O leitor de No Escuro deve ter percebido que essa newsletter ficou bastante tempo parada. Sim, eu sei, e esse caos na periodicidade é um dos motivos pelos quais eu não cobro do leito (um outro motivo é a minha notória falta de técnica na escrita). Boa parte de minha ausência se deu por conta de uma enxurrada de projetos publicitários, além da própria finalização de meu curta-metragem que, como falei, é adaptado da obra do quadrinista Marcello Quintanilha.
Isso não significa que fiquei sem acompanhar lançamentos culturais e coisas do tipo - gostaria muito de ter escrito algo sobre Oppenheimer, a Magnum-opus de Christopher Nolan, assim como gostaria de ter escrito algo mais detalhado sobre o fenômeno Barbenheimer. Enfim, quem sabe mais para frente, quando estes filmes entrarem para os streamings.
Boa parte do que vi e li nesses últimos meses também não foram exatamente lançamentos. Me dei o tempo para reler livros, quadrinhos e rever filmes e séries. Por exemplo: revi Família Soprano (HBO, 1999-2007), e sem dúvida dá para cravar que esta continua sendo a maior série de TV de todos os tempos. Vi a brilhante segunda temporada de The Bear. Fora da TV, as coisas não foram tão boas.
The year of the flop - eis como podemos chamar este ano de 2023. Uma série de blockbusters americanos fracassaram terrivelmente nas bilheterias, alguns de maneiras hilárias, é verdade. É também verdade que tivemos alguns sucessos estrondosos: Oppenheimer (idem, de Christopher Nolan), Barbie (idem, de Greta Gerwig), Super Mario Bros. - O Filme (Super Mario Bros. - The Movie, de Aaron Horvarth e Michael Jelenic), Guardiões da Galáxia Volume 3 (Guardians of the Galaxy Volume 3, de James Gunn) e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spiderverse, de Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson), mas a sucessão de fracassos certamente chamou a atenção.
Shazam: A Fúria dos Deuses (Shazam! Fury of the Gods, de David F. Sandberg) é um filme chato. Chatérrimo. O primeiro filme, de 2019, ainda que seja baseado no equivocado reboot escrito por Geoff Johns, é divertido, um autêntico passatempo aos moldes da Sessão da Tarde. Uma trama simples, leve e com um elenco carismático. É verdade que o mundo do Capitão Marvel (ou Shazam) é muito mais interessante nos quadrinhos de C.C. Beck ou, mais recentemente, de Jerry Ordway (da série The Power of Shazam, dos anos 90). Mas é passável, um filme de herói que consegue ter mais alma que muitos outros por aí. Agora, o que diabos aconteceu nesse segundo filme? É uma chatice do começo ao fim, preenchida por péssimos efeitos visuais. Parece um filme feito em laboratório, como aquelas tranqueiras dirigidas por Roland Emmerich e escritas por Alex Kurtzman. Até mesmo o pavoroso Adão Negro (Black Adam, 2022, de Jaume Collet-Serra) consegue ser mais interessante, ainda que por motivos que vão além do próprio do filme. O prejuízo desse segundo Shazam só foi ofuscado por outro filme da DC.
Pensando em retrospecto, é inevitável que The Flash (idem, de Andy Muschietti) fosse um fracasso. O filme tem sido acompanhado por mais de dez anos de tentativas frustradas, sendo vítima de executivos, diretores que vieram e partiram, todo o debacle envolvendo Joss Whedon, Zack Snyder, Walter Hamada, Dwayne “The Rock” Johnson, David Zaslav, AT&T e Discovery e, claro, os inúmeros problemas do astro Ezra Miller, que parece empenhado em se tornar uma espécie de Hannibal Lecter da vida real. Mas, ainda assim, o resultado foi surpreendente.
Assim como Shazam: A Fúria dos Deuses, The Flash é adaptado de uma série de reboots escrita por Geoff Johns. Johns, para quem não sabe, é uma das figuras mais poderosas da DC Comics, e foi responsável por uma série de títulos realmente brilhantes do começo dos anos 2000. Mas, a partir da década de 2010, e se intensificando com o mal-fadado reboot da editora em 2011 (“Os Novos 52” - 2011 a 2015), a escrita de Johns foi deteriorando à medida que ele subia de posto na hierarquia da editora (ele é o CCO da DC - Chief Creative Officer). Dentre esses títulos ruins, estão o reboot de The Flash, Rebirth (2009), que traz o velocista Barry Allen de volta à vida e à continuidade da DC e o arco Flashpoint (2012), onde Barry Allen bagunça a continuidade da DC ao voltar no tempo. Vamos lá: Barry Allen é um tira certinho, com forte senso de ética e justiça, que se torna o Flash após um acidente bizarro envolvendo produtos químicos e um raio. Barry é um tipo estóico, que não faz piadinhas, ainda que seja socialmente meio atrapalhado. É como se ele fosse o Grissom (William Petersen), do seriado C.S.I., mas com super-poderes. O reboot de Johns coloca um importante detalhe à origem do personagem: quando era criança, Barry testemunhou sua mãe ser morta por uma estranha entidade, quase um fantasma. Seu pai é preso injustamente pelo assassinato, e Barry passa o resto de sua vida tentando corrigir o erro, e descobrir quem realmente matou sua mãe (spoiler: foi o velocista Flash Reverso, vulgo Eobard Thawne).
Como o escritor Mark Waid notou à época, isso é um péssimo desenvolvimento do personagem, pois Barry era único ao não ter uma origem trágica. Os super-poderes só realçam seu senso de dever e de justiça, e seu conhecimento técnico e científico, somado aos seus superpoderes que sempre envolvem questões físicas e científicas o tornaram símbolo da Era de Prata das histórias em quadrinhos. O reboot de Johns é uma deturpação desnecessária de um personagem clássico, que não só não agrega nada, como também o banaliza, deixando Barry mais genérico (ele se torna uma variante de Peter Parker).
E o casting de Ezra Miller realmente aponta para essa tônica. Não é só pelo fato dele ser um ator bem medíocre, mas principalmente por que seu personagem e atuação são quase uma caricatura do Homem-Aranha. Miller, na verdade, é basicamente a conclusão lógica do Flash de Geoff Johns. Poderia haver uma esperança no fato do diretor Andy Muschietti ter seu talento, mas o filme é bagunça constrangedora do começo ao fim.
Primeiro, a história é inexistente. Sequer há um vilão de fato por boa parte do filme, que é estruturado tendo De Volta Para o Futuro (Back to the Future, 1984, de Robert Zemeckis) em mente, com os personagens revisitando passagens do inglório SnyderVerso. Segundo, o Flash em si é muito mais um coadjuvante, sendo colocado de lado para que Batman (Michael Keaton) e Supergirl (Sasha Calle) possam brilhar (e, ocasionalmente, brilhem mais mesmo). Terceiro, o filme é fotografado como um seriado de TV dos anos 90. Por algum motivo Muschietti situa a cena de ação de abertura em uma ponte cinzenta, durante um dia cinzento e nublado (vale lembrar que essa sequência toda foi feita em estúdio, em chroma key; ou seja, as condições do dia da cena foram deliberadamente criadas). O resultado é que todo o visual é chapado, flat, sem graça. Resta aos realizadores saturarem os uniformes do Batman (Ben Affleck, que aparenta estar dopado), Mulher-Maravilha (Gal Gadot) e Flash, resultando em visual que parece apropriado a um comercial de Skittles. Depois, os enquadramentos. Ou são planos em plongée, que diminui o tamanho dos heróis na tela, ou são planos com a câmera na altura dos olhos.
Esse último enquadramento aqui, um diálogo entre Batman e Flash, é exemplar. Não só a câmera está num enquadramento na altura dos olhos, num valor médio, como os personagens tem seus corpos virados para nós. Será que Muschietti queria destacar os símbolos nos uniformes? É um enquadramento literal, sem qualquer dinamismo. Assistir The Flash é como comer um prato de hospital especialmente preparado para um paciente diabético.
Quarto, os defeitos visuais. Para um filme que custou mais de 200 milhões de dólares, e demorou mais de dez anos para ser feito, é realmente inacreditável que um grande estúdio tenha lançado um filme assim nos cinemas.
Quinto. Em It - Capítulo 2 (It - Chapter 2, 2019), Muschietti revelou um estilo de direção de atores que é extremamente irritante. Como que para disfarçar longos diálogos expositórios, o diretor faz os seus personagens ficarem hiperativos: falando rápido, um por cima do outro ou, então, fazendo alguma piada besta qualquer. Parece cinema feito para alguém (ou por alguém) com déficit de atenção. Meu caro Andy, você é um diretor talentoso, mas precisa estudar mais Howard Hawks. Ao espectador, caso não esteja claro o que estou falando, basta ver a sequência em que os dois Flash conversam BatKeaton na cozinha da mansão Wayne. Ou, melhor, não faça isso. Fique longe desse filme.
É uma vergonha.
E esse talvez seja o ponto: eu gostaria muito de ler um livro sobre a produção de The Flash. Tal livro certamente ajudaria muito a entender como os grandes estúdios hollywoodianos funcionam nestes tempos de mega-franquias, com seu sistema bizantino de financiamento e marketing, e toda a ingerência que os executivos (eles mesmos inseridos em uma hierarquia corporativa bizantina) praticam nos cineastas. Certamente seria muito mais interessante que ver essa porcaria de filme.
Esse conceito de Multiverso é basicamente a era das franquias chegando em sua fase pós-moderna, auto-referencial. Se antes já não se produziam novas ideias, agora, só resta a autoreferência vazia. Isso já havia sido de certa forma preconizado nos filmes de Star Wars produzidos pela Disney - Star Wars Episódio VII: O Despertar da Força (Star Wars Episode VII: The Force Awakens, 2015, de J. J. Abrams) é basicamente um remake preguiçoso do filme original de 1977, mas com mudanças suficientes para ser chamado de continuação (ou Legacy sequel, eufemismo picareta cunhado pelos departamentos de marketing). Ora, The Flash e séries como Loki são basicamente passeios metalinguísticos sobre o catálogo dos grandes estúdios. Há até um potencial narrativo, mas o fato é que os executivos usam esse recurso para simplesmente desfilar easter eggs diante de um público que, até então, parecia ser ávido por essas referências. No entanto, como Mark Fisher e outros bem notaram, há uma noção clara de entropia e decadência inserida na ideia de pós-modernidade, e creio que seja isso o que estamos testemunhando com esses fracassos em série.
E, falando em Multiverso, por que diabos todo blockbuster atual termina com uma grande batalha repleta de efeitos especiais que transcorre em um descampado sem definição? Vamos lá: The Flash tem uma gigantesca sequência de ação que, além de tosca e anódina, se passa em um deserto. Cores beges e nenhuma definição na paisagem anulam qualquer possibilidade de geografia na cena.
O mesmo ocorre ao final de Vingadores: Guerra Infinita (Avengers: Infinity War, 2018, dos Irmãos Russo) e, ainda mais em Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019, dos Irmãos Russo). O recente Transformers: O Despertar das Feras (Transformers: The Rise of the Beasts, 2023, de Steven Caple Jr.) - outro flop - termina o filme da exata mesma maneira que Vingadores: Ultimato. A paisagem é a mesma. Talvez esse tipo de final possa ser traçado até o patético Batman v Superman (idem, 2016, de Zack Snyder). No filme, os personagens justificam a troca de paisagem de uma cidade para um terreno baldio parta não causarem vítimas inocentes.
Vingadores: Ultimato
Batman v Superman
Transformers - O Despertar das Feras
De todo jeito, o fato é que todo blockbuster atual não só se parece um com o outro, como também remetem aos célebres tokukatsu dos anos 80 e 90. Todo episódio de Jaspion, Jiraya, Black Kamen Rider e Power Rangers terminava numa sequência de ação onde os heróis lutavam em uma pedreira qualquer. Eu chamo essa tendência de Pedreira Cinematic Universe.
Seja como for, voltemos aos flopbusters de 2023 falando sobre Homem Formiga: Quantumania (Ant-Man: Quantumania, de Peyton Reed). Não vi o filme, e nem pretendo, mas, pelo que vi, o filme de Reed combina a chatice de Shazam 2 com os péssimos efeitos visuais de The Flash. Algo semelhante pode ter acontecido com Besouro Azul (The Blue Beetle, de Angel Manuel Soto), que, para todos os efeitos, parece ser uma cópia barata de O Homem de Ferro (Iron Man, 2008, de Jon Favreau). Todos fracassaram na bilheteria, e de fato devemos nos perguntar se a tal “fadiga com filmes de super-herói” tenha de fato chegado.
Bem, é inevitável que gêneros eventualmente entrem em decadência - vimos isso com westerns, musicais, comédias românticas, paródias etc -, mas diversos outros gêneros permanecem firmes e fortes, constantemente se reinventando (como ocorre com o o horror). Mas, quando olho para os fracassos de filmes como Indiana Jones e o chamado do destino (Indiana Jones and the Dial of Destiny, de James Mangold), Velozes e Furiosos X (Fast X, de Louis Leterrier) e os problemas que a Disney tem enfrentado com a Lucasfilm (que administra Indiana Jones e Star Wars), Pixar e Walt Disney Pictures (que faz esses pavorosos remakes em live action dos clássicos animados) pode indicar uma fadiga maior com o tal “cinema de franquia”.
O que tornou o negócio do cinema único na história do capitalismo corporativo é capturado na máxima do roteirista William Goldman, verdadeira há muitas décadas: “ninguém sabe de nada”. Nenhuma outra indústria lançou tantos produtos com tanta frequência, com tão pouco conhecimento prévio sobre se deveriam ser bons. A única estratégia de negócios viável, aparentemente, era contratar os melhores talentos criativos, confiar em seus palpites mais fortes sobre o que atrairia milhões de pessoas (…)
The Big Picture: The Fight For the Future of Movies, de Ben Fritz (2018). Pág. XIV. Tradução minha.
De acordo com o jornalista Ben Fritz, do Wall Street Journal, o cinema de franquia representa uma modificação considerável na estrutura de Hollywood. Não mais os astros, nem mesmo o marketing, são tão importantes para o sucesso de um filme. O que importa mesmo é o valor da marca, da franquia, que abriga sobre si um guarda-chuva de propriedades intelectuais.
Nos últimos anos, porém, algo grande aconteceu: finalmente, as pessoas em Hollywood sabem alguma coisa. O que eles sabem é que as franquias de marca funcionam. As pessoas dizem que querem novas ideias e novos conceitos, mas na realidade, na maioria das vezes, vão aos multiplexes em busca de personagens e conceitos familiares que os lembrem daquilo que já sabem que gostam. Grandes marcas como Marvel, Harry Potter, Velozes e Furiosos e Meu Malvado Favorito arrecadam consistentemente mais de US$ 1 bilhão nas bilheterias globais, não apenas arrecadando enormes lucros, mas justificando a própria existência dos estúdios e os empregos de todos que trabalham em seus lotes glamorosos.
E ele continua:
Mas agora é inegável que o início da era do cinema de franquia é a revolução mais significativa na indústria cinematográfica desde o fim do sistema de estúdios, na década de 1950. Essa mudança acabou com a capacidade dos estúdios de controlar o talento criativo, essencialmente possuindo-o com contratos de longo prazo. Também aumentou a qualidade dos filmes que Hollywood fez nos cinquenta anos seguintes, porque as empresas tiveram de competir para fazer felizes os talentos mais influentes, e não o contrário.
A era dos filmes de franquia é, em muitos aspectos, um retorno ao sistema de estúdio. Só que agora as grandes empresas de entretenimento não possuem os talentos mais importantes – elas possuem as marcas cinematográficas mais importantes. Em vez de lutar por um acordo com a MGM ou a Paramount, atores e cineastas disputam uma chance de fazer o mais recente spin-off de Star Wars ou X-Men. Muitos desses filmes agradam ao público, mas ninguém vai comparar a década de 2010 a uma era de destaque do cinema de Hollywood como a década de 1970.
The Big Picture: The Fight For the Future of Movies, de Ben Fritz (2018). Pág. XV. Tradução minha.
Quem melhor soube tirar proveito financeiro disso foi, obviamente, a Marvel Studios. Seus filmes pareciam ser verdadeiramente blindados, e mesmo os mais fracos ou genéricos eram estrondosos sucessos. Há outros fatores também: filmes de franquia dependem necessariamente de tramas simples, onde o importante é a manutenção da marca em si. Isso facilita a venda e exibição destes blockbusters em outros mercados - em especial a China. A ascensão do cinema de franquia coincide com a ascensão da bilheteria chinesa na economia de Hollywood. Paralelamente a isso, temos também a ascensão da Netflix e dos streamings, e a continuidade da tal da “Era de Ouro da TV” (que começou lá atrás com Família Soprano).
No entanto, 2023 parece confirmar algumas tendências que já vínhamos percebendo nos últimos anos. Franquias que não engataram com o grande público já vinham fracassando comercialmente: o universo cinematográfico DC, os filmes de Exterminador do Futuro, Hellboy, Pacific Rim. Outros já vinham em curva descendente, como Velozes e Furiosos e Star Wars. A pandemia e a proliferação de outros streamings bagunçaram as coisas, sem dúvida, mas pode ser que essas tendências que ficaram represadas em 2020, 21 e 22 tenha estourado de uma vez em 23. E os filmes que foram sucessos estrondosos esse ano foram todos muito bem-avaliados por público e crítica. Oppenheimer, um filme de 100 milhões de dólares, de três horas de duração e basicamente composto por diálogos sobre física, está batendo quase 1 bilhão na bilheteria. O apetite do público por filmes medíocres de franquia (ou não) parece ter realmente diminuído.
Com a greve de roteiristas e atores abalando todo o sistema hollywoodiano, assim como a crise dos streamings torna tudo mais difícil de prever (e nem vou falar de Inteligência Artificial). Mas o fato me parece ser: podemos ter uma renascença do cinema americano. Mas não basta só cineastas e criativos de talento. Precisamos, também, de executivos como tivemos no passado: Robert Evans, Alan Ladd, Jr. e diversos outros que ajudaram a parir a Nova Hollywood.
Não é fácil para um sujeito como eu ser otimista com alguma coisa, mas me parece razoável supor que uma renovação está porvir.
Pedreira Cinematic Universe, hahahaha, que achado!