Sonhos atômicos: O Retorno do Rei
Uma (breve) introdução aos filmes de GODZILLA | Parte 5: MonsterVerse e a Era Reiwa
MonsterVerse | Godzilla norte-americano
MV1. Godzilla (idem, Gareth Edwards, 2014)
MV2. Kong: Ilha da Caveira (Kong: Skull Island, Jordan Vogt-Roberts, 2017)
MV3. Godzilla II: Rei dos Monstros (Godzilla: King of the Monsters, Michael Dougherty, 2019)
MV4. Godzilla vs Kong (idem, Adam Wingard, 2021)
MV5. Monarch: Legado dos Monstros (Monarch: Legacy of Monsters, 2023, série de TV em live action)
MV6. Godzilla vs Kong: O Novo Império (Godzilla vs Kong: The New Empire, Adam Wingard, 2024)
Com o sucesso de universos cinematográficos como o da Marvel e de Velozes e Furiosos, nada mais natural que Hollywood se voltasse, mais uma vez aos kaiju da Toho. A Warner Bros, em parceria com a produtora Legendary Pictures, começou a desenvolver uma nova versão desses personagens, num contexto norte-americano, tendo em vista o desenvolvimento de um universo cinematográfico que culminaria com Godzilla enfrentando King Kong - remetendo ao filme original de 1962.
É interessante como Godzilla permaneceu no imaginário Ocidental, em especial o norte-americano, quando muito dos filmes japoneses sequer passavam nos cinemas do país, e quando os filmes eram de difícil acesso. As fitas VHS dos filmes da Era Showa e Heisei, por exemplo, eram caras e continham uma péssima dublagem. Isso, somado ao fato de que os americanos (e Ocidentais no geral) tradicionalmente não aceitam muito facilmente os efeitos suitmation e estilo narrativo fez com que Godzilla, na prática, tivesse pouca entrada. Restava a ele sobreviver em referências pop, ou então, através de histórias em quadrinhos (como aquelas produzidas pela Marvel Comics), brinquedos, jogos de videogame e desenhos animados. Por isso, apesar de ter pouca “pegada cultural”, é surpreendente que, mesmo assim, ele seja amplamente conhecido, e que os filmes do MonsterVerse tenham sido, no geral, grandes sucessos de bilheteria e de crítica.
Não quero me deter muito aqui, mas posso afirmar sem exageros que o MonsterVerse gerou os blockbusters mais interessantes e artísticos da Era das Franquias. Pouco preocupado com continuidade excessiva, dando bastante liberdade criativa aos cineastas para desenvolverem seus temas e estética, o MonsterVerse permitiu a criação de filmes esteticamente deslumbrantes, e que trabalham temas metafísicos e culturais, que refletem sobre a relação Ocidente vs Oriente de maneiras inusitadas e reveladoras. Tanto que os próprios japoneses receberam esses filmes positivamente, e digo que os filmes dessa fase são melhores que muitos que a própria Toho já produziu.
E, no entanto, o MonsterVerse tem uma origem bastante curiosa. Sempre existiu uma vontade por parte de diretores e estúdios americanos de licenciarem o personagem para os Estados Unidos. No início dos anos 1980, quase aconteceu. O diretor Steve Miner - responsável por Sexta-Feira 13 Parte 2 e Sexta-Feira 13 Parte 3D (Friday the 13th Part 2, 1981; Friday the 13th Part 3D, 1982) - e Fred Dekker - por sua vez, responsável por clássicos dos anos 80 como A noite dos arrepios (Night of the Crepes, 1986) e Deu a louca nos monstros (Monster Squad, 1987) - entraram em negociações com a Toho para fazerem um filme americano de Godzilla, que se usaria de stop-motion, ao invés de suitmation. A Toho não tinha planos de fazer um novo Godzilla, após o fracasso de Terror of Mechagodzilla e a percepção de que o gênero kaiju estava em decadência. No entanto, quando vazaram as notícias de que a Toho vendeu os direitos do personagem para uma dupla de americanos, uma parte vocal do público se precipitou, cobrando que os japoneses fizessem a sua própria versão de Godzilla. O “Godzilla Resurrection Comittee” era formado por grupos de fãs que cobraram o criador e produtor da série, Tomoyuki Tanaka, para que não só um novo filme do monstro fosse feito para uma nova geração, mas principalmente para impedir que um ícone cultural do país fosse tomado pelos americanos. A Era Heisei nasceu dessa forma - e o filme de Miner e Dekker morreu durante a sua fase de concepção, visto que os estúdios não queriam gastar dinheiro num filme que seria caro - e, segundo os executivos, voltado para crianças.
O curioso, no entanto, é que a própria Era Heisei chegou ao seu fim quando a Toho vendeu os direitos do personagem para a Sony Pictures/TriStar (uma empresa japonesa, mind you) para que um filme americanizado fosse feito. No acordo estabelecido com a Sony, a Toho deveria ficar 10 anos sem produzir um filme do Godzilla, de 1995 até 2005, para que a versão americana pudesse ter, digamos, “espaço”. Até aí, tudo bem, uma vez que os filmes da Era Heisei gradualmente começaram a dar menos retorno de bilheteria (isso é comum em cada Era do Godzilla, já que a Toho sempre optou pelo modelo anual de lançamento de filmes, o que invariavelmente prejudica a marca). O problema é que o Godzilla americano, lançado em 1998 e dirigido por Roland Emmerich não só foi uma decepção nas bilheterias, como foi vilipendiado pela crítica e público. Não, Godzilla 1998 não é um filme do Godzilla, mas sim só mais um blockbuster genérico de Emmerich: um disaster movie que por acaso tem um lagarto gigante. A Sony perdeu o interesse em fazer mais filmes, e a Toho ficou genuinamente enfurecida com o longa americano. Tanto executivos quanto fãs dos personagens cobraram o seu retorno, e logo em 1999 tivemos Godzilla 2000, inaugurando a Era Millenium, apenas 4 anos após o fim da Era Heisei.
Parte dos problemas de crise de identidade da Era Millenium vieram do fato de que a Toho prefere períodos longos de gestação entre cada fase - geralmente 10 anos, em média. E, uma vez que uma Era começa, temos o lançamento de um filme por ano. Isso faz com que a Era Millenium, com seus muitos erros, gere também grandes acertos, como a experimentação. Godzilla Finał Wars foi a tentativa de encerrar a saga Godzilla, e os executivos pretendiam deixar o monstro dormente por um tempo indefinido (em grande parte porque Final Wars havia sido, até aquele momento, não só o maior orçamento de toda a série, mas também um dos seus maiores fracassos de bilheteria). Isso ajudaria a separar o filme de 2004 com o lançamento de Shin Godzilla em 2016 - o maior período até então entre uma era e outra do Godzilla. E isso, em grande parte, possibilitou que o MonsterVerse americano surgisse e prosperasse. A questão é que ele não seria inteiramente americano, também.
Depois do desastre de 1998, a Toho se tornou muito mais vigilante com a forma como os americanos tratariam seus personagens, tanto que o acordo em si evolui. Para o Godzilla de 2014, dirigido por Gareth Edwards, por exemplo, não poderiam ter nenhum outro kaiju do catálogo da Toho (e isso resultou nos MUTOs, provavelmente os piores kaijus da história do cinema - nós Ocidentais temos de admitir que desenhar monstros gigantes não é nosso forte). Mas são negociações que evoluíram - a própria aquisição dos direitos de King Kong da Universal, para serem usados pela Legendary/Warner, foi algo que surgiu no meio do caminho (Kong: Ilha da caveira seria um prequel ao filme de Peter Jackson, lançado em 2005). O fato é que no intervalo entre Final Wars e Godzilla 2014, do MonsterVerse, houveram inúmeras tentativas de se trazer o Rei dos Monstros para a telona. Quem mais trabalhou para que isso acontecesse foi Yoshimitsu Banno, diretor de Godzilla vs Hedorah, de 1971.
Godzilla vs Hedorah talvez seja um dos filmes mais… inusitados da franquia. Banno combina um visual psicodélico e avant-garde ao estilo kaiju, resultando em um filme que parece um delírio lisérgico. Mas Banno sempre foi um diretor conectado a causas ambientais no Japão, em especial o crônico problema de lixo do país. Por isso que Hedorah é, literalmente, um kaiju feito de lixo tóxico. O filme é tão estranho e esquisito que o produtor Tomoyuki Tanaka jurou que Banno jamais deveria dirigir ou mesmo chegar perto de qualquer coisa relacionada a Godzilla. Isso não impediu o diretor/produtor Banno de tentar, no entanto, e a morte de Tanaka em 1995 abriu uma nova possibilidade para que ele tentasse, mais uma vez.
Parte das novas proposições de Banno era um tipo novo de Godzilla, experimentando em formatos como 3D (que já fazia parte das ideias de Steve Miner e Fred Dekker, ainda nos anos 80) e o IMAX. Mais uma vez, o filme seria uma espécie de continuação “espiritual” de Hedorah, e veríamos Godzilla enfrentando um novo kaiju (“Deathla"), um shape-shifter que teria poderes oriundos da poluição. O curioso é que a Toho ia tentar um novo tipo de contrato, semelhante ao que fizeram com a Sony/TriStar nos anos 90: Banno receberia os direitos de Godzilla, e ele teria que buscar financiamento em outros lugares e sem o auxílio da Toho que, por sua vez, era contratualmente obrigada a aprovar todo e qualquer design dos kaijus nos filmes. Banno tentou fazer seu filme de Godzilla por quase 10 anos, de 2003 a 2010, mas nunca conseguiu o financiamento. O filme mudou de roteiro e orçamento inúmeras vezes, pois a cada novo tratamento do projeto Banno se aliava a uma companhia produtora diferente - e isso chamou a atenção da Legendary Pictures, que pretendia fazer não só um novo filme do Godzilla para os Estados Unidos, mas um que se encaixasse nas demandas por universos cinematográficos compartilhados - ou seja, inspirado no Marvel Cinematic Universe.
A Toho tentou barrar o acordo, e eventualmente chegaram a uma resolução. Os direitos de Godzilla voltariam integralmente para a Toho para que a Legendary Pictures pudesse chegar a um novo acordo com os japoneses, onde as duas empresas financiariam, em conjunto, os novos filmes. O acordo teria duração de 5 anos, começando em 2014. O sucesso deste filme, inclusive no Japão, fez com que a Toho eventualmente licenciasse outros de seus kaijus aos americanos.
Mas é interessante ver como Banno conseguiu influenciar o desenvolvimento do MonsterVerse. Não só Banno foi instrumental para que ele acontecesse, servindo como pivô entre a Legendary e a Toho (tanto que o cineasta japonês é creditado como produtor executivo do filme de 2014), como também é dele a ideia de que os kaijus - agora “titãs", na terminologia do MonsterVerse - fossem “encarnações” da natureza da Terra, e seus defensores. Godzilla e Kong lutam contra seres humanos que tentam controlar e destruir a natureza, ou então kaijus - digo, titãs - como King Ghidorah, que são extraterrestres que geram anomalias climáticas. É verdadeiramente um encontro entre sensibilidades americanas e japonesas. Sem sombra de dúvida o filme de 2014 incorpora elementos como a bomba atômica na origem do Godzilla e dos MUTOs, mas muito do visual destes filmes evoca o desastre do 11 de setembro (assim como muitos filmes de super-herói do mesmo período, da Marvel e da DC).
O fato é que os cineastas americanos do MonsterVerse compreenderam que Godzilla é um personagem mítico, quase simbólico, como Batman, Superman e Mulher-Maravilha, sem uma identidade ou interpretação canônica fixa. Isso permitiu ampla paleta criativa aos cineastas que trabalharem - não é à toa que James Gunn tenha claramente referenciado os filmes do MonsterVerse em O Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, 2021) - que culmina numa batalha contra um monstro gigante.
E isso aprofundou a crise de identidade da Era Millenium. O fato é que os filmes do MonsterVerse trabalham seus efeitos especiais de uma maneira que não só segue dentro da tradição Ocidental; isto é, são realistas e verossímeis, como também os trabalham em uma chave estética e estilizada. Aparentemente, os americanos superaram os japoneses. Para Godzilla sobreviver no Japão, a Toho teria que inovar - e isso envolve riscos e experimentação.
IV. Era Reiwa
29. Shin Godzilla (Hideaki Anno, Shinji Higuchi [co-diretor], 2016)
30. Godzilla: Planet of the Monsters (Kobe Shizuno e Hiroyuki Seshita, 2017, anime)
31. Godzilla: City on the Edge of Battle (Kobe Shizuno e Hiroyuki Seshita, 2018, anime)
32. Godzilla: The Planet Eater (Kobe Shizuno e Hiroyuki Seshita, 2018, anime)
33. Godzilla Minus One (Takashi Yamazaki, 2023)
Shin Godzilla é nada menos que um milagre. Trata-se não só de uma refilmagem do Godzilla original, de 1954, como também uma atualização do personagem e uma reinvenção dele de acordo com a visão de Hideaki Anno, o visionário diretor responsável por um dos melhores animes já feitos: Neon Genesis Evangelion (1995-1996).
Com o sucesso dos filmes do MonsterVerse (inclusive no Japão), a Toho percebeu que era hora deles relançarem seu personagem mais famoso em um contexto unicamente japonês (algo que segue as tendências nacionalistas que estão presentes no personagem desde o seu início). A Toho não queria repetir os erros do passado, em especial aqueles cometidos durante a Era Millenium. A Era Reiwa é, até o momento, marcada por experimentações, e mesmo alguns riscos que a Toho vem tomando. Um deles é o de dar considerável liberdade criativa aos diretores que trabalham com o personagem. Mesmo aqueles que tem a fama de serem difíceis - ou, no caso de Shin Godzilla, de ter um criador bastante instável.
Hideaki Anno é um dos artistas mais respeitados do Japão, e um que lida com cada projeto que faz de forma extremamente pessoal. Ele mesmo precisou superar um período de depressão severa antes de conseguir começar a trabalhar em Shin Godzilla. Anno, como sabemos, é uma das figuras mais importantes do tokusatsu e da ficção-científica japonesa, e sempre teve interesse em fazer um filme de Godzilla. Em um curto ensaio que escreveu sobre Shin Godzilla, Anno comenta suas motivações em realizar o filme.
Decidi aceitar o trabalho porque cheguei à conclusão de que tinha o desejo de ver a ficção científica fantástica revivida, em vez de ser apenas uma continuação do passado, e todo o amor que coloquei no projeto do museu tokusatsu, e meu desejo de retribuir aos criadores pioneiros que deram forma aos seus sonhos. Decidi aceitar o trabalho porque sabia que se não aceitasse outra peça nova - algo que não fosse Eva [Evangelion] - não seria capaz de seguir em frente (…) No mundo da ficção científica fantástica, Godzilla não é apenas uma personificação de esperanças e sonhos, mas uma caricatura da realidade – quase uma espécie de reflexo satírico do mundo. Pintar o Japão atual sob essa luz é uma experiência maluca.
Já um dos primeiros sinais de mudança radical é o fato de que Shin Godzilla não é uma continuação do filme original de 1954. É uma nova versão, que combina elementos do primeiro filme (poderíamos chamar Shin Godzilla de remake ou reboot). Na verdade, é ;literalmente a interpretação de Hideaki Anno sobre Godzilla e o que ele significa para os dias de hoje, em especial o Japão.
Anno situa sua história no Japão atual, e o Godzilla que emerge para atacar o Japão é uma criatura que sofre inúmeras mutações, mudando de forma, aparência e tamanho, assumindo um estilo que remete ao Godzilla que conhecemos (e sendo possivelmente uma referência ao fato de que os kaiju da Era Heisei também sofriam constantes mutações). Enquanto Godzilla vai causando destruição em seu caminho, acompanhamos um grupo de cientistas, militares, burocratas e políticos que tentam desesperadamente conter o avanço do monstro. Mas Anno trata essas cenas como uma comédia kafkiana de humor negro. Shin Godzilla é uma crítica subversiva ao governo japonês, em particular por conta de sua resposta lenta e incompetente ao desastre nuclear de usina de Fukushima. Os burocratas, cientistas e políticos em Shin Godzilla são retratados como pessoas sedentas por poder e fama, e que usam a tragédia como escada para aparecerem, e subirem na hierarquia do poder. Cientistas consagrados e especialistas de toda sorte se revelam como cínicos que possuem mais habilidades políticas do que talento científico, e políticos são meramente pessoas pequenas e narcisistas que querem aparecer na TV e na Internet como salvadores da pátria. E, quando os Estados Unidos ameaçam bombardear o Japão com armas nucleares para impedir o avanço do monstro, os políticos japoneses simplesmente paralisam de medo diante da possibilidade de um novo ataque nuclear em seu país. Ao mesmo tempo, um pequeno grupo de pessoas - os excluídos, esquisitos, outsiders e livre-pensadores, aqueles que não se submete facilmente a regras, são convocados a resolverem o problema.
Esse humor sutil, subversivo e ácido é contraposto a cenas da destruição causada por Godzilla, que são retratadas como o puro horror apocalíptico, cenas estas que remetem ao original de Ishiro Honda, com suas cenas macabras de horror e destruição. Ele pode tirar sarro dos políticos, burocratas e do próprio governo japonês, mas ele nunca tira sarro das vítimas ou da destruição que o kaiju causa. As cenas das pessoas fugindo e correndo pelas ruas das cidades japonesas são filmadas com câmera na mão e uma intensidade verdadeiramente perturbadora. Os ataques do Godzilla neste filme são sequências de puro horror, e realmente incomodam. Parte disso se dá pelo fato de como ele trata o próprio monstro.
Godzilla geralmente oscila em dois espectros: ou ele é um monstro agressivo, que ataca cidades japonesas, o exército e mesmo outros monstros com o intuito de destruí-los, ou ele é um herói, o protetor da nação e mesmo do universo. Vilão ou herói (ou mesmo anti-herói, como vemos na Era Heisei), Godzilla possui uma personalidade. É antropomorfizado (assim como seu rival americano, King Kong). O Godzilla de Anno não tem nada disso. Ele é uma criatura inescrutável, cuja lógica e inteligência escapam completamente à nossa compreensão. O fato de que o próprio Godzilla muda de forma constantemente ao longo do filme deixam ele ainda mais misterioso e assustador, pois imprevisível. Isso é tipicamente Anno, um cineasta cuja imaginação é marcada por visões apocalípticas. Seu Godzilla não é necessariamente produto da radiação, ainda que ele contenha poderes radioativos e nucleares. Não, ele é um deus antigo, milenar, que despertou por conta da interferência humana. Nunca vemos qual é a sua forma original, nem mesmo a final, pois ele é “congelado” pelos humanos antes que possa destruir Tóquio completamente. Na verdade, o Godzilla de Anno é como a personficação do apocalipse: nuclear, ambiental, espiritual. Por isso, ele não pode ser nunca completamente eliminado, e a humanidade precisa aprender a conviver com o fato de que ele - o Fim - estará sempre ali.
Isso faz também com que Shin Godzilla seja um filme que não tenha tanto personagens, mas sim um grupo de personagens. É, assim, um filme “coletivo”, ou ensemble. Mas o interessante é que, ao fazer um Godzilla que não possui personalidade, ou que não é antropomorfizado, isso permitiu que Anno trabalhasse seus personagens humanos de uma maneira muito mais rica e interessante do que geralmente vemos em filmes do gênero.
O fato é que Hideaki Anno conseguiu fazer algo inesperado: as cenas de personagens humanos na franquia Godzilla tendem a ser enfadonhas, inconsequentes e pouco desenvolvidas. Não é sempre, claro, mas no geral os diretores e roteiristas não sabem muito o que fazer com seus personagens humanos. Anno transformou essa fraqueza na força do filme. Shin Godzilla é um filme cheio de sequências de diálogos, com personagens em escritórios, salas de reunião e laboratórios - o que é comum na franquia. Mas, ao transformar essas sequências em uma comédia de humor negro ácido, Anno nos surpreende ao mostrar que, sim, seres humanos são praticamente inúteis diante de uma catástrofe como a do Godzilla. Cabe àqueles tipos humanos não-conformistas, geralmente excluídos dos grandes centros de poder e do mainstream ara resolverem o problema, mostrando, ao mesmo tempo, que o centro de poder só pode ser tomado por pessoas narcisistas e vazias.
Shin Godzilla foi um sucesso extraordinário de crítica e bilheteria, sendo um dos melhores filmes de toda franquia e um que conseguiu atualizar o clássico personagem para uma nova era. O longa de Hideaki Anno bebe na fonte dos melhores filmes da longa história do personagem e do gênero kaiju, e seu conhecimento com animação fez com que ele enfim resolvesse os problemas apresentados pelos filmes da Era Millenium. Não se trata simplesmente de um excelente filme do Godzilla - é simplesmente um dos melhores filmes da última década. Hideaki Anno reflete sobre a incapacidade humana de se lidar com o inescrutável - com o apocalipse, com a morte… e com Deus. Ele tira sarro da arrogância humana, que se acredita protegida por burocracias tecnocráticas, e se recusa a aceitar o fato de que, diante daquilo que é eterno, direita, esquerda, política e seja lá o que for, é simplesmente inútil. No meio disso, só nos resta aprender a viver com o fato de que somos extremamente vulneráveis.
É até difícil imaginar como dar sequência a um filme como Shin Godzilla, e a Toho se viu diante desse problema, ainda mais com o MonsterVerse a pleno vapor. Experimentação era a ordem do dia. A Toho deu total liberdade aos diretores Kōbun Shizuno e Hiroyuki Seshita e ao estúdio Polygon para desenvolverem uma trilogia de longas de animação, a serem distribuídos pela Netflix. O resultado é Godzilla: Planet of the Monsters, que imagina uma humanidade que teve que se exilar no espaço após Godzilla conquistar o planeta Terra. Vinte mil anos no futuro, a humanidade volta à Terra, para tentar recolonizar o planeta e destruir Godzilla. São filmes lentos, meditativos, onde o visual deslumbrante e arrebatador da animação são mais importantes que a trama e os personagens, que pouco são desenvolvidos ou mesmo memoráveis. O fato é que a trilogia representa um primeiro passo na constante experimentação da Toho com o personagem e o gênero, e o saldo, no geral, é positivo, ainda que não seja o triunfo que foi Shin Godzilla - ou, então, Godzilla Minus One.
Unindo passado com futuro, folclore com ficção-científica, esperança e horror niilista, os filmes da franquia são uma franca projeção não só da nação japonesa, mas também do mundo que surgiu ao término da Segunda Guerra Mundial. É fácil nós torcermos o nariz para filmes onde um lagarto gigante dá uma voadora num gorila igualmente gigante (bem, na pior das hipóteses, é cômico) ou, então, buscarmos um sentido maior sobre os perigos da exploração espacial com um monstro chamado SpaceGodzilla, mas o fato é que estes filmes contém universos, de alegria, esperança, medo e horror, e os projetam, tais quais sonhos e pesadelos, no escuro do cinema.