Preciso confessar algo aqui: desde que sou criança sou absolutamente obcecado por Godzilla. Eu tinha oito anos quando o filme constrangedor de Roland Emmerich estreou nos cinemas, mas já tinha uma ideia do que Godzilla (a franquia) realmente se tratava. A locadora perto de casa (dessas de bairro mesmo) tinha, por algum motivo, uma série de fitas VHS dos filmes do kaiju japonês, em especial os da era Heisei (1984-1996). Foi através destas fitas que pude conhecer aquele que deve ser um dos maiores ícones da cultura pop mundial, e sem dúvida um dos símbolos mais famosos do Japão (apesar de que as fitas em si, como era padrão na época, serem dubladas em um inglês). Mas, ao menos, pude constatar a glória que era ver o Godzilla destruindo Tóquio e seus habitantes, além de trocar golpes com vilões como King Ghidorah, Mothra e Rodan.
Godzilla (1954).
Os filmes de Godzilla não eram muito fáceis de encontrar por aqui, principalmente os mais antigos, da era Showa. E, por isso, tem sido muito interessante ver o interesse renovado das pessoas pelos filmes japoneses de Godzilla, por conta da estréia e recepção extremamente bem-sucedida de Godzilla Minus One. É a primeira vez que pude ver um filme japonês, da Toho, nos cinemas. E não em qualquer cinema; o longa de Takashi Yamazaki teve uma estréia maciça aqui no Brasil. Na cidade em que moro, São Paulo, pude constatar que o longa estava presente em todos os multiplexes, além das salas de cinema de rua - geralmente para onde vão os filmes japoneses e outros que não são americanos.
Dito isso, também pode ser útil ao leitor ter essa introdução para Godzilla Minus One. Não que o filme tenha alguma continuidade específica - ele não tem, sendo uma refilmagem e reimaginação do primeiro filme e do personagem em si. No entanto, Godzilla Minus One se inspira em diversas versões passadas do Godzilla, puxando elementos de todas as suas eras, inclusive no quesito de como o personagem era percebido e compreendido por diferentes gerações.
Poster original de Godzilla (1954), que inaugura a Era Showa.
Poster de The Return of Godzilla (1984), que inaugura a Era Heisei.
Poster de Godzilla 2000 (1999), filme que inaugura a Era Millenium.
Poster de Shin Godzilla (2016), que inaugura a Era Reiwa.
Claro que, nos últimos anos, tivemos os filmes do MonsterVerse - a versão norte-americana do kaiju. Nele, acompanhamos Godzilla em filmes individuais, assim como o do seu rival King Kong - desta feita, reimaginado também como um kaiju, diferentemente de como é geralmente retratado. Godzilla vs Kong (idem, 2021, de Adam Wingard) teve um grande um lançamento, e foi um dos maiores sucessos daquele ano. Godzilla passa por uma boa fase, talvez a sua melhor, com duas versões, no Ocidente e no Oriente, gozando de boa recepção crítica e comercial. Mas, por mais que eu goste dos filmes da Legendary Pictures, só há um Godzilla de verdade: o da Toho.
No entanto, estamos falando de um personagem que possui mais de 30 filmes produzidos somente no Japão. Quando colocamos os filmes americanos neste balaio, vamos para 40 filmes. Além disso, os oponentes e aliados de Godzilla - kaijus como Mothra, Rodan, Baragon e outros também tiveram as suas próprias séries de filmes, produzidas pela Toho, todos eles com múltiplos crossovers e coisas do tipo. As diferentes fases dos filmes do Godzilla são separadas de diversas maneiras, e tentam responder a inúmeras questões culturais do Japão. Para um neófito, pode parecer muita coisa - e é mesmo.
Convencionou-se separar as eras do Japão de acordo com as dinastias imperiais. A era Showa, portanto, se refere à era do imperador Hirohito (como ele é conhecido no Ocidente, sendo Imperador Showa). Eras do cinema japonês também tendem a se organizar de acordo com as eras imperiais, mas isso não é consenso entre os historiadores. Seja como for, Godzilla passa por quatro eras: Showa, Heisei, Millenium e Reiwa.
O personagem foi criado por Tomoyuki Tanaka, que serviu como produtor da série de 1954 até 1995, quando veio a falecer, logo após o lançamento de Godzilla vs Destoroyah - filme que, ironicamente, retrata a morte definitiva do Godzilla original. Tanaka era um produtor prolífico, tendo comandado mais de 200 produções ao longo de sua vida, sempre com capacidade para inovar e, principalmente, abrir espaço para que outros criadores trabalhassem em sua criação. Com isso, temos uma série de colaboradores fundamentais ao cânone do Godzilla, como Ishiro Honda, Jun Fukuda, Takao Okawara, Hideaki Anno, Shusuke Kaneko e, mais recentemente, Takashi Yamazaki. Fundamental também mencionar efeitistas brilhantes como o lendário Eiji Tsuburaya, Koichi Kawakita, Makoto Kamiya e o próprio Takashi Yamazaki (junto a Kiyoko Shibuya).
É comum que os filmes de Godzilla fossem re-editados e lançados com outros títulos em mercados como o dos Estados Unidos. Alguns filmes possuem dois ou mais títulos mas, desde então, convencionou-se alguns títulos. Vou listá-los em inglês mesmo, seguindo a notação convencional. É importante também dizer que tais filmes nunca foram, nem são, “B”. A temática kaiju e tokukatsu são extremamente populares no Japão, e ainda que hajam produções de baixo-orçamento no gênero, ele não é por si só visto e comercializado como produções do tipo. São películas extremamente populares e queridas no Japão. A percepção de que estes filmes são “toscos” ou mal-feitos por nós Ocidentais se dá por uma série de fatores. Um deles é o fato de que tais filmes de monstros gigantes, e de ficção-científica, nos anos 50 e 60, eram, em sua grande maioria, produções B. Não eram os filmes de prestígio dos grandes estúdios. Além disso, os filmes do Godzilla, em especial os da Era Heisei, foram distribuídos nos Estados Unidos pela New World Pictures, de Roger Corman, o “rei dos filmes B”, o que contribuiu para essa percepção de que os filmes de Godzilla pertenciam a essa categoria. E é interessante ver que Roger Corman, que foi responsável por produzir inúmeras películas de horror exploitation, ficção-científica, fantasia, subgêneros que misturam todos esses gêneros, e mesmo Monster features com criaturas gigantes, além de super-heróis, certa vez disse, no final dos anos 80, que perdeu seu mercado para os grandes estúdios de Hollywood, uma vez que estes começaram a investir cada vez mais em filmes de ficção-científica, fantasia, super-heróis e, sim, monstros gigantes, mas se utilizando de orçamentos multimilionários e grandes estrelas. O fato é que, se fosse feitas nos anos 80, boa parte das produções de Hollywood - Marvel, Transformers, Velozes e Furiosos, DC Comics, e tantas outras - seriam percebidas como “B”. Hoje, no entanto, são filmes de “prestígio”. É assim que devemos olhar para muitos dos filmes de Godzilla e outros kaiju do Japão - com as devidas diferenças de contexto cultural e histórico, claro.
Trata-se de um volume tão grande de filmes e informações que seria impossível cobrir toda essa saga. Por isso, mesmo sendo uma breve introdução ao personagem e ao mundo kaiju, achei melhor dividir essa introdução em 5 partes, seguindo a divisão de eras imperiais. O intuito dos ensaios não é abordar cada filme individualmente, ou mesmo em detalhe, mas sim apresentar um pouco o que é o gênero kaiju, qual a sua importância na cultura japonesa e por que Godzilla ocupa um espaço especial e privilegiado nele. Compreender Godzilla, ao meu ver, é também compreender como o cinema e a cultura japonesa se desenvolveram desde o final da Segunda Guerra Mundial - e, por isso, acredito que possa ajudar a contextualizar o sucesso do filme mais recente do Rei dos Monstros: Godzilla Minus One.