Hudson e Hobby, homens de letras que nunca haviam se conhecido, se entreolharam. Havia lágrimas de raiva nos olhos de Hudson.
“Os autores são massacrados aqui”, disse Pat, solidário. “Não deveriam vir jamais”.
“ Quem ia criar essas histórias? Esses idiotas?”
“ Bom, em todo o caso, não os autores”, disse Pat. “Eles não querem autores. Querem escritores - como eu”.
“Mais poderosos que a espada”. In: As Histórias de Pat Hobby, de F. Scott Fitzgerald. Pág. 162.
No final de agosto de 1940, Herman Mankiewicz se enfureceu com a nota publicada pela famosa fofoqueira Louella Parsons em sua popularíssima coluna de mexericos, onde citava Orson como tendo dito: “… e então escrevi Cidadão Kane”. Mas embora o próprio Mankiewicz talvez não tivesse percebido, o verdadeiro motivo de sua indignação naquele determinado momento era mais complicado do que o comentário de Orson para uma colunista de fofocas. Havia acabado de assistir ao copião de Kane e ficado surpreso com o que viu na tela, pois certamente não se tratava do filme que imaginara. A obra prevista por ele seguia um estilo visual muito convencional. Bastava dar um simples olhar de relance no copião para quem entendia de cinema como Mankiewicz para logo deduzir que Orson estava fazendo um tipo de filme completamente diverso. Em memorando a Orson, Herb Drake comunicou a reclamação do roteirista de que o diretor “não estava cumprindo as normas cinematográficas estabelecidas”. Além disso, sentia-se inquieto com a desconcertante tendência de Orson para evitar os primeiros planos e, consequentemente, mostrar a ação de maneira teatral. Com todas essas queixas, Mankiewicz mesmo assim considerou “admirável” o que vira (…) Tendo percebido que esse filme “admirável” não era o que ele pretendia, de repente Mankiewicz julgou-se no direito de reivindicá-lo, de torná-lo de certa forma seu, quando acabava de se dar conta de que não era. Mas, segundo o contrato que assinara, o reconhecimento de seu trabalho dependia exclusivamente de uma decisão da Mercury.1 [grifos meus]
Se o roteiro de Cidadão Kane, como composto originalmente por Mankiewicz, surpreendeu a todos (inclusive o próprio Welles), o mesmo vale para o trabalho que Welles fez sobre o roteiro de Herman.
PETER BOGDANOVICH: Antes de começar as filmagens, como é que vocês aplainaram as diferenças?
ORSON WELLES: Foi por isso que acabei largando Mank sozinho, porque estávamos começando a perder muito tempo regateando. Aí, depois de um consenso mútuo sobre o enredo e a personagem, Mank foi embora com Houseman e fez a versão dele, e eu fiquei em Hollywood e escrevi a minha. No fim, claro, quem estava fazendo o filme era eu - eu é que tinha de tomar as decisões. Usei o que quis do roteiro de Mank e, certo ou errado, mantive o que gostava do meu roteiro.2
E o que diz Orson Welles sobre a autoria no cinema?
Para mim, quase tudo o que é batizado como direção é um blefe. No cinema, há muito poucas pessoas que são verdadeiramente diretores, e, entre estes, pouquíssimos que já tiveram a oportunidade de dirigir. A única direção de real importância é a exercida durante a montagem. Precisei de nove meses para montar Cidadão Kane, seis dias por semana (…) Em outras palavras, tudo se passa como se um homem pintasse um quadro: ele o termina e alguém vem fazer retoques. Mas este alguém não pode, naturalmente, acrescentar pintura sobre toda a superfície do quadro. Trabalhei meses e meses na montagem de Soberba [The Magnificent Ambersons, 1942] antes que me fosse arrancada das mãos: todo esse trabalho está ali, na tela. Para o meu estilo, para minha visão do cinema, a montagem não é um aspecto, é o aspecto. Dirigir um filme é a invenção de pessoas como vocês: não é uma arte, no máximo uma arte que dura um minuto por dia. Este minuto é terrivelmente crucial, mas só muito raramente acontece. O único momento em que se pode exercer algum controle sobre o filme é na montagem.3 [grifos meus]
O que podemos intuir dessa afirmação de Welles (de 1957, época do lançamento de A Marca da Maldade) é que um filme é a soma de várias autorias (e outras circunstâncias), onde o diretor é mais um condutor ou maestro, que reúne todos essas contribuições na sala de montagem para dar forma ao filme. Além disso, a questão da autoria do cinema é, ao final, como Welles mesmo disse, “uma invenção de pessoas como vocês”. Isto é, os críticos e teóricos de cinema. A partir dos anos 60 e 70, nos Estados Unidos, críticos e historiadores do cinema (entre eles, Peter Bogdanovich),
[D]esenvolveram uma “teoria da história cinematográfica”, baseada na idéia de autoria do diretor. Enquanto a Nova Hollywood emergia das cinzas da era do estúdio, os defensores da “teoria do autor” proclamavam que a Velha Hollywood representara o cinema do diretor. Proclamavam, também, que os únicos diretores de filmes que mereciam canonização como autores-artistas eram aqueles cujo estilo pessoal surgira de certo antagonismo em relação ao sistema de estúdio como um todo - ao maquinismo dos estúdios-fábricas de Hollywood, desumanizador e ávido de lucro. O principal defensor dessa teoria era Andrew Sarris, que, no consagrado estudo The American cinema: directors and directions, 1929-1968, atribuía ao chefe de estúdio o papel de mau-caráter na batalha épica de Hollywood e reduzia a história do cinema norte-americano às carreiras de alguns heróicos diretores (…) Sarris desenvolveu uma teoria simplista em que celebrava o diretor como o único responsável pela existência de filmes de arte numa indústria assolada por maus roteiristas e negociantes sedentos de lucro.4
O livro de Thomas Schatz é em grande parte motivado pela tentativa de se corrigir essa visão historiográfica que foi primeira desenvolvida por críticos franceses como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer no final dos anos 50 na França (em torno da revista Cahiers du Cinéma) e que ficou conhecida como politique des auteurs5. David Bordwell escreveu extensamente sobre o nascimento da “política dos autores” no contexto do pós-Guerra francês6: com a derrota dos nazistas e fim da Ocupação, os franceses viram as telas de seus cinemas serem inundadas de filmes americanos que ficaram retidos nos últimos anos pela censura alemã. Como vimos anteriormente, a concepção do film noir se deu nesse contexto, que viu uma verdadeira explosão de cultura cinematográfica, com o lançamento de diversas revistas especializadas e cineclubes. Georges Sadoul, Roger Leerhardt, Raymond Queneau, Jean Cocteau e André Bazin foram os pais intelectuais dessa geração (grupo que ficou conhecido como nouvelle critique), que não só renovaram o discurso crítico e teórico em torno do cinema, como também elaboraram sua própria história do cinema em livros e revistas (como a Cahiers du cinèma, fundada em 1951 e a Positif, fundada em 1952). Cineclubes tornaram-se os templos dessa geração, e os festivais (Cannes, Locarno, Karlovy Vary e Berlim) passaram a abordar uma régua crítica inspirada nas teorias desse grupo.
Novos filmes desempenharam um papel central nesse renascimento. Cinéfilos parisienses acorreram em massa para ver os filmes de Hollywood bloqueados por quatro anos de ocupação alemã: os films noirs, os vibrantes musicais em tecnicolor, as sagas históricas, as obras de Hitchcock e Preston Sturges e, acima de tudo, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), de Orson Welles, e Pérfida (The Little Foxes, 1941) e Os melhores anos de nossas vidas (The Best Years of Our Lives, 1946), de William Wyler. No mesmo momento, surgiram os primeiros filmes do neorrealismo italiano, como Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1945) e Alemanha ano zero (Germania anno zero, 1947), de Roberto Rossellini, Vítimas da tormenta (Sciuscià, 1946) e Ladrões de bicicleta (Ladri di bicicleta, 1948), de Vittorio de Sica, e A terra treme (La terra trema, 1948), de Luchino Visconti. Houve também novas e importantes obras dos diretores franceses emergentes Robert Bresson, Roger Leenhardt e Jacques Tati. Finalmente, os cinè-clubs e as salas especializadas reviveram importantes filmes dos anos 1930. Zero de conduta (Zéro de conduite), de Jean Vigo, A esperança (Espoir, 1939), de André Malraux, e Um dia no campo (Une partir de campagne, 1936), todos tiveram as suas estréias após a guerra.7
Cidadão Kane, e todo o debate em torno da “descoberta" da profundidade de campo por Welles e Toland, receberam atenção especial por parte de Bazin e Leerhardt, que a interpretaram como um ponto de evolução da linguagem cinematográfica e uma ruptura na sua história, assim como a “descoberta” da montagem paralela por Edwin Porter e D. W. Griffith havia sido anteriormente. Os planos-sequência de Welles, aliados ao uso da profundidade de campo, aproximavam o cinema dos grandes romances da história da literatura. É uma técnica narrativa que dava ao espectador mais liberdade para percorrer os olhos pela imagem, libertando-o do controle regulador da montagem8. Além disso, as suposições dos críticos acerca da evolução da linguagem cinematográfica parecia se confirmar com o aparecimento de novos filmes que aprofundavam as descobertas de Welles e Toland, como Festim diabólico, de Alfred Hitchcock, composto por apenas oito tomadas.9
A descrição da “evolução da linguagem cinematográfica” desenvolvida por Bazin teve sua influência mais poderosa sobre os jovens autores associados aos Cahiers du cinéma. No entanto, eles reformularam suas ideias para que se adequassem a uma agenda focalizada na interpretação e na avaliação críticas. Os “cinemaníacos” (cinémanes) ou “Jovens Turcos” defendiam Hollywood com fervor e valorizavam uma concepção de modernidade no cinema. Mais geralmente, eles se valiam de certas ideias de Bazin para forjar uma concepção a-histórica de estilo cinematográfico que pudesse sustentar sua crítica prática. Como essa concepção veio a exercer grande influência e como, de uma maneira um tanto enviesada, ela moldou uma terceira tradição historiográfica, vale a pena fazer uma pausa aqui.
A equipe dos Cahiers é conhecida mais amplamente pelos membros que se tornaram diretores importantes: Eric Rohmer (nascido Maurice Schérer), Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Jacques Rivette, François Truffaut, Luc Moullet. Formados pelo movimento dos ciné-clubs dos anos pós-guerra. profundamente gratos à nouvelle critique por guiá-los na direção de uma nova estética, aqueles jovens também se esforçavam muito para se diferenciar. De 1950 em diante, na Gazette du cinéma, de curta duração, e depois sob o olhar tolerante de Bazin nos Cahiers du cinéma, eles seguiram em frente e expuseram o que veio a ser conhecido como politique des auteurs.10
Em oposição ao roteirista (que, nos debates críticos da França dos anos 30 era tido como a figura central da criação cinematográfica), os Jovens Turcos traçaram um novo cânone a-histórico da história do cinema, onde o diretor - e sua liberdade criativa - seriam tido como centrais. Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Otto Preminger, Fritz Lang, F. W. Murnau, René Clair, John Ford e G. W. Pabst, para citarmos alguns, seriam figuras recorrentes e primordiais do cânone, protótipos do “diretor-autor” que tanto influenciaria os filmes produzidos na Nouvelle Vague e na Nova Hollywood (assim como todos os “cinemas novos” que surgiriam por todo o mundo nos anos 60 e 70). Na metade dos anos 50, os Jovens Turcos assumiram o controle editorial da Cahiers, e a crítica da politique des auteurs se disseminou por toda a revista, tornando-se a marca definitiva de seu estilo11: “Para a maioria dos críticos dos Cahiers, a mise-en-scène era arte de exibir apropriadamente o corpo humano. A tarefa do diretor era relacionar o corpo humano ao seu ambiente, usando o plano para desdobrar a ação e criar um ritmo visual”12.
Em parte como resultado da revisão da nouvelle critique empreendida pelos Jovens Turcos, a tentativa de montar uma história estilística do cinema foi substituída por uma crítica interpretativa. As análises frequentemente brilhantes oferecidas nas páginas dos Cahiers, da Movie e da Film Culture, de Nova York, deliberadamente tiravam os filmes de seus contextos históricos. O estilo era um meio para o significado temático, em boa parte isolado dos padrões mais amplos de continuidade e mudança estéticas. A politique des auteurs tornou-se uma anti-historiografia.13
Andrew Sarris importou essa teoria para os Estados Unidos no início dos anos 6014. A politique des auteurs logo se espalhou pelos Estados Unidos e pela Inglaterra (em especial entre os membros da revista Movie) e pouco depois para a Alemanha. Assim como ocorreu na França, cineclubes, mostras em museus e revistas especializadas logo proliferaram, aprofundando o debate crítico e historiográfico do cinema, tendo a figura do diretor como centro. Essa ebulição crítica e teórica, aliada ao surgimento das primeiras faculdades de cinema ajudaram, nos Estados Unidos, a criar intelectualmente a geração da Nova Hollywood. No entanto,
É à própria teoria desse autor [Andrew Sarris] que não se deveria conferir maior importância, caso ela não tivesse exercido tanta influência, condenando a história cinematográfica e a crítica a um prolongado período de romantismo adolescente. Observando de perto as relações de poder e a hierarquia de autoridade, a divisão do trabalho e o processo de linha de montagem da produção durante a era do estúdio, vemos que não faz sentido atribuir a realização ou o estilo de um filme apenas ao diretor - ou a qualquer outro indivíduo isoladamente. Os aspectos importantes, no caso, são estilo e autoridade (expressão criativa e controle criativo), e houve, de fato, vários diretores de Hollywood que tiveram alto grau de autoridade e certo estilo. John Ford, Howard Hawks, Frank Capra e Alfred Hitchcock são bons exemplos, mas vale a pena notar que status privilegiado desses diretores - especialmente o controle que exerciam sobre o desenvolvimento do roteiro, o elenco e a montagem - devia-se mais à função que exerciam como produtores do que como diretores.15 [grifos meus]
Dessa forma,
A qualidade artística de todos esses filmes não resultava simplesmente de uma expressão individual, mas sim de uma combinação de forças institucionais. Em cada caso, o “estilo” do roteirista, diretor ou ator - ou mesmo de um cinegrafista, diretor de arte ou figurinista - fundia-se com as operações de produção e com a estrutura administrativa do estúdio, seus recursos e a reunião de talentos que promovia, suas tradições narrativas e sua estratégia de mercado.16
A biografia de Welles escrita por Barbara Leaming, apesar de ser muito bem pesquisada e conduzida, está encharcada pela visão de mundo estabelecida pela politique des auteurs. Schatz, por sua vez, tenta despoluir a história do cinema norte-americano e reescrevê-la a partir de uma extensa pesquisa histórica, usando-se não só de depoimentos mas principalmente do extenso volume de documentos que compõem os arquivos dos grandes estúdios de Hollywood (atas de reunião, tratamentos de roteiros, notas de produtores e tabelas de orçamentos); seus protagonistas são Irving Thalberg, Darryl F. Zanuck, David O. Selznick e Hal B. Wallis, ou seja, os produtores que tocavam o dia-a-dia do chão de fábrica dos grandes estúdios e respondiam aos moguls (Louis B. Mayer, Carl Laemmle, Jack Warner, Harry Cohn, etc) e aos executivos dos departamentos de marketing e distribuição. O diretor, por mais que fosse uma peça importante, não era a mais importante. E isso não significa que não houvessem grandes mestres que por vezes conseguiam fazer seus trabalhos mais autorais ou que simplesmente conseguiam romper (ou ao menos dobrar) as regras impostas pelos produtores, mas que tais rupturas devem ser interpretadas dentro de um contexto de produção específico ao cinema norte-americano. Schatz também comenta as carreiras de diretores como John Ford, George Cukor, John Huston, William Wyler, Alfred Hitchcock e Howard Hawks; de roteiristas como Anita Loos e Ben Hecht e até mesmo de fotógrafos, como Karl Freund. No entanto, em suas mais de quinhentas páginas, não há quase nenhuma menção a Orson Welles, Herman J. Mankiewicz, Gregg Toland e à Mercury como um todo (justiça seja feita, Schatz comenta detalhadamente todo o envolvimento de William Randolph Hearst com o sistema de estúdios, assim como a carreia de Marion Davies). Porque? Bem, simplesmente porque a carreira de Welles e Cidadão Kane, especificamente, é a maior exceção, um verdadeiro ponto fora-da-curva, no contexto não só da Velha Hollywood, mas possivelmente de qualquer contexto ou época da história do cinema: um filme feito com total e absoluta liberdade criativa por um gênio com os amplos recursos de um poderoso estúdio à sua disposição. O feito de Welles, Herman, Toland e companhia simplesmente não pode ser comparado a nada ao que fora feito antes em Hollywood.
Além disso, como “autor”, Welles foi muito além de diretores consagrados como John Ford, Howard Hawks, Michael Curtiz e Alfred Hitchcock. E, como vemos na sua relação com Herman, sequer podemos classificá-lo na categoria de grandes parceiras de diretor-e-roteirista, como vemos, por exemplo, nas parcerias de Howard Hawks e Leigh Brackett ou na de Hitchcock com Ben Hecht.
A “romântica” e “adolescente” politique des auteurs elegeu Welles como o exemplo a ser seguido justamente por ele ter sido, bem, um caso único17. E é justamente por isso que Welles entrou na mira de Pauline Kael. Ela mesma reconhece a posição única que Kane ocupa na história do cinema:
Citizen Kane, the film that, as Truffaut said, is “probably the one that has started the largest number of filmmakers on their careers,” was not an ordinary assignment. It is one of the few films ever made inside a major studio in the United States in freedom - not merely in freedom from interference but in freedom from the routine methods of experienced directors.18
O artigo de Kael até hoje tende a ser extremamente controverso e disputado: um dos grandes motivos para isso ter acontecido é o fato de que ele prejudicou profissionalmente Orson Welles, enquanto ele buscava financiamento para seus filmes19. As motivações de Kael, então uma influente (talvez a mais) crítica de cinema da revista The New Yorker, são conhecidas:
A argumentação de Kael foi fruto da decisiva polêmica que vinha alimentando desde 1963, ao contestar a influente tese de Andrew Sarris a favor de uma crítica cinematográfica concentrada no diretor como autor do filme. Mas além de sua conhecida posição contra a teoria do autor e da grande afinidade pessoal com Mankiewicz, houve ainda outro motivo subterrâneo nesse ataque frontal a Welles: ela usou Houseman como fonte importante, sem sequer consultar o próprio Orson. Indagado por mim sobre o artigo, Houseman responde:
- É evidente que ela conseguiu boa parte do material comigo. Almoçamos juntos e lhe entreguei uma porção de coisas. A New Yorker não parava de me telefonar para conferir tudo.
Na conversa, Houseman chega ao cúmulo de afirmar que Orson não escreveu uma só palavra do roteiro (…) Essa declaração pode parecer esquisita para quem já examinou os documentos pessoais de Houseman guardados na UCLA, entre os quais um telegrama datado de junho de 1940, onde avisa a Mankiewicz que recebeu e em geral gostou das novas cenas acrescentadas por Orson em Kane.20
Ou seja, boa parte do artigo de Kael foi motivado por uma discussão a respeito da crítica e historiografia de cinema, uma disputa entre duas visões distintas e irreconciliáveis sobre o que é a arte do cinema. Ou, como Orson Welles disse a André Bazin, um problema a partir de uma “invenção de pessoas como vocês”. Schatz, escrevendo no final dos anos 80 e início dos 90, foi mais “pé no chão” na questão da abordagem da realidade de produção da Velha Hollywood. Mas o artigo de Kael, evidentemente, não se resume a isso. Segundo Barbara Leaming,
Quando Pauline Kael, num célebre artigo para a New Yorker em 1971, intitulado Raising Kane [no Brasil, Criando Kane] trouxe à baila a acusação de Mankiewicz de que Orson lhe roubou a honra de ser o roteirista do filme, foi em grande parte por causa de sua óbvia afinidade espiritual com Mankiewicz, que, como ela, também pertenceu ao quadro de colaboradores da revista. E, tal como aconteceu com ele, Kael já sentira a vontade de tentar a sorte no cinema.21
Isso sem sombra de dúvida é verdade: a melhor parte do artigo de Kael é justamente aquela dedicada a esmiuçar as origens de Herman nas redações de Manhattan, como crítico de teatro e jornalista. Junto com Ben Hecht e outros futuros roteiristas de Hollywood, Herman ia, após o expediente, apostar e encher a cara num bar de jornalistas chamado Algonquin, dando assim um nome ao grupo de jornalistas-roteiristas: The Algonquin Group. Já no início de seu artigo, Kael dá o tom que irá desenvolver nas próximas páginas:
Kane does something so well, and with such spirit, that the fullness and completeness of it continue to satisfy us. The formal elements themselves produce elation; we are kept aware of how marvelously worked out the ideas are. It would be high-toned to call this method “Brechtian”, and it would be wrong. It comes out of a different tradition - the same commercial-comedy tradition that Walter Kerr analyzed so beautifully in his review of the 1969 Broadway revival of The Front Page, the 1928 play by Ben Hecht and Charles MacArthur, when he said, “A play was held to be something of a machine in those days… It was a machine for surprising and delighting the audience, regularly, logically, insanely, but accountably. A play was like a watch that laughed”.22
Com a ascensão do cinema falado no final dos anos 20 e início dos anos 30, os estúdios perceberam que precisavam de um novo tipo de escritor para roteirizar seus filmes. Não iriam encontrá-los no Velho Oeste da Califórnia: voltaram-se para a redação dos grandes jornais da costa leste, em especial os de Nova York, em particular um grupo de jornalistas que era conhecido como “Algonquin group”.
The journalist’s style of working fast and easy and working to order and not caring too much how it was butchered was the best kind of apprenticeship for a Hollywood hack, and they loved to gather, to joke and play games, to lead histrionic forms of the glamorous literary life. Now they were gathered in cribs on each studio lot, working in teams side by side, meeting for lunch at the commissary and for dinner at Chasen’s (…) They adapted each other’s out-of-date plays and novels, and rewrote each other’s scripts. Even in their youth in New York, most of them indulged in what for them proved a vice: they were “collaborators” - dependent on the fun and companionship of joint authorship, which usually means a shared shallowness (…) They were a colony - expatriates without leaving the country - and their individual contributions to the scripts emerged after the various rewrites were almost impossible to assess, because their attitudes were so similar (…) Screenwriting was an extension of what they used to do for fun, and now they got paid for it.
Kael conclui: “Hollywood os destruiu, mas eles fizeram maravilhas para o cinema” [“Hollywood destroyed them, but they did wonders for the movies”]23. Ela prossegue fazendo um esboço da época, assim como um preciso trabalho de reconstituição das contribuições de Herman em inúmeros filmes - a maioria delas sem obter crédito algum, o que era bastante comum à época (bem, até hoje é assim em Hollywood, mesmo com a complicada arbitragem do Screen Actors Guild, o sindicato de roteiristas).
De acordo com Kael, Mankiewicz é hoje uma figura praticamente esquecida por ter começado no cinema ainda na época do mudo. Além disso, roteiristas tradicionalmente não são conhecidos pelo grande público a não ser que já tenham uma fama, antes ou depois de trabalharem no cinema, seja como dramaturgos, seja como romancistas. Herman tentou emplacar algumas peças na Broadway, mas nenhuma teve sucesso. Dessa forma, Mank, ao contrário de Ben Hecht, Charles MacArthur e, posteriormente, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, não teve a mesma sorte de reconhecimento póstumo por ter tido “a head start in the race to ‘sell-out’”24. Mank foi um dos roteiristas mais rápidos, talentosos e bem-pagos não só da Paramount, mas de toda indústria hollywoodiana antes do surgimento dos filmes falados (os talkies, como eram chamados).
Other screenwriters made large contributions, too, but probably none larger than Mankiewicz’s at the beginning of the sound era, and if he was at the time one the highest-paid writers in the world, it was because he wrote the kind of movies that were disapproved of as “fast” and immoral. His heroes weren’t soft-eyed and bucolic; he brought good-humored toughness to the movies, and energy and astringency. And the public responded, because it was eager for modern American subjects.25
Nos anos 40, com a eclosão da guerra na Europa e, logo em seguida, a própria entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, Hollywood viu não só a chegada de uma nova leva de roteiristas jovens, mas todos eles vinham com preocupações e urgências políticas. Segundo Kael, a politização anti-fascista, de viés stalinista, tanto dos novos roteiristas quanto de alguns dos antigos, somada à consolidação do “modelo de fábrica” dos escritórios de roteiristas, principalmente sob o comando de Thalberg, foi o que estragou e comprometeu a qualidade dos roteiros do período.
The lost-in-Hollywood generation of writers, trying to clean themselves of guilt for their wasted years and their irresponsibility as writers, trying to clean themselves of guilt for their wasted years and their irresponsibility as writers, became political in the worst way - became a special breed of anti-Fascists. The talented writers, the major ones as well as the lightweight yet entertaining ones, went down the same drain as the clods (…) They became naively, hysterically, pro-Soviet; they ignored Stalin’s actual policies, because they so badly needed to believe in something. They had been so smart, so gifted, and yet they hadn’t been able to beat Hollywood’s contempt for the writer (…) They lived in the city where Irving Thalberg was enshrined; Thalberg, the saint of M-G-M, had rationalized Mayer’s system of putting teams of writers to work simultaneously and in relays of the same project. It had been lunatic before, but Thalberg made it seem mature and responsible to fit writers into an assembly-line method that totally alienated them and took away their last shreds of pride. And most of the Algonquin group had been in Hollywood so long they weren’t even famous anymore.26
Ao final dessa passagem, Kael está obviamente se referindo a Mankiewicz. Nesse contexto, obviamente que atritos entre Mank e Thalberg surgiriam; Mank acabou demitido de A Night at the Opera (Uma Noite de Ópera, 1935 comédia dos irmãos Marx dirigida por Sam Wood). Herman ficou isolado, porque
Mankiewicz was too well-informed to become a Communist Party-liner. Because he didn’t support this line, he was - and only in part jokingly - considered a “reactionary” by the activists of the Screen Writers Guild. Yet he went on to write the movie [Cidadão Kane] they point to with pride in Hollywood, the movie they all seem to feel demonstrates what can be done what movies should be doing, and it’s their all-time favorite because they understand it - correctly - as a leftist film. Its leftism is, however, the leftism of the twenties and early thirties, before the left became moralistic. (…) He wrote a big movie that is untarnished by sentimentality, and it may be the only big biographical movie ever made in this country which that can be said. Kane is unsanctimonious; it is without scenes of piety, masochism, or remorse, without “truths” - in that period when the screenwriters were becoming so “politically responsible” that they were using all the primitive devices to sell their messages (…).27 [grifos meus]
Com esse contexto, Kael examina muito bem não só o processo de escrita de Kane, mas também as vidas de William Randolph Hearst, a carreira de Marion Davies, as festas em San Simeon, o sistema de estúdios (principalmente Thalberg e Mayer) enquanto mostra a personalidade de Mank a cada página do roteiro de Kane. Essa parte do artigo Kael é, sem sombra de dúvida, de uma força impressionante, tanto pela sua escrita quanto pela sua capacidade de transitar por uma época de Hollywood muito pouco contada: a Hollywood vista pelo ponto de vista de um grupo de roteiristas extremamente inteligentes, talentosos e irremediavelmente insolentes e irresponsáveis em seu estilo de vida.
É perceptível, no entanto, que Kael tenta não só desconstruir o papel de Welles, como também o de aumentar o de Mank, mesmo nas filmagens de Kane, criando uma espécie de “contra-mito” ao “mito” de Orson Welles. Por exemplo, no início do artigo, Kael já começa, sutilmente, atacando Andrew Sarris e os outros defensores da politique des auteurs:
The dream-art kind of film aestheticians, which lends itself to beautiful imagery, is generally the creation of the “artist” director, while the astringent film is more often directed by competent, unpretentious craftsman who can be made to look very good by a good script and can be turned into a bum by a bad script. And this worldly and too practical to do the “imaginative” bits that sometimes helped make the reputation of “artist” directors.28
Kael não está de todo errada nessa constatação (que lembra inclusive o argumento de Thomas Schatz). O problema é que, ao longo do artigo, ela força seus argumentos - inclusive usando, como vimos, fontes bastante duvidosas, como John Houseman. Kael não procurou as pessoas que trabalharam com Welles no mesmo período em que Herman compunha a primeira versão do roteiro de Kane. Não bastando isso, numa das acusações mais graves do artigo, Kael afirma, a partir de uma fonte pouquíssimo confiável, que Orson teria tentado subornar Herman para que ele tirasse seu nome dos créditos.
O problema é que muito da própria argumentação de Kael sobre a autoria de Welles é complicada sobremaneira pela forma pouco ortodoxa que ela colheu seu material. Boa parte de Raising Kane apresenta material ricamente pesquisado e anotado - no entanto, a pesquisa e material original que Kael apresenta não foi produzida por ela, mas sim por Howard Suber, professor da UCLA. Kael não deu o devido credito a Suber em seu artigo.
At some point in mid-1969, Pauline discovered that Howard Suber, a tenure-track assistant professor in the motion picture department at UCLA, had spent years conducting intensive research of his own on Kane. Suber, in fact, started a graduate seminar devoted exclusively to the picture’s history and influence. The direction and screenplay were closely analyzed, and although Super failed to entice Orson Welles to visit his classroom, he did succeed in arranging “guest lectures” with Kane’s film editor, Robert Wise; key grip, Ralph Hogg; Welles’s assistant at the Mercury Theatre, Richard Wilson; and the actress Dorothy Comingore, who played Kane’s second wife, the opera singer Susan Alexander. Suber had also gained access to seven drafts of the Kane screenplays, which had previously been under lock and key in the RKO studio files. Missing from the archive was “American”, the title of Mankiewicz’s original, unwieldy first draft, but eventually, Suber tracked that down as well.29
Por conta do seu minucioso trabalho de pesquisa e levantamento de documentos, Suber chamou a atenção de dois influentes críticos e acadêmicos de cinema, John Kuiper e Richard Dyer MacCann. Ambos possuíam um contrato com uma pequena editora para produzirem um livro sobre Cidadão Kane - e que incluiria o roteiro de continuidade do filme. Kuiper e Dyer entraram e contato com Suber para que ele escrevesse um ensaio para o livro, analisando o processo de escrita e desenvolvimento do roteiro de Kane, passando por todas as suas transformações em diferentes tratamentos. Eventualmente, um contrato entre as três partes foi assinado, e Suber escreveu um ensaio de trinta e uma páginas para o livro.
Pouco tempo depois de assinar o contrato com Kuiper e Dyer, Suber recebeu uma ligação de Pauline Kael. A crítica da The New Yorker contou sobre seu contrato para escrever um livro sobre Kane e que editora, Little, Brown, também comprou os direitos de publicação do roteiro. Kael conheceu Suber em uma das suas visitas à UCLA, onde ela palestrava com relativa frequência. Ela sugeriu que cada um (ela e Suber) escrevessem um ensaio para o livro e dividissem o cachê. Em sequência, ela telefonou para Kuiper e Dyer, avisando de seu contato com Suber, e ambos críticos tiraram Suber do contrato que haviam assinado previamente. Suber, por sua vez, perguntou a Kael como que ficaria a situação dele por conta de seu contato prévio - ele não sabia que Kael já havia entrado em contato com Kuiper e Dyer, nem que ele já estava fora do contrato. Kael, no entanto, disse que eles poderiam resolver isso posteriormente. Para Suber, era de fato uma proposta irresistível: aqui estaria um jovem e obscuro acadêmico trabalhando lado a lado com a mais famosa e influente crítica de cinema dos Estados Unidos em um livro a respeito do mais famoso e influente filme de todos os tempos. Kael pagou US$375 (trezentos e setenta e cinco dólares) para que Suber enviasse a ela toda a sua pesquisa e material, o que ele fez.30
A biografia de Brian Kellow foi a primeira vez em que a história completa de Kael e Suber foi revelada (sendo que o próprio Suber concordou em contar seu lado da história pela primeira vez) e, novamente, re-animou o debate acerca da criação de Kane.31
Com a pesquisa de Suber e com os depoimentos bastante controversos de John Houseman e Rita Alexander, Kael formou a base “factual” de Raising Kane. Suber teve pouco contato com Kael ao longo do processo de escrita do ensaio - na verdade, escutava respostas evasivas por parte de Kael. E, num momento, ela simplesmente parou de atender suas chamadas e não entrou mais contato com ele. Assim, em fevereiro de 2021, Suber recebeu sua cópia de assinante da The New Yorker e se deparou com Raising Kane, que usava fartamente de sua pesquisa sem, no entanto, citá-lo ou mesmo creditá-lo. Suber não conseguiu nenhuma remuneração nem da revista, nem da editora Bantam.
In “Raising Kane” Pauline took repeated, barely disguised swipes at the auteurists. She believed that the worship of directors such as Welles and Fellini approached the ridiculous and that “such worship generally doesn’t help in sorting out what went into the making of good pictures and bad pictures”. What she didn’t do - and what enraged Welles’s many champions, devotees and apologists - was discuss at any substantial length what Welles did achieve in directing the film (…) [S]he had purposely avoided interviewing Welles for “Raising Kane”, she explained, because she did not think she could trust anything he might say. “I already know what happened”, she had said to Suber when he asked if she would be trying to get an interview with Welles. “I don’t have to talk to him”.32
A The New Yorker lançou o ensaio de Kael com fanfarra e um tom celebratório, e logo uma enxurrada de elogios apareceu na sequência. O acordo do livro mudou: o que seria uma versão em livro do ensaio de Kael tornou-se o grande e luxuoso The Citizen Kane Book, um volume grande, em capa dura, com o ensaio de Kael, o roteiro de continuidade de Kane e outros materiais, como oitenta e um fotogramas do filme ilustrando as páginas e roteiro.33
No entanto, uma resposta igualmente dura e agressiva contra o ensaio de Kael também surgiu na sequência. Andrew Sarris, escrevendo no The Village Voice, rejeitou categoricamente as teses de Kael, mas foi Peter Bogdanovich, com um longo ensaio publicado na revista Esquire (The Kane Mutiny), em outubro de 1972, que rebateu ponto por ponto o ensaio de Kael com evidências e provas factuais (Bogdanovich, afinal, tinha sido um crítico e historiador de cinema), além de tecer críticas bem duras contra ela34 - inclusive, foi neste ensaio que Bogdanovich levantou, ainda que brevemente, que a pesquisa toda do ensaio de Kael tinha partido de Suber, e que ela não o havia creditado adequadamente (Bogdanovich também tinha suas conexões com a UCLA). Além disso, Bogdanovich já era próximo de Welles (e conduzia suas entrevistas com ele, que formariam posteriormente o livro Este é Orson Welles) e sabia o quanto ele tinha ficado magoado e ofendido pelo ensaio de Kael, que reviveu suas antigas disputas sobre Kane.
ORSON WELLES: Essa ênfase no próprio artista - essa glorificação do artista - foi uma das viradas ruins que a civilização deu nos últimos duzentos anos. Em suma, todo o propósito de um livro como este é justamente com o que eu vivo brigando.
PETER BOGDANOVICH: Pois eu acho que tem a ser uma reação à idéia muito comum de que é um indústria, um estúdio ou uma equipe inteira que faz um filme.
OW: Na minha opinião você está equivocado. Por que não falar de uma equipe? Quem está lá ligando se aparecer um maquinista-chefe ou o sujeito dos acessórios cênicos dizendo que não fui eu que fiz Cidadão Kane? Vai ver é verdade - e daí? Vai ver foi Houseman quem escreveu e o maquinista que dirigiu. Que importância tem isso? O que importa é o filme.35
Essas respostas, no entanto, pouco fizeram para diminuir o poder ou mesmo a credibilidade de Kael ou da New Yorker. E é importante afirma que Bogdanovich - então um jovem diretor em ascensão - assumiu um risco considerável ao bater de frente com uma crítica poderosa e influente em uma revista poderosa e influente. Seu futuro como cineasta poderia ser comprometido ao bater de frente com a classe intelectual e crítica que julgaria seus filmes no futuro. Assim, sobre essas disputas intermináveis sobre a autoria de Kane, James Naremore conclui:
The incessant need to come to Welles’s defense over the credits of Kane as they appear on the screen has become tiresome. I bring up this old quarrel not because I believe Welles was a truly great writer - he wasn’t, and neither was Mankiewicz. Nor do I believe Welles and Mankiewicz wrote every word of the film. We know, for example, that at Welles’s request John Houseman wrote the French libretto of Susan Alexander’s opera debut. However, Welles was a very good writer; his films originated as words, and his writing, which was always transmogrified by his work as a director, was a motivating force and crucially important part of his ultimate aims as a filmmaker.36
E o que Orson Welles disse a respeito do trabalho de Herman e de sua colaboração com ele?
PETER BOGDANOVICH: Exatamente o quão importante foi [Herman J.] Mankiewicz em relação ao roteiro?
ORSON WELLES: A contribuição de Mankiewicz? Foi enorme.
PB: Quer falar sobre ele?
OW: Adoraria. Eu o adorava. Todo mundo gostava dele. Era muito admirado, sabe.
PB: Exceto por sua parte no roteiro de Kane… Bem, já li a lista de seus outros créditos…
OW: Ora, para o inferno com listas - tem muito escritor péssimo com créditos maravilhosos.
PB: Pode explicar isso?
OW: Sorte. Os maus escritores de sorte trabalharam com bom diretores que sabiam escrever. Alguns, como [Howard] Hawks e [Leo] McCarey, escreviam muito bem. Os roteiristas não gostavam nem um pouco. Pense naqueles velhos profissionais das usinas de filmes. Tinham de bater cartão toda manhã e ficar o dia inteiro sentados em frente à máquina de escrever, dentro daqueles tenebrosos “prédios de escritores”. Da perspectiva deles, o diretor era pior ainda que o produtor, porque no fim o que o importava de fato, nos filmes, era o homem que fazia a fita. Os grandes estúdios costumavam deixar os escritores se sentindo como cidadãos de segunda classe, mesmo o salário sendo muito bom. Claro que eles riam disso tudo, e grande parte do que há de mais divertido foi a criação deles - isso, não esqueça, quando Hollywood ainda era um lugar divertido. Mas, basicamente, muitos eram bem amargos e tristes. E ninguém era mais triste, mais amargo e mais divertido que Mank… um perfeito monumento de autodestruição. Quando a amargura não estava dirigida diretamente contra você, era a melhor companhia do mundo.37 [grifos meus]
Welles poderia estar sendo meramente gracioso com Herman na entrevista, afinal, seu status como gênio já estava, a essa altura, garantido no cânone do cinema. No entanto, o próprio trabalho posterior de Welles mostraria o quanto ele mesmo estava desconfortável com o papel que haviam dado a ele no cânone do cinema e com a própria politique des auteurs. Isso é evidente em seu último filme, lançado postumamente. O outro lado do vento é possivelmente o seu filme mais autobiográfico - o que quer dizer bastante, visto que Welles sempre inseria detalhes biográficos e piadas internas referentes à sua própria vida em seus filmes e personagens (muitos dos quais ele mesmo interpretava). O mais curioso disso é que o personagem central não é interpretado por Welles, mas sim por um dos seus melhores amigos, o cineasta John Huston.
Huston interpreta Jake Hannaford, um cineasta idoso e renomado, com uma extensa carreira que se estende até a Era de Ouro dos estúdios de Hollywood, que está fazendo um comeback com um novo e audacioso filme. O elenco do filme é composto por amigos e admiradores de Welles, como Peter Bogdanovich, Jonathan Rosenbaum, Joseph McBride, Richard Wilson, Joseph Cotten e diversos outros, que interpretam tanto personagens que se assemelham a quem são na “vida real” quanto a desafetos de Welles, como Juliet Rich (Susan Strasberg), uma crítica de cinema que tem óbvias desavenças com Hannaford, obviamente fazendo o papel de Pauline Kael. Welles optou por filmar O outro lado do vento em estilo semi-documental, inspirado no cinema veritè, aumentando ainda mais a confusão entre realidade e ficção, verdade e mentira. Hannaford, nesse sentido, é tanto um personagem ficcional quanto um amálgama do diretor durão e difícil - como a própria fama de Welles e Huston sugeria que fossem.
Na descrição que faz do personagem de Hannaford e do contexto de O outro lado do vento, Welles escreve que “Jovens cineastas querem imitá-lo” [“Young filmmakers want to emulate him”] e que “Godard é Deus. Existem alguns arcanjos selecionados” [“Godard is God. There are a few select arch-angels”]. Welles continua:
Na Idade de Ouro de Hollywood ... Hannaford foi classificado bem abaixo de nomes como Capra, [George] Cukor, Lubitch [sic], [Leo] McCarey, Ford ... Durante a maior parte de sua longa vida profissional, ele foi considerado pela indústria como não muito mais do que um dissidente talentoso, difícil e desconfortavelmente inteligente. Sua verdadeira importância foi reconhecida por críticos e historiadores do cinema apenas recentemente. A mudança começou do outro lado do Atlântico. O tipo de sensibilidade europeia que, duas gerações antes, havia chamado a atenção da América para a genialidade de sua própria música jazz, começou no final dos anos 50 a proclamar a alta importância de JJ Hannaford ... Isso demorou um pouco para se espalhar, mas hoje ele contou, mais ou menos oficialmente, entre os seis maiores diretores vivos. Algumas pessoas somariam doze. Muitos dariam a ele a primeira posição. [In Hollywood’s Golden Age… Hannaford was rated well below such names as Capra, [George] Cukor, Lubitch [sic], [Leo] McCarey, Ford… For most of his long working life he was regarded by the Industry as not much more than a gifted, difficult, and uncomfortably intelligent maverick. His true importance has been acknowledged by critics and film historians only recently. The change began on the other side of the Atlantic. The sort of European sensibility which, two generations earlier, had called America’s attention to the genius of its own jazz music, began in the late fifties to proclaim high significance of J. J. Hannaford… This took a while to spread, but today he’s counted, more or less officially, among the six greatest living directors. Some people would make that twelve. Quite a few would give him first position].38
A descrição acima poderia ser do próprio Welles e é interessante que ele tenha incorporado três críticos que não só admiravam o seu trabalho mas que o colocavam em uma posição bem alta no cânone cinematográfico: Peter Bogdanovich, Joseph McBride e Jonathan Rosenbaum. E o próprio filme dirigido por Hannaford parece expressar o descontentamento que Welles tinha com muitos filmes dirigidos por figuras européias endeusadas por estes mesmos críticos, como Godard e Michelangelo Antonioni.
O estilo que Welles adota no filme, misturando diferentes formatos (preto-e-branco e colorido, fotografias com película 16mm e 35mm), num ritmo alucinante que remonta tanto ao cinema veritè quanto ao jornalismo marrom praticado por papparazzi ajudam a simular o desconforto que o próprio Welles sentia cada vez mais com a mídia e o seu próprio status como celebridade. A câmera é invasiva, tendo a acesso a todos os personagens e cantos - menos à própria mente de Hannaford, que permanece uma figura ambígua, contraditória. Welles
simply turned turned the cameras on the working world around him, portraying the director as part hustler, part frustrated artist, and part aging Don Juan. This man is a flawed figure, but the disparity between his legend and his actual circumstances makes him seem at once tragic and fraudulent. We must assume that Welles had an intimate understanding of such phenomena, having made himself at a very early age into a kind of show business superman, and having developed at the same time an almost morbid fascination with the dangers of fame. He knew that as much as he wanted and needed power, its effects were corrosive.39 [grifos meus]
O que resta de Hannaford, além daqueles que comentam sobre ele o tempo todo (assim como vemos em Kane) é a sua própria obra, seu último testamento - isso é, o seu filme, que vemos poucos trechos ao longo de O outro lado do vento. Um filme que será discutido e debatido por inúmeras gerações subsequentes, mantendo a memória de Hannaford viva. E isso nos traz a Mank (idem, 2020, de David Fincher).
Em uma citação de Welles que utilizamos no começo desse capítulo, destacamos o seguinte trecho: “Dirigir um filme é a invenção de pessoas como vocês: não é uma arte, no máximo uma arte que dura um minuto por dia. Este minuto é terrivelmente crucial, mas só muito raramente acontece”; ela é muito semelhante à maneira como Fincher vê o próprio papel do diretor:
Fincher accepts filmmaking as a Sisyphean task: “That’s the job. That’s what it is. Doing cool stuff like designing shots is 1 percent of your life. The other 99 percent is holding everything together while there’s total fucking chaos, maximizing the amount of hours that you have in order to get stuff, pulling the shit out of your ass to fix things, being able to work on your toes.40 [grifos meus]
Ou, simplesmente:
A director is like a quarterback. You get way too much credit when it works and way too much blame when it doesn’t.41
Bom, aí temos uma outra questão sobre a autoria no cinema: quem deve levar o crédito? Mais uma vez, a opinião de Fincher:
[B]ut his need for absolute control compels him, begrudgingly, to take ownership of his work: “I have many, many friends who are vice-presidents and presidents of production companies at movie studios, and they never understand this very simple thing: My name’s going to be on it. Your name’s not on it. Your point of view is as valid as any member of the audience. But it’s a different thing when your name’s on it, when you have to wear for the rest of your life, when it’s on a DVD and it’s hung around your fucking neck. It’s your albatross”.42 [grifos meus]
É muito interessante ver essa constatação de Fincher à luz de Mank. Ser creditado em um filme pode ser tanto uma honra quanto uma vergonha, fortuna e maldição. Do mesmo jeito que Fincher lutou para retirar seu nome dos créditos de Alien 3, Herman lutou para ter o seu nome em Cidadão Kane. Quando o Mank começa, nos anos 40, Herman aceita o trabalho de escrever o roteiro de Cidadão Kane pois precisava de dinheiro para pagar suas contas e dívidas de jogos de azar (e sustentar seu hábito alcoólico). Mas, à medida que vai compondo a história e percebe que aquilo é mais do que simplesmente um cheque (é uma ópera), Herman quebra seu contrato e promessa e decide ter seu nome nos créditos de Cidadão Kane. O que era para ser mais um trabalho se revela, surpreendentemente, como uma obra de arte. No caso de Fincher, o que era para ser a sua estréia autoral e grandiosa no cinema foi tratado pelos produtores e estúdio como mais uma continuação, feita para ganhar dinheiro e renovar uma franquia envelhecida. Ter o seu nome nos créditos de um filme significa carregar isso não só pelo resto da vida, mas como além dela. Afinal, aqui estamos discutindo, mais uma vez, a autoria de Herman J. Mankiewicz no roteiro de Cidadão Kane.
Herman nunca mais escreveu outro roteiro do porte de Kane. Na maior parte das vezes, retocava roteiros ou contribuía em filmes B e outros que eram desprezados pelos grandes produtores. E nem ele batalhou por melhores oportunidades. Seus trabalho pós-Kane pode ser visto como uma sequência de encomendas, feitas para ganhar dinheiro e sobreviver. Cidadão Kane, no entanto, foi algo mais pessoal, não “só” um triunfo artístico da escrita cinematográfica mas algo diretamente relacionado à sua experiência. Como no caso de O outro lado do vento, Herman povoou o seu filme com personagens que são duplos daqueles que conheceu. É o seu acerto de contas com a elite hollywoodiana, com o próprio cinema e uma homenagem à Marion Davies.
Ao contrário da personagem de Susan Alexander, que tem pouco em comum com quem Marion era, Herman sabia quem ela verdadeiramente era na vida real. Por isso, compôs não só uma Marion Davies completamente divorciada de quem ela era na vida real (Susan Alexander) como, também, uma Marion Davies que todos, inclusive aqueles que conviviam em proximidade com ela, achavam que ela fosse de fato. Essa mesma relação se aplica a Herman: quando seu roteiro começa a circular em Hollywood, todos se surpreendem: seu irmão Joe, John Houseman, Orson Welles e, claro, a própria Marion Davies.
Essa intimidade com os fatos da vida real é algo compartilhado entre Herman e Marion. Joe Mankiewicz e John Houseman elogiam o triunfo técnico e artístico do roteiro de Herman, assim como Marion o faz, mas ela, diferentemente deles, vê Herman naquele roteiro, assim como ele a via por trás das fantasias que usava nas festas de San Simeon.
Seria de se esperar que Jack e David Fincher se apoiassem no artigo de Kael para compor Mank: quase não há informação disponível sobre a vida de Herman J. Mankiewicz e o artigo de Kael não só reconstrói sua biografia, como oferece seu ponto de vista (isso é, o de Herman) sobre a Hollywood do período, em especial sua relação com os estúdios, Hearst, Thalberg, Mayer e, claro, Marion Davies. Dito isso, seria um erro também afirmar que os Fincher (David, em especial) sejam totalmente parciais à tese de Kael. Fincher não reacendeu o debate em torno da criação de Cidadão Kane por que tenham algum interesse particular em teoria do autor ou qualquer coisa do tipo; na verdade, o fato de Fincher tanto se apoiar no ensaio de Kael quanto contestá-lo (como vimos no final do capítulo anterior) é para gerar uma ambiguidade não tanto em torno de Kane mas sim no próprio assunto central de Mank: a mente do criador e o processo de criação.
Orson Welles: uma biografia. Págs. 202-3.
Este é Orson Welles. Pág. 98.
Orson Welles: precedido de “Welles e Bazin”, de François Truffaut, e seguido por “Conversas com Orson Welles”. Pág. 139.
O Gênio do Sistema. Pág. 19.
André Bazin desde o início da Cahiers tinha uma serie de reservas quanto à politique des auteurs. Isso, por exemplo, precipitou uma série de disputas com Godard. Toda essa história a respeito da crítica e historiografia é recontada nas páginas do clássico livro de Bazin, O que é cinema, que foi relançado em 2018 pela editora Ubu (com tradução de Eloísa Araújo Ribeiro). O prefácio, escrito por Ismail Xavier, reconta essa história em seu esboço biográfico de Bazin. Ver também Cinefilia, de Antoine Baecque. 2010. São Paulo, Cosac & Naify.
Sobre a história do estilo cinematográfico, de David Bordwell. Trad. Luís Carlos Borges. Editora Unicamp. Campinas: 2013. Págs. 76-7.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 77.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 88.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 90.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 108.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 109.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 111.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 114.
Sobre a história do estilo cinematográfico. Pág. 114.
O gênio do sistema. Págs, 19-20.
O Gênio do Sistema. Págs. 19-20.
Além de único, o exemplo de Welles é, bem, “extremo”. Não é de se surpreender que a explosiva estréia de Welles tenham sido tão atraente aos então chamados “Jovens Turcos” da crítica francesa.
The Citizen Kane Book. Pág. 3.
Além do artigo de Kael em 1971, um ano antes o jornalista Charles Higham publicou uma “biografia” de Orson Welles, The Films of Orson Welles, cuja tese central era a de que Welles seria psicologicamente incapaz de terminar seus filmes e honrar compromissos em decorrência de uma personalidade auto-destrutiva. A publicação desse livro afastou produtores e financiadores, atrasando ainda mais a produção de The Other Side of the Wind e, ironicamente, contribuindo para que o filme levasse décadas para ser concluído.
Barbara Leaming. Págs. 204-5. Em Este é Orson Welles, Peter Bogdanovich pergunta a Orson se este considera Houseman um inimigo. Welles responde: “Reescrevendo uma velha piada húngara: se você o tem como amigo, não precisa de um inimigo…”. Este é Orson Welles, pág. 98.
Barbara Leaming. Pág. 204.
The Citizen Kane Book. Pág. 4.
The Citizen Kane Book. Págs. 18-9.
The Citizen Kane Book. Pág. 12.
The Citizen Kane Book. Pág. 12.
The Citizen Kane Book. Pág. 26.
The Citizen Kane Book. Págs. 28-9.
The Citizen Kane Book. Pág. 16.
Pauline Kael: A Life in the Dark. Pág. 157.
Pauline Kael: A Life in the Dark. Págs. 157-8.
Howard Suber on Pauline Kael’s Research Theft: ‘It Felt Like Rape’, de Brent Lang. Em: https://www.thewrap.com/howard-suber-pauline-kaels-research-theft-it-felt-rape-32647/. Acesso em 14 de Outubro de 2021.
Pauline Kael: A Life in the Dark. Págs. 163.
Pauline Kael: A Life in the Dark. Págs. 164.
O ensaio pode ser lido aqui (somente para assinantes): https://classic.esquire.com/article/1972/10/1/the-kane-mutiny
Este é Orson Welles. Págs. 318-9.
The Magic World of Orson Welles. Pág. 12.
Este é Orson Welles. Págs. 95-6.
Trecho do roteiro de O outro lado do vento. Reproduzido em The Magic World of Orson Welles. Pág. 283.
The Magic World of Orson Welles. Pág. 288.
David Fincher: Interviews. Págs. IX-X.
David Fincher: Interviews. Pág. IX.
David Fincher: Interviews. Pág. IX.