O popstar de mil faces
Realismo, ou como fechar os olhos para a realidade - Uma reclamação | Parte V
V.
Napoleão, Blonde e, agora, Ferrari (idem, 2024, de Michael Mann) e, potencialmente, Zona de Interesse, vão instigar mais discussões do tipo. Mas são discussões que desviam o foco daquilo que realmente interessa, que é a visão desses diretores e contadores de história sobre os personagens reais e os fatos que envolveram suas vidas. O detalhe crucial que parece escapar aos críticos que almejam um tipo de realismo banal, escravo de fatos e documentos, é a conclusão de que, ao final, tudo é mistificação. O paradigma contemporâneo desse tipo de filme é, obviamente, a biografia de astros do rock e do pop.
Nos últimos 20 anos, tivemos uma profusão de filmes biográficos - biopics - que abordam as vidas e mortes de astros de música pop e rock: Ray (idem, 2004, de Taylor Hackford), sobre Ray Charles; Johnny & June (Walk the Line, 2005, de James Mangold), sobre Johnny Cash e June Carter; Straight Outta Compton: A história do N.W.A. (Straight Outta Compton, 2015, de F. Gary Gray), sobre o conjunto de rap que revolucionou a cultura do hip hop; Rocketman (idem, 2019, de Dexter Fletcher), sobre Elton John; Minha Vida com Liberace (Behind the Candelabra, 2013, de Steven Soderbergh), sobre o cantor pop e ícone gay Liberace; Bohemian Rhapsody (idem, 2018), sobre Freddie Mercury e o Queen; Elvis (idem, 2022, de Baz Luhrmann), sobre Elvis, obviamente; O garoto de Liverpool (Nowhere Boy, 2009, de Sam Taylor-Johnson), sobre a vida de John Lennon e a formação dos Beatles; The Runaways: Garotas do Rock (The Runaways, 2010, de Floria Sigismondi), sobre o conjunto Runaways e a relação entre Joan Jett e Cherie Curie; Get on Up: a História de James Brown (Get on Up, 2014, de Tate Taylor), que aborda, evidentemente, a vida de James Brown e uma penca de outros filmes. Poderia passar o dia citando e enumerando eles aqui, mas o fato é que eles tem grande apelo com o público e a crítica. Na verdade, diversos desses filmes venceram os Oscars, e seguem, superficialmente, uma fórmula óbvia.
Primeiro, temos o apelo gigantesco de tais figuras. Até mesmo espectadores casuais de cinema são atraídos por serem fãs de determinados músicos, e comercialmente faz muito sentido pelo licenciamento de músicas e a venda de trilha sonoras com gravadoras (que muitas vezes pertencem aos próprios estúdios). Mas boa parte desses músicos e artistas pop transcendem as fronteiras de seus países e são ícones reconhecidos no mundo inteiro. Metade do trabalho de marketing já está feito.
Segundo, temos as próprias produções. Geralmente são dramas de época, que acompanham a trajetória dos artistas, que vão do anonimato à descoberta do seu talento por algum produtor ou olheiro. Com o reconhecimento da fama e o dinheiro, invariavelmente se perdem. Para drogas, relacionamentos abusivos, contratos inescrupulosos, o que seja. De algum jeito, superam suas dificuldades em tempo de alguma grande performance final. Preferencialmente, morrem logo após isso, sendo encaminhados diretamente para a canonização nos anais da cultura pop. Com isso, não temos uma biografia, mas sim uma hagiografia, e a vida do biografado se torna um exemplo, algo que contém uma mensagem - seja ela positiva, seja ela uma advertência. Fato é, o espectador sai do filme revigorado por se ver espelhado nessas figuras.
Terceiro, são ótimos veículos para astros em ascensão. Sempre que sai uma biografia de artista pop, é certeza que veremos uma série de reportagens que atestam que o astro que estrela o papel principal passou por semanas de treinamento intensivo, adquirindo os cacoetes, gestos e estilos de fala daqueles que estão emulando. É possível que também surjam matérias que cubram o minucioso trabalho de maquiagem e figurino, que complementam a atuação. A rota para o Oscar é certa.
Quarto, quase todos esses filmes são produções de época, que permitem que os estúdios gastem grandes quantias com ornamentos como cenários, figurinos, centenas de figurantes caracterizados, e recriações de todos os tipos. Dito de outra forma, são prestige productions, um tipo de filme favorecido por grandes estúdios de Hollywood desde que Carl Laemmle, Sr desbravou o solo selvagem da recém-criada cidade de Los Angeles ainda na década de 1910. Podemos falar de Elton John, James Brown, Joan Jett, Elvis, Ice Cube, Dr. Dre, Liberace ou quem for, mas o filme é sempre o mesmo (há exceções, por óbvio).
Esse tipo de filme foi parodiado - e efetivamente demolido - na ótima comédia paródica A vida é dura: a história de Dewey Cox (Walk Hard: The Dewey Cox Story, 2007, de Jake Kasdan). É uma pena que ninguém tenha visto esse filme, que amargou nas bilheterias e hoje caiu no esquecimento, porque depois que o assistimos, é difícil levar a série qualquer um desses filmes. Mas 12 anos antes do filme de Jake Kasdan chegar aos cinemas, um crítico que já havia percebido a tendência.
Por que há uma pergunta bastante pertinente nesses biopics de popstars, e uma para a qual eu não tenho uma resposta clara: sobre o que eles são de fato? Uma coisa eu posso dizer: eles não são sobre música, arte ou o processo criativo. Ao fim e ao cabo, as sequências musicais - gravações em estúdios, shows, performances etc - servem muito mais como needle drops de músicas famosas e reconhecidas pelo grande público do que sobre o ato em si de se criar música. O show é mais sobre o espetáculo e a capacidade do elenco e cineastas de recriarem de forma cinematográfica uma grande performance do que destrinchar o significado de tais cenas. E, então, todos esses filmes, sejam eles sobre artistas de rap, soul, rock, pop ou country se tornam efetivamente a mesma coisa. Os artistas se tornam intercambiáveis, e a trajetória de suas vidas se tornam beats que parecem ter sido retirados de artigos da Wikipédia, um grande resumão de grandes fatos e eventos.
Quase todos esses filmes começam com o artista maduro, já estabelecido, prestes a fazer uma grande performance. Pouco antes de entrar no palco, ele reflete sobre sua trajetória: as dificuldades na infância, a descoberta de um talento incipiente, as primeiras performances. Há o primeiro grande teste, onde o jovem artista precisa se provar para um produtor cínico e escrupuloso. O lançamento do primeiro álbum, uma seguindo por uma sequência de montagem onde vemos fama, sexo, drogas e mais dinheiro. Aí as coisas começam a dar mal: casamentos mal-sucedidos, abuso de drogas e substâncias, alienando familiares, empresários e colegas na banda. O artista chega ao fundo do poço, mas encontra algo em si que o faz superar os percalços e chegar ao momento de seu grande comeback na forma de um show ou espetáculo - que é exatamente o começo do filme, que termina com um freeze frame do artista e texto super-impostos sobre a imagem nos explicando o que aconteceu depois da performance e com cada um dos personagens.
Legal, mas sobre o que é isso? Qual é o tema por trás dessa estrutura surrada e batida? O que essa enumeração de fatos - por mais tecnicamente bem-feitas que possam ser - tem a nos dizer? Porque eu tenho que desperdiçar duas horas - quiçá duas horas e meia - da minha vida com isso, quando eu gasto trinta minutos lendo um artigo na Wikipédia que me diz exatamente coisa?
No ensaio “Long Black Limousine: Rock Biopics” (publicado originalmente na revista do British Film Institute em 1995), Michael Atkinson destrincha o fenômeno das cinebiografias de astros do rock - não tanto por suas características estéticas, mas sim como fenômeno cultural. Sim, em 1995 tais filmes já eram um gênero surrado.
Talvez a questão não seja se todos nós queremos ser estrelas do rock'n'roll tanto quanto se todos podemos ser; as cinebiografias pop sempre adoraram a história imortal de um homem inocente que tropeça no sucesso e alcança a divindade em virtude do talento e da boa vontade incultos, e eventualmente se torna vítima da Fama, do Sistema ou simplesmente do Destino. Num nível muito real, isto é pura cultura americana, a arena dos armageddons baratos; onde quer que um ídolo pop bata e queime, é sempre um fenômeno americano, graças a um homem - Elvis, que gravou seu primeiro disco do Sun menos de um ano antes do arquétipo geracional James Dean bater em seu Porsche na Highway 41. Se Dean cortasse o molde, Elvis vendeu isso para o mundo. O Cristo da música pop, a maior história já contada, o rei dos reis, Elvis serviu de protótipo para todas as formas pop imagináveis, incluindo as cinebiografias.
“Long Black Limousine: Rock Biopics.”, de Michael Atkinson. In: Ghosts in the Machine: The Dark Heart of Pop Cinema. Pág. 92. Tradução minha.
Atkinson percebe que a história de Elvis, por suas próprias características arquetípicas, se encaixam perfeitamente no mito cultural do sonho americano. O artista pop pode ser qualquer um de nós, uma pessoa comum que por uma série de motivos consegue se destacar de seus pares, adquirindo fama, riqueza e o que for. O paradoxo disso, é claro, é que todo bom biopic termina com a morte prematura do protagonista, que pode ser vítima de uma série de coisas, inclusive dos próprios vícios e traumas. Mas a sua morte é geralmente enquadrada como um sacrifício feito aos deuses do destino - tanto é que, quando enfim tivemos uma cinebiografia blockbuster de Elvis Presley (Elvis, 2022, de Baz Luhrmann), ela é tematizada como sendo uma trama de pacto faústico.
Todas as cinebiografias pop modernas são hagiográficas por natureza, mas, assombradas pelo fantasma de Elvis, também são inevitavelmente tentadas pelas forças das trevas. O amargo destino equilibra o élan natural da música. E sem a flutuabilidade dos privilégios juvenis, os acidentes, as overdoses e as asfixias não teriam ressonância. Assim, as cinebiografias pop são muitas vezes progressos de peregrinos, na sua maioria repletos de esperança, e quanto mais mundanas parecem as vidas pré-estrelato, mais notáveis são as subidas e descidas. (…) O que é fascinante no uso do mito de Elvis nesses filmes é a tensão entre a persona idolatrada do palco, que em sua conquista da sublimidade musical é irrepreensível, e o caos violento, porém mundano, de suas vidas reais. Isso evoca uma sensação de tragédia clássica, bem como o inevitável aumento das fofocas desagradáveis das donas de casa; a dialética entre o semideus grandioso e a vítima vizinha de abuso conjugal é irresistível, especialmente para a América Central. Se a fama é criada pelo consumidor, então aqui ela é alimentada tanto pelo ódio quanto pelo amor.
“Long Black Limousine: Rock Biopics.”, de Michael Atkinson. In: Ghosts in the Machine: The Dark Heart of Pop Cinema. Pág. 95. Tradução minha.
Atkinson está correto em sua análise de que essas biografias de ícones são preocupadas com manufaturar mitos que se encaixem nos moldes culturais do sonho americano. Se isso é verdade, e acredito que seja, podemos extrapolar para o fato de que tais filmes não estão interessados em analisar ou compreender os seus biografados. Como Atkinson diz, quando vemos seus problemas pessoais (abuso de drogas, violência doméstica, dramas conjugais etc), esses filmes os tratam como fofocas. Não geram nenhum insight ou compreensão mais profunda das mentes e dos gênios dos artistas. Inclusive, biografias recentes que fazem justamente isso parecem ter alienado o público e crítica: Blonde, que já citei anteriormente, e Mank (idem, 2020, de David Fincher). Mank não é um filme sobre a produção de Cidadão Kane, ou mesmo sobre quem criou o filme. Não, não é uma questão de créditos, ainda que pareça ser, mas sim sobre como funciona a cabeça de um artista. Ora, isso é meio óbvio, não? Cinebiografias de artistas não deveriam justamente se ocupar desse tipo de coisa? A julgar pela recepção de Mank e Blonde, não. Ao que parece, o público deseja mesmo o mito - um mito confortável, quentinho, que os abrace carinhosamente. Quando vemos a inevitável auto-destruição dos astros pop, o mito se torna uma cautionary tale.
O realismo, aqui, entra menos como estética do que como ideologia. Se o mito é que o importa, a demanda por realismo nesse tipo de filme é justamente a demanda pelo reforço positivo da ideia do self-made man (ou woman) que ascende à Fama. Aqui, tenho em mente a definição de Mark Fisher para realismo, como uma forma abrangente e expansiva de reforço ideológico.
O realismo capitalista, como eu o entendo, não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera abrangente, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação - agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação.
Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, Mark Fisher. Tradução de Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato e Maikel da Silveira. Pág. 33.
Antes de continuarmos, um adendo. Fisher propõe o termo “Realismo Capitalista” como um contraponto ao “Realismo Socialista” (ou Soviético). Na verdade, não tanto como um contraponto, mas sim como uma adaptação do conceito originado na era stalinista para o contexto atual do capitalismo tardio. O realismo socialista foi uma doutrina cultural engendrada por tecnocratas e artistas do Partido ainda na década de 30. O objetivo era criar uma forma de representação da cultura socialista que avançasse os ideias da Revolução.
Na prática, o Realismo Socialista não era caracterizado por um Realismo estético. Frequentemente as obras produzidas de acordo com essa doutrina eram artificiais, idealizadas. O objetivo não era necessariamente retratar a realidade, mas sim reforçar a ideologia do Partido. Portanto, filmes produzidos de acordo com o Realismo Socialista deveriam ter tramas simples, seguindo fórmulas básicas. Os significados dessas tramas eram óbvios, com pouca ou nenhuma ambiguidade, seja em relação aos temas ou as tramas, seja em relação aos personagens e suas motivações. São obras otimistas que apelam explicitamente ao emocional do espectador. Elas não retratam a realidade soviética tal como ela era, mas sim a sua idealização. Recorrentemente as tramas de filmes e pinturas apresentava heróis proletários ou camponeses que passavam por um arco de libertação pela revolução, ou então que se sacrificavam tragicamente em nome desse ideal.
Se o realismo capitalista é tão fluido, e se as formas atuais de resistência são tão desesperançosas e impotentes, de onde poderia vir o desafio efetivo? Uma crítica moral ao capitalismo, enfatizando as maneiras pelas quais ele gera miséria e dor, apenas reforça o realismo capitalista. Pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade, ao passo que a esperança de um dia eliminar tais formas de sofrimento pode ser representada como mero utopismo ingênuo. O realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo “realismo” do “capitalismo” na verdade não tem nada de realista.
Realismo capitalista, págs. 33-34.
Portanto, como falei, o objetivo dessa arte era um reforço ideológico e psicológico - como Fisher diz, é uma atmosfera que permeia diversas relações sociais e culturais que extrapolam o terreno da arte. Fisher continua:
Não é preciso dizer que o conta como “realista”, o que parece possível em qualquer ponto do campo social, é definido por uma série de determinações políticas. Uma posição ideológica nunca é realmente bem-sucedida até ser naturalizada, e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como um fato. Não por acaso, o neoliberalismo tem procurado acabar com a própria categoria de valor em um sentido ético. Ao longo dos últimos trinta anos, o realismo capitalista implantou com sucesso uma “ontologia empresarial”, na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo saúde e educação, deve ser administrado como uma empresa.
Realismo capitalista, págs. 34.
O paradoxo do realismo capitalista, assim como o socialista, é o fato de que ele, na verdade, recobre o “Real” com uma mentira, uma distorção. O realismo surge como uma forma de naturalizar ideias e conceitos e formas sociais de organização e economia, anulando outras visões possíveis sobre o Real. Por isso ele tem que ser algo simplificado, sem ambiguidade e com forte apelo emocional - como são as biografias de ícones pop.
O que ocorre no estágio atual do realismo capitalista é justamente a demanda de que todos somos marcas, brands, empresas, portanto. Hoje as biografias de ícones pop atendem demandas que geralmente associamos a grandes corporações.
Assim, a história de Freddie Mercury é a história de um homem gay extremamente talentoso que quer viver sua vida de forma autêntica e expressiva, enfrentando preconceitos como a estigmatizações social da AIDS. Marilyn Monroe, em igual maneira, é uma ícone feminista, uma mulher talentosa que na verdade foi vitimada por homens em uma indústria machista, que lucra com o male gaze, que por sua vez instrumentaliza o corpo feminino e sua nudez (basta lembrar as críticas moralistas que Andrew Dominik recebeu por despir Ana de Armas - o tom das críticas era como se o diretor estivesse profanando uma estátua em uma igreja). Não há mais simplesmente o mito de Elvis e a unificação do sonho americano, que é algo que Michael Atkinson reparou nos biopics dos anos 80 e 90. Agora, o sonho americano foi fragmentado em um discurso de ESG, e deve atender diversas pautas. Permanece, no entanto, o caráter limitador do discurso realista, de naturalizar as ideias, ao mesmo tempo em que encobre a realidade ambígua, contraditória e paradoxal dos artistas que tais biopics afirmam retratar fielmente. O resultado é uma espécie de mercantilização dos biografados, onde eles se tornam commodities pensadas para o consumo seguro, consciente, que visa uma dieta balanceada.