Mais um ano, mais um Oscar. Pois é, até os textos que se escrevem sobre a premiação - para não falar da premiação em si - precisam começar com um clichê. Todo ano as polêmicas se repetem, as “esnobadas” da premiação se repetem, assim como os equívocos sobre a natureza dos filmes premiados (não há como selecionar algo como um “Melhor Filme”, por óbvio) e as explicações (sim, o Oscar é uma premiação sobre contexto, política - não necessariamente sobre ideologia -, e narrativa). Tudo é muito cansativo.
Eu ainda não assisti todos os filmes que foram selecionados. O que mais quero assistir é, sem dúvida, O Brutalista (The Brutalist, de Brady Corbet), mas vou dar uma chance a Conclave (idem, de Edward Berger) e Nickel Boys (idem, de RaMell Ross). Certamente não vou assistir Wicked (idem, de Jon M. Chu) e Emilia Perez (idem, de Jacques Audiard). Eu gosto de prezar por meu tempo e saúde mental, que anda precária. Também não assistirei Um completo desconhecido (A Complete Unknown, de James Mangold). É verdade que eu gosto de Mangold, mas detesto essas wikipics. “Ah, Luis, mas vão não sabe se é um filme genérico só tendo assistido ao trailer”. Sim, é verdade, estou julgando o livro pela capa. Acontece. Se for um filme brilhante, quem vai sair perdendo sou eu, e esse é um risco que estou disposto a correr.
Mas eu assisti Anora (idem), de Sean Baker. Há diversas coisas interessantes a respeito do filme. Quer dizer, mais sobre o contexto em seu entorno - inclusive em relação ao Oscar (e à Palma de Ouro em Cannes no ano passado) do que sobre o filme em si. Não há muito o que falar sobre Anora. É um filme bem feito, com aspectos técnicos adequados (como dizem hoje em dia, o craft é bom). É divertido, rende boas risadas, uma tensão aqui e ali. Mikey Madison no papel título de fato brilha, assim como o elenco de apoio, em especial Mark Eydelshteyn (Ivan), Yura Borisov (Igor) e Karren Karagulian (Toros). O roteiro é tecnicamente muito bem apertado, e rendeu comparações (um tanto despropositadas) com Howard Hawks, por conta de cenas longas em que vários personagens discutem, uns falando sobre os outros. É um pesadelo de ensaiar, decupar, mixar e, principalmente, montar, e Sean Baker se sai muito bem. Não acho que a comparação com Hawks seja apropriada pois o diretor de À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946) sempre colocava esses diálogos não simplesmente como conflito, mas como competição entre os personagens. Competição social, econômica, física e sexual. Há ecos distantes dessas camadas em Anora, mas Baker simplesmente não aprofunda nenhuma delas. E é aí que reside o maior problema do filme: ele simplesmente não tem substância (sim, é um trocadilho com outro filme da premiação).
Desde Tangerine (idem, 2015) eu acompanho a sua carreira, e inclusive revi seus filmes mais antigos. Tangerine é interessante porque representa uma transformação na carreira de Baker, fechando a primeira fase dela. Four Letter Words (2000), Take Out (2004), Prince of Broadway (2008) e Starlet (2012) - assim como as séries Greg the Bunny (2002-2006) e Warren the Ape (2010) - revelam um diretor que trabalha de maneira artesanal, com micro-orçamentos e temas recorrentes: personagens marginais, geralmente imigrantes que sobrevivem nas grandes cidades americanas operando na indústria de serviços. São obras que conquistaram um público restrito, em festivais regionais nos EUA e europeus. Tangerine é um marco em sua carreira pois nele Baker pega seus temas mais caros - incluindo aí a vida de profissionais do sexo - e os insere dentre um molde maior - no caso, a indústria do cinema independente norte-americana. O filme foi produzido pelos irmãos Duplass, os queridinhos do cinema independente dos anos 2010, e sem dúvida o grande nome da tendência desse cinema no período, o mumblecore.
Tangerine não é mumblecore, mas ele se torna mais acessível ao abordar temas queridinhos do período: a personagem principal é uma prostituta transgênero, e o filme mantém a temática de crítica social mas a torna mais acessível com toques de tragicomédia - que é uma marca do mumblecore. Foi distribuído pela Magnolia Pictures, powerhouse do cinema independente, e estreou em Sundance, a meca desse tipo de cinema nos EUA. Tangerine teve presença importante nos principais festivais do cinema indepente: o Gotham Independent, o Spirit Awards, o Karlovy-Vary, e o San Francisco Film Critics Circle. Além disso, a Magnolia tentou entrar no Oscar daquele ano fazendo a primeira campanha direcionada para a Academia focada no aspecto trans do filme; isto é, levantando a ideia de se criar uma categoria exclusiva para performers transgêneros.
O sucesso crítico e comercial de Tangerine (que custou cem mil dólares e fez um milhão de bilheteria) elevou a “categoria” de Baker, e seus filmes seguintes seguem o mesmo modelo estabelecido por esse, mas com uma paleta maior e mais ambiciosa. Com Florida Project (Projeto Flórida, 2017) e Red Rocket (2021), Baker inicia sua parceria com a butique A24. Projeto Flórida é sem sombra de dúvida o seu melhor filme. Ele aborda um grupo de pessoas que vivem Orlando, na Flórida, e trabalham na indústria de serviços que existe para servir de apoio aos parques temáticos - mas são pessoas que não possuem condição de visitarem a Disney ou Universal. Trata-se de um painel humano que é retratado com grande sensibilidade por Baker, misturando veteranos (Willem Dafoe), com atores não-profissionais e amadores. É a síntese do cinema de Baker em todo seu potencial expressivo e temático. Red Rocket é uma tentativa, ao meu ver, de se fazer um cinema mais acessível - isto é, uma comédia dramática de humor negro que fala sobre a indústria pornô e outros assuntos tabus, como pedofilia. É uma obra divertida, mas de certa forma antecipa Anora: apesar dos seus temas bem estabelecidos, do seu inegável talento técnico, e da sua capacidade de chegar ao público, inclusive em escala, Baker simplesmente não tem nada muito interessante a dizer.
Esse é o grande problema de Anora: em nenhum momento o filme faz um salto dramático, temático. Algo que arrisque. Falei das comparações com Howard Hawks, mas ao meu ver, a maior comparação a ser feita é com o superlativo Jóias Brutas (Uncut Gems, 2019), dos irmãos Safdie. Em ambos temos uma narrativa ao estilo “bomba relógio”, com personagens correndo contra o tempo; há uma ênfase étnica, onde Baker fala sobre imigrantes russos e eslavos, enquanto os Safdie fala sobre judeus no mundo das joalherias de Manhattan; há uma profusão cenas tensas e tragicômicas com grupos de personagens falando e gritando uns sobre os outros. E, assim como Baker, os irmãos Safdie também vieram do universo de microfilmes independentes, artesanais, até aos poucos irem ganhando espaço no universo independente, eventualmente fechando parceria com a A24. Não há uma tragédia de fato em Anora, não há nenhum insight arriscado sobre imigrantes russos nos Estados Unidos, o papel dos oligarcas no submundo americano e, principalmente, sobre a realidade do mercado do sexo. Nada. Há sopros nessas direções, mas Baker simplesmente não arrisca nada. E por isso que ele ganhou tantas estatuetas no último Oscar (isso e, claro, e também os 18 milhões de dólares que a A24 investiu na campanha do filme em Los Angeles).
Posso citar alguns filmes que arriscam nessa temática: Accattone (idem, 1961, de Pier Paolo Pasolini); A Bela da Tarde (Belle du Jour, 1967, de Luís Buñuel); Perdidos na noite (Midnight Cowboy, 1969, de John Schlesinger - o único filme da história a ganhar um Oscar de Melhor Filme tendo recebido a classificação X, reservada a filmes pornográficos nos Estados Unidos); Klute (idem, 1971, de Alan J. Pakula); Gigolô Americano (American Gigolo, 1980, de Paul Schrader); Boogie Nights (idem, 1997, de Paul Thomas Anderson) e The Girlfriend Experience (idem, 2009, de Steven Soderbergh). Mas, talvez, o filme que mais arrisca entre todos esses é Showgirls (idem, 1995), de Paul Verhoeven. O mestre holandês arriscou tanto no filme que, além do fracasso de bilheteria, acabou com sua carreira nos Estados Unidos, e a atriz principal, Elizabeth Berkeley, então uma estrela em ascensão, teve sua trajetória seriamente prejudicada. Mas é um filme que contempla a comédia, o horror, a vulgaridade, a banalidade e o absurdo inerente nesse universo, ao mesmo tempo em que explora o voyeurismo do espectador. É um filme que reescreve o sonho americano, dialogando com O grande Gatsby e as contradições morais e espirituais da sociedade americana, ao situar a narrativa numa cidade de mentira e pecado como Las Vegas (que só aparece em vislumbres em Anora). Mas Anora não é um filme de riscos, e Sean Baker não é um holandês maluco. Seu filme tem risco calculado - literalmente - pela NEON, produtora butique e rival da A24.
Esse talvez seja o aspecto mais interessante da premiação deste ano. Todo tipo de filme foi contemplado na principal categoria, de blockbusters como Wicked e Duna Parte 2 (Dune Part 2, de Denis Villeneuve), passando por dramas clássicos de co-produções latinas e européias, como Conclave e Ainda Estou Aqui (de Walter Salles) e produções de streaming, como Emilia Perez e A Substância (The Substance, de Coralie Fargeat). E há, claro, as produções dessas butiques independentes, como O Brutalista (A24) e Anora (NEON). Em 2023, a Academia premiou a A24, com Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once, 2022, de Daniel Kwan e Daniel Scheinert). Após anos de streamings - principalmente a Netflix - tentando emplacar seus filmes no Oscar, sem sucesso, é sem dúvida interessante ver que a Academia não cedeu à pressão, e rapidamente privilegiou as produções independentes dessas butiques.
Pois, por mais que possamos criticar os filmes de Baker e Daniels, sem sombra de dúvidas eles são os mais interessantes. E mesmo os filmes mais interessantes que os streamings fizeram nos últimos anos, como os de Bong Joon-Ho, Martin Scorsese, David Fincher, Andrew Dominik e outros, são filmes que poderiam ter sido feitos por essas butiques. Anora pode ser um conta de fadas insosso, mas também não é exatamente um clássico Oscar bait. Sem dúvida é um filme mais interessante que Shakespeare apaixonado (Shakespeare in Love, 1998, de John Madden), Moonlight: Sob a luz do luar (Moonlight, 2016, de Barry Jenkins), Green Book: o Guia (Green Book, 2018, de Peter Farrelly), e CODA (idem, 2021, de Sien Heder). A bem da verdade, o que a A24 e a NEON (e, agora, o streaming MUBI) estão fazendo não é nada de novo. Até os anos 2010, antes da ascensão dos streamings e da Era das Franquias, era comum Hollywood investir em projetos de midbudget, de médio orçamento, feito por diretores com alguma voz ou estilo mais autoral, mas que, ainda assim, tinham viabilidade comercial. Podiam ser thrillers, horror, comédia dramática, ficção-científica, musicais. Era relativamente normal que filmes assim, que transitam entre categorias, tem ambição comercial (ainda que não sejam blockbusters) e artística, fossem feitos pela indústria. Para repetir outro clichê, o poder odeia o vácuo, e ele parece estar sendo rapidamente preenchido por butiques que tem mostrado seu poderio econômico, inclusive tirando o espaço comprado com muitos dólares pelos streamings. Então, sim, Anora pode ser um filme medíocre (e o Oscar quase sempre premia o medíocre), mas o saldo geral desta última edição é, afinal, positivo.
Gostei bastante de "The Brutalist" e "The Substance". Gostei de "Anora", mas não vi os outros filmes do Baker. Mas, apesar disso, esses filmes e os outros indicados à premiação residem em temáticas simplesmente batidas e que já foram muito bem esgotadas por outras obras anteriores (e melhores). "A ilusão do sonho americano", "conflitos de classe", "a ditadura da beleza" - todos esses assuntos terminam em obviedades que, com uma estatueta do lado, são tratadas como genialidades. Aí vem o papo dos "temas importantes, atuais e urgentes", mas isso é desculpa esfarrapada pra não ter nada de novo a dizer e se safar por falar que o céu é azul e a grama é verde.
Aliás, a ideia de uma premiação capitalista, que dita mais tendências de mercado do que tendências estéticas, premiar longas pelo seu suposto conteúdo socialmente consciente é a maior "matrix dentro da matrix" que eu consigo conceber. Nos anos 50, em plena Guerra Fria, o capitalismo te vendia a ideia de que ele era a melhor forma de vida (não só de economia e política) disponível, até porque ele tinha que competir com a ideia concorrente no mercado político à época. No século XXI, ninguém mais compra essa ideia tão fácil (só seguidores de coachs de empreendedorismo que pagam uma grana preta num curso e livros do Pablo Marçal), portanto o capitalismo precisa te convencer a lhe dar o seu dinheiro de outra maneira: ele simula pra você um auto-flagelo, um falso teatro da consciência. "Eu sei que eu sou um capitalista branco cis imperialista que causou sofrimento para milhares de pessoas, eu tô arrependido, olhe pra mim como eu estou me chicoteando pra provar que eu tenho consciência dos meus 'pecados'; agora, me dá o seu dinheiro, porque ele é a recompensa mais justa pro meu arco de 'redenção'". No caso de uma premiação como o Oscar, quando este dá a estatueta pra filmes como "12 Years A Slave", "Green Book", "Parasite", "Nomanland", "Everything Everywhere All At Once" e "Anora", nada mais é que a indústria colocando uma medalha em si mesma por ter dito: "foi mal aí, perdão pelo vacilo".
Enquanto isso, autores que realmente tem algo a dizer ficam nos cantos, e isso quando não são esmagados por essa mesma indústria que sinaliza suas próprias "virtudes": Coppola, Cronenberg, Eastwood e até nomes da nova geração como o S. Craig Zahler. E, sinceramente, uma pessoa que realmente estivesse preocupada em apontar as hipocrisias do capitalismo e do sonho americano muito provavelmente se enojaria por receber validação de Oscar.
Fiquei com a impressão de que a academia quer ir na direção de filmes com o orçamento mais modesto, desde de o ano passado, excluindo a campanha. Se a mensagem que academia quer passar visando a sustentabilidade da indústria, acho uma boa direção.