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Realismo, ou como fechar os olhos para a realidade - Uma reclamação | Parte II
II.
Zona de Interesse ainda não foi lançado, então, obviamente não tenho como comentar o que Glazer faz ou deixa de fazer dentro dessa potencialidade. O que posso dizer, no entanto, é que ele certamente tocará nos calos de pessoas que exigem que filmes de ficção sejam escravos de realidades banais e factuais (banais porque factuais, entenda-se). É uma questão que sempre surge em filmes baseados em fatos reais, ou biografias. Aconteceu recentemente com Napoleão (Napoleon, 2023, de Ridley Scott) e Blonde (idem, 2022, de Andrew Dominik).
Por um lado, é inevitável que críticas assim ocorram, ainda mais quando falamos de figuras famosas e importantes, pois elas se tornam mitos, ocupam um lugar no imaginário coletivo e cultural. Cada um tem uma ideia do quem Napoleão era, mas todos concordam que foi um “homem importante que fez grandes coisas no campo militar e político”. Podemos correr atrás de livros (ou, mais facilmente, da Wikipédia) e ler resumidamente os fatos da vida do imperador francês. Podemos ler tomos e mais tomos de biografias detalhadas que, ancoradas em farta documentação, nos contem de sua infância, relacionamentos, escapadas sexuais, conquistas militares e todas essas coisas. Mas, quando vamos fazer ficção - contar a sua história - podemos fazê-la de inúmeras maneiras. É de se esperar que certas liberdades sejam tomadas, por exemplo, em nome da dramaticidade ou ritmo. Personagens podem ser cortados, combinados; fatos históricos, abreviados. A produção pode ser rica, luxuosa, gorda, um costume drama que custa milhares de dólares, com um diretor de arte e figurinistas absolutamente meticulosos. Para todos os efeitos, essa parece ter sido a abordagem de Stanley Kubrick, que planejou por anos uma adaptação cinematográfica da vida do verticalmente prejudicado imperador francês, mas morreu antes que seus planos pudessem sair do papel. Kubrick se debruçou obsessivamente (“Kubrick” e "obsessão” poderiam ser sinônimos) na vida de Napoleão e seus asseclas e contexto histórico. Mas isso, no final do dia, é técnica.
Vejam, não quero diminuir Kubrick neste território. É necessário talento e brilhantismo para dominar técnica e ornamento, mas o que faz de Kubrick um gênio é a forma absolutamente genial com que contava suas histórias, das quais o acabamento técnico e atenção minuciosa a detalhes eram apenas uma parte da história. No final do dia, o mais interessante de sua adaptação da vida de Napoleão seria entender como Stanley Kubrick entendia o imperador francês. É a sua visão não como diretor, mas como artista, como ficcionista, como contador de histórias, o tipo de pessoa que, por excelência, é capaz de conferir àquela figura histórica um sentido. Uma visão. E sem dúvida ele tomaria liberdades criativas para isso. O fato de que tal filme nunca tenha acontecido é nada menos que uma tragédia para nós, e só podemos imaginar e sonhar com ele.
No entanto, tais filmes são cobrados com demandas absurdas por “realismo” e “precisão com os fatos” pois tais figuras - Napoleão, Marilyn Monroe, até J. Robert Oppenheimer - se tornaram ícones pop. Como falei, pertencem ao imaginário coletivo, e viraram estátuas monolíticas erigidas a partir de sedimentos acumulados ao longo de décadas no chão da cultura. A quem Napoleão pertence? Aos franceses, que o geraram, ou aos ingleses, que o derrotaram? E Marilyn? Pertence aos homens de sua vida, aos tablóides ou às feministas da atualidade? E se ela, na verdade, não pertencer a ninguém? O paradoxo desse tipo de cobrança, claro, resta no fato de que não obstante parcelas do público e crítica cobrem os cineastas por realismo e autenticidade aos fatos, são os primeiros a defenderem suas próprias versões (imaginárias) destas mesmas personagens.
E digo personagens pois é isso o que são. Em algum momento histórico Napoleão e Marilyn Monroe existiram de verdade, em carne e osso. Mas não existem mais. Viraram lendas, personagens que são narrativizados ao gosto do autor (que, por sua vez, se adequa ao gosto do freguês). Não temos mais como conhecê-los. Mas, também, se pudéssemos estar em contato direto com eles, poderíamos ainda assim conhecê-los? É possível verdadeiramente conhecer uma pessoa, o que se passa em sua mente, em seus recônditos mais escuros? O corolário disso, evidentemente, é: seria possível conhecermos a nós mesmos?
Ao virarem personagens, tais figuras necessariamente entram no território da Narrativa (ou do Mito). São peças em uma engrenagem complexa que emprega elementos como Tema, Cenas, Arcos. No cinema, há a colaboração de diretores de fotografia, de arte, de som, de trilha sonora, de figurino, de maquiagem. Há todo um complexo organograma de interesses, funções, técnicas e estilos que são empregados para concretizar a Narrativa. As possibilidades são infinitas, mas ao que parece algumas pessoas exigem que tais personagens sejam restringidos ao terreno dos fatos, da autenticidade e do realismo.
Uma demanda particularmente ridícula e absurda é a de que personagens reais sejam interpretados por atores que pertençam à mesma nacionalidade que seus personagens. Assim, Napoleão só pode ser interpretado por um francês, Marilyn, por uma americana (apesar de que não vi muitas críticas ao fato de que Ana de Armas, uma cubana, a interpretou), ou que Ferrari seja um italiano (e não o americano Adam Driver). A demanda, tomada por si só, não pára em pé. Atores, afinal, interpretam. A demanda faz sentido quando ela faz parte de um conjunto de escolhas e intenções que um determinado artista tenha com sua obra.
John Ford talvez seja um dos mais celebrados e importante dos diretores dos Estados Unidos. Sua obra, que compreende quase 130 filmes, atravessa quatro décadas. Sua influência em incontáveis cineastas é imensurável, tantos nos EUA quanto fora dele. E Ford se debruçou principalmente sobre o gênero Western - o gênero mítico por excelência do país. Ford liderou um grupo de cineastas brilhantes que moldaram o Western ao longo dos anos: Raoul Walsh, Anthony Mann, Fred Zinneman, Howard Hawks, Don Siegel, Nicholas Ray. Mas digo que liderou por que Ford sempre esteve à frente das inovações e mutações que o gênero sofreu ao longo das décadas. Óbvio que por diversas esses outros cineastas fizeram filmes melhores que os de Ford, mas o que quero dizer é que ele (Ford) sempre capitaneou e conduziu o gênero em suas evoluções, a ponto de que o próprio Western se confunde com a biografia de Ford. Obviamente que muitos dos argumentos de Western envolvem conflitos entre caubóis e índios. Uma das inovações que Ford trouxe aos seus faroestes produzidos na década de 1920 (quando ainda eram mudos) foi a autenticidade com esse personagem. Ou seja, ele escalava indígenas para esses papéis. Comparado aos seus contemporâneos nesta década, os filmes de Ford possuíam uma realismo visceral.
No entanto, a partir da década de 30 em diante, Ford começou a empregar um estilo mais artificial. Foi ele quem primeiro associou a imagem dos cânions de Monument Valley ao Western, e logo começou a empregar atores brancos para fazer os papéis de nativos - ainda que com uso realista de maquiagem. E, então, chega o grande divisor do gênero: Rastros de ódio (The Searchers, 1956). É um dos filmes inaugurais do que é conhecido por Western Psicológico (Anthony Mann e Fritz Lang fariam obras-primas dentro desta chave), e sua história lida com temas complexos como racismo, ódio, vingança e a própria moralidade do projeto expansionista e colonial dos Estados Unidos. Dito de outra forma, Ford coloca em cheque a condição existencial do principal gênero cinematográfico e narrativo dos Estados Unidos.
A trama envolve um grupo de indígenas Comanche que sequestra uma jovem branca, de uma típica família de colonos, após massacrar a sua família. Cabe a Ethan Edwards (John Wayne), veterano da Guerra Civil (lutou do lado perdedor, o Confederado) a seguir os rastros dos indígenas em busca da garota. Nisso, ele é acompanhado pelo jovem Martin Pawley (Jeffrey Hunter), e a busca dura anos. Ethan, racista, detesta indígenas, e parte da busca por Debbie (Natalie Wood) é motivada por algo que não é dito: o medo do estupro de uma branca pelos “selvagens” de “pele vermelha”. Ao fim e ao cabo, quando finalmente localizam os Comanche e a garota, descobrem que ela foi plenamente assimilada pela tribo. De repente, as barreiras que separam os brancos dos indígenas é dissolvida. E, aqui, há uma sacada estilística brilhante por parte de Ford: todos os atores que interpretam os indígenas são brancos, mas cobertos por uma maquiagem exagerada, artificial.
Ford chama a atenção para o fato de que o gênero Western é, por si só, uma fabulação. Puro artifício mítico. E mais: ele mesmo ajudou a construir e consolidar esse artifício em décadas de trabalho em incontáveis filmes. Mas por trás de todo artificio em Technicolor de Rastros de ódio, há um centro de realidade brutal. Sim, é uma realidade psicológica, principalmente de Ethan, mas isso é só metade. Mergulhando nas profundezas do filme, percebemos que Ford na verdade está lidando com a própria condição existencial de seu personagem e do seu país.
Anos depois, Ford radicalizaria os elementos estilísticos de Rastros de ódio com aquele que é o seu “filme-testamento”: O homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962). O filme conta a história do senador Ransom Stoddard (Jimmy Stewart), que atende o funeral de um rancheiro pobre, Tom Doniphon (John Wayne). Intrigado pela presença de um senador de outro estado no funeral de um rancheiro humilde, um jornalista questiona a presença de Ramson ali. O senador começa a contar sua história, relembrando como chegou na região quando era jovem e logo se envolveu em um conflito com o violento Liberty Valance (Lee Marvin). O filme, assim, alterna entre passado e presente.
O passado envolve um triângulo amoroso entre Ramson, Doniphon e Hallie (Vera Miles), enquanto os três são acossados constantemente por Valance. O romance entre Ramson e Hallie se aprofunda, estimulando o ciúmes de Doniphon, e também vemos o talento político de Ramson aflorar. O conflito com Valance, no entanto, escala junto com esses desenvolvimentos, e Ransom eventualmente consegue atirar e matar o facínora Liberty Valance. O assassinato prejudica a perspectiva política de Ransom - afinal, agora, ele é um assassino. Mesmo diante do impasse amoroso, Doniphon assume a responsabilidade pela morte de Valance para si, limpando a barra de Ransom.
E, no presente, acompanhamos a carreira estelar de Ransom como político: torna-se governador, depois senador, por fim embaixador no Reino Unido. É cotado para vice-presidente nas próximas eleições. No entanto, a revelação de seu passado como assassino certamente colocam seu futuro em xeque. É quando o editor do jornal decide manter a história de Doniphon como o assassino. Perplexo, Ransom pergunta porque o editor fez essa escolha. “Quando a lenda se torna fato, publique a lenda”.
Se em Rastros de ódio temos um John Ford refletindo sobre o gênero que ajudou a moldar, em O homem que matou o facínora temos o diretor refletindo sobre o próprio ato de se fazer cinema como sendo um terreno da mistificação. Do ponto de vista estético, Ford filma as cenas no presente em locações reais, maquiagem realista e uma abordagem, no geral, mais autêntica. As cenas do passado, no entanto, são completamente artificiais. Mesmo as cenas externas são transpostas para estúdio, com um fundo de céu pintado e elementos claramente cenografados. Há um choque constante de duas linguagens: o realismo moderno, que vinha se tornando moda no cinema dos anos 60 (muito por causa da influência dos diretores italianos do pós-Guerra) com a linguagem clássica e artificial da era de ouro dos estúdios hollywoodianos. A conclusão de Ford é a mesma que a do editor no filme: a lenda é mais importante que o fato.
Nestes filmes, Ford reflete sobre a vida interior de seus caubóis, sobre a experiência expansionista dos Estados Unidos e sobre a natureza do cinema. Entre os inúmeros temas levantados, há uma constante tensão entre a realidade e o mito, verdade e mentira, e a capacidade da câmera de revelar verdades que se ocultam por trás das aparências. Ford se usa do artificialismo para chegar a uma verdade de um jeito que uma abordagem “realista” dificilmente conseguiria.
Realismo por si só é incapaz de lançar luz sobre a realidade da vida interior de personagens, sejam eles fictícios ou não. O que importa nos filmes de Ford, Kubrick e outros não é a submissão aos fatos, pois eles por si são carecem de sentido narrativo e temático. A compreensão que estes artistas possuem de seus assuntos, e as escolhas estéticas que fazem para dar corpo e alma a essas compreensões é o que realmente importa.
Andrew Dominik precisou empregar uma linguagem barroca, contrastada e por vezes chegando em um surrealismo lynchniano para contar a vida de Marilyn Monroe; John Ford fez uma profunda reflexão sobre o próprio ato de se fazer cinema nos Estados Unidos para compreender os seus personagens, o Western e o seu próprio papel como principal condutor do gênero.
Muito bom! Obrigada e parabéns, Luis Villaverde!🙌
É interessante ver um filme com sua visão profunda sobre a história, roteiro, atores, diretores etc.
Sobre a cobrança do tal "pertencimento", entendo e respeito quem pensa assim, mas tem sido levada ao extremo e isso, acho que reduz muito o mais importante na arte, a liberdade!
Além disso, como você diz, são atores, estão interpretando um personagem e não vejo como "insulto à causa", por ser arte. Acho que na arte não se pode impor tantas cobranças por um realismo exato, porque mesmo em documentários, sempre haverá um pouco de ficção! E isso é fundamental!!