer uma das bobagens que nós Ocidentais usamos como artifícios de “crítica social” em nossos filmes. Godzilla Minus One é verdadeiramente um filme perturbador.
Vale lembrar que Godzilla é, também, uma franquia, que existe desde 1954 no Japão, e já se espalhou para desenhos animados (tanto animes quanto produções ocidentais), remakes (tanto japoneses quanto americanos), histórias em quadrinhos, videogames, brinquedos e toda sorte de merchandising. Godzilla é um ícone global, cuja fama é comparável à de Batman, Superman e, sei lá, o Homem de Ferro. Resumindo: é um blockbuster de franquia.
O que está acontecendo? A resposta é complexa (um clichê, eu sei) e talvez ainda seja cedo para cravar qualquer coisa. Mas sem sombra de dúvida o ano de 2023 parece representar uma mudança - ainda que pequena - no cenário do cinema mundial. Sim, precisamos focalizar os Estados Unidos e seus blockbusters de franquias, pois tais filmes - em especial os da Marvel e da Disney - moldaram o debate sobre a indústria nos últimos dez anos.
A convite do amigo Fábio Silvestre Cardoso, autor da excepcional biografia Capanema: A história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (2019, Editora Record), escrevi sobre o conturbado e estranho ano de 2023 para o cinema, para revista digital da Rio Bravo Investimentos. O texto pode ser lido aqui:
https://www.riobravo.com.br/crepusculo-dos-deuses/
O texto está aberto a todos.
Ele é uma primeira investigação sobre as causas que nos levaram até este ano, os fatos importantes que aconteceram nele (Inteligência Artificial, greve de roteiristas e atores, sucessos e fracassos, streamings…) e o que isso pode nos dizer sobre o futuro. Claro, é cedo para fazer qualquer tipo de apontamento, mas podemos fazer algumas suposições.
De todo jeito, espero que gostem do texto.