A Sombra Vinda Do Tempo
O Mal-Estar na Cultura PARTE V | Reflexões sobre a nossa cultura contemporânea
XII.
Heat 2 esboça o conflito metafísico e apocalíptico entre o Bem e o Mal na lógica da caçada, da “grande caça em meio ao caos” de que fala Labatut. O assassino Otis Wardell é uma combinação entre Francis Dollarhyde e o Hannibal Lecter, de Caçador de Assassinos. O romance Mann e Gardiner é o mais metafísico e existencial das obras de Mann, e o próprio romance - a Arte - pode ser uma forma de se fazer sentido do mundo. Isso é certamente o que ocorre em Halloween Ends, o último filme da trilogia Halloween, dirigida por David Gordon Green e roteirizada por Green e Danny McBride.
Buscando inspiração nos outros filmes da franquia, em especial Halloween III: A Noite das Bruxas (Halloween III: Season of the Witch, 1982, de Tommy Lee Wallace) e Halloween 4: O Retorno de Michael Myers (Halloween 4: The Return of Michael Myers, 1988, de Dwight H. Little), Green conclui de forma magistral o projeto que começou com o estupendo Halloween (idem, 2018): uma exploração sobre a natureza do Mal. Michael Myers é, como diz Sam Loomis (Donald Pleasance, no filme original de 1978, de John Carpenter), a encarnação do Mal. Mais do que um corpo, ele é uma presença, uma emanação (como Little nos mostra na brilhante sequencia inicial de Halloween 4). Mas o que isso significa? Ao longo de seus três filmes, Green levanta hipóteses, por vezes contraditórias, por vezes complementares. No filme de 2018, um adolescente expressa confusão sobre porque os adultos de Haddonfield tanto temem Michael Myers, um “maluco que esfaqueou umas pessoas há 40 anos atrás”. Afinal, hoje vivemos em um mundo onde terroristas sequestram aviões os chocam contra arranha-céus e adolescentes entram armados em escolas e atiram contra seus colegas e professores. Um doido com uma faca e uma máscara é fichinha, não? Mas o que Green explora é que o Mal de Myers é uma loucura que infecta as pessoas. Não qualquer pessoa, mas sim aqueles tipos mais sensíveis ao Mal (assim como pessoas sensíveis em Lovecraft sonham com Cthulhu).
No filme Session 9 (sem tradução no Brasil, 2001), o diretor Brad Anderson sugere que o Mal e a loucura afetam “os fracos e os machucados” (“the week and the wounded”). Green parece estar em diálogo direto com Anderson, e o Mal de Myers se alastrou por Haddonfield em Halloween Kills (idem, 2021) e ficou dormente em Ends. E, quando ele volta, é justamente “infectando” certas parcelas da população. A cidade mais uma vez começa a se destruir por dentro, e Green, com maestria, mostra que Myers - o Mal - está presente nos nossos pequenos gestos e ações, na “crueldade nossa de cada dia”. Xingamentos, abuso sexual e emocional, humilhações, esfaqueamentos, atiradores em escolas e atentados terroristas: tudo segue uma lógica de escalada apocalíptica. É neste ponto que Green referencia o brilhante Halloween III: o Mal é um ritual macabro, sazonal, que se reinventa constantemente. E, mais importante: um ritual antigo, cujas origens são mais antigas do que a própria Antigüidade Clássica. Suas instruções estão cravadas em pedras e escritas em língua morta. Um ritual que permanece, mesmo em nossa modernidade tardia e tecnológica. E o Mal contido nesse ritual, caso não seja constantemente vigiado, certamente se espalhará e entrará em nossos lares. E, uma vez feito isso, o risco é apocalíptico.
E a solução? Mais do que a destruição completa, total e física de Michael Myers, a Arte é o caminho para fora desse pesadelo. Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) escreve a sua biografia, as memórias de sua vida lutando contra o Mal, como exorcismo e como manual. É inclusive divertido imaginar Laurie Strode como uma Annie Ernaux do universo slasher.
Green é esperto o suficiente para nos mostrar que Myers pode ter sido derrotado, mas o Mal continua lá, aguardando sua vez de reaparecer: Laurie guarda a máscara de Myers em sua casa. Seria um troféu? Ou seria um lembrete (para ela - e para nós) que o Mal sempre vai existir, e que vai assumir outras máscaras. Difícil imaginar um final mais apropriado para a saga que John Carpenter iniciou em 1978, e é possível que Green tenha entendido melhor do que ninguém o que estava em jogo não só no filme original, mas também nos slashers e no horror como um todo.
Máscaras desempenham um papel importantíssimo na simbologia de Green, e a máscara de Laurie (uma espécie de Antígona, ao passo que Haddonfield é menos uma cidade que uma pólis grega) é o seu livro, a sua criação (e Michael, seu duplo, é a destruição). Esse entendimento das máscaras, e mesmo a relação entre slashers e o teatro grego da Antigüidade Clássica já havia sido abordado em Pânico 2 (Scream 2, 1997), de Wes Craven, onde o confronto final, entre a final girl Sydney Prescott (Neve Campbell) com o(s) assassino(s) se dá, justamente, em um palco de teatro, onde uma montagem de A Orestéia, de Ésquilo, está sendo ensaiada. De acordo com Albin Lesky, o uso de máscaras é uma das características mais importantes e definitivas da tragédia grega, e seu uso remonta inclusive a rituais pagãos pré-civilizacionais:
(…) [A] máscara. Seu emprego nas culturas primitivas é múltiplo; a mais freqüente é a máscara protetora, que deve subtrair o homem aos poderes hostis, e a máscara mágica, que transfere ao portador a força e as propriedades dos demônios por ela representados. A primeira das duas formas de emprego não tem importância para nós, mas a segunda, em compensação, é de grande significado, pois nela se encontra o elemento de transformação em que se baseia a essência da representação dramática.
(A tragédia grega, Albin Lesky. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. Pág. 59)
A máscara de um assassino slasher de fato tem poderes demoníacos, sobrenaturais: a máscara de hockey Jason Vorhees; a máscara de couro humano confeccionada por Leatherface; a máscara barata de Ghostface; e, claro, a máscara branca, anônima e amorfa, de Michael Myers. E o poder dessa máscara é estabelecido desde já por Green na sequência de abertura de Halloween (2018), quando o jornalista confronta um Myers acorrentado com a máscara.
A cena de fato é muito interessante: tão logo a máscara é revelada, a emanação deu Mal demoníaco perturba os outros criminosos insanos. Além disso, o pátio do hospital psiquiátrico é semelhante ao de um tabuleiro de xadrez e, nesse jogo de máscaras e arquétipos clássicos, cada um tem papel a desempenhar. O que a trilogia de Green e McBride nos mostra é que Laurie se transforma de uma sobrevivente traumatizada (a final girl) para a da guardiã e protetora da pólis, uma função semelhante à de Rachel Cooper (Lilian Gish) em O mensageiro do diabo (The Night of The Hunter, 1955, de Charles Laughton), ao passo que Michael é semelhante a Harry Powell (Robert Mitchum), no mesmo filme. Mas seria Halloween Ends, e o gênero slasher por extensão (do qual o pontapé inicial foi dado pelo filme de Carpenter de 1978), um gênero trágico? Difícil de dizer, uma vez que a própria definição de tragédia é contestada. O que podemos afirmar sem sombra de dúvida, no entanto, é que ela sempre indica um drama onde os limites do normal é ultrapassado (Lasky, pág. 27). Em dúvida vemos isso nestes filmes: não se trata só do crime, o assassinato, como rompimento da ordem, mas ele se dá em uma escala ritualística e extrema, feita por personagens arquetípicos que assumem papéis em um jogo cósmico de vida e morte.
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Isso pode parecer estranho, ainda mais quando aplicamos essas noções a um gênero “baixo” como o horror, mas a verdade é aqui estamos re-encenando um ritual antigo: o do rito de passagem. As personagens femininas que sobrevivem estão na passagem da infância para a vida adulta, descobrindo o sexo mas, também, a morte. Lasky nos diz que, desde a ascensão do Iluminismo e da modernidade a tragédia dramática passou a significar um tipo de narrativa onde uma série de infortúnios catastróficos e apocalípticos recaem sobre os protagonistas, mas não é nada disso que ela significa. A tragédia gera uma profunda compreensão do nosso próprio mundo, e busca nos educar (no sentido grego) a como nos relacionar com ele (Lasky, pág. 33). E é exatamente isso o que vemos se repetir incontáveis vezes em todos os slashers. O que torna Halloween Ends especial é que Green, ao meu ver, encerra a sua trilogia com uma compreensão ainda mais profunda e acurada sobre o gênero em si, semelhante ao que o próprio Wes Craven, mestre absoluto do gênero, fez em seus filmes da saga Pânico, ainda que Green não entre em assuntos metalinguísticos como o antigo mestre.
Há dois personagens trágicos na trilogia: Laurie e sua neta, Allyson (Andi Matichak). Laurie sobreviveu ao primeiro filme, e desde então, como vemos no filme de 2018, ela se preparou a vida inteira para um novo confronto com Michael, pois sabia que era só questão de tempo até que o seu Mal fosse despertado novamente. Allyson, no entanto, é inocente (e virgem) como Laurie era no longa de ’78. O que vemos ao longo dos dois filmes não é simplesmente a sua sobrevivência como a “Garota Final”, ainda que ela seja isso, mas sim a sua jornada de aprendizado, onde ela literalmente amadurece, passando a compreender o mundo e seu lugar nele.
É por isso que o conflito em Halloween Ends é dividido em duas protagonistas e dois antagonistas: Laurie X Michael e Allyson X Corey Cunningham. Quem é Corey, você deve estar se perguntando? Trata-se de um novo personagem apresentado em Ends e que certamente merece seu lugar no cânone do horror. Na noite de Dia das Bruxas de 2019 (ou seja, durante os eventos catastróficos e apocalípticos de Halloween Kills), Corey está trabalhando de babá do garoto Jeremy (Jaxon Goldberg). Uma brincadeira dá errado e, sem querer, Corey mata Jeremy em um acidente. Isso não só o traumatiza como ele passa a ser renegado pelo resto da sociedade, destruindo seu futuro profissional e acadêmico. À sua própria maneira, Corey também foi tocado pelo Mal de Myers, ainda que de forma indireta: e isso é chave. O Mal é uma força invisível e onipresente nesses filmes, e Michael consegue causar dano mesmo quando não está diretamente presente. Allyson, por sua vez, vive o luto de ter perdido a sua mãe, Karen (Judy Greer), ao final doo segundo filme da trilogia. Isso faz com que Allyson também se torne distante de sua avó e do resto de Haddonfield. A única pessoa com quem Allyson consegue se conectar é, justamente, Corey.
Esse tipo de espelhamento já havia sido feito por Green no filme de 2018, com Laurie desempenhando o papel de predadora, exatamente como Michael havia feito no filme de 1978.
[Imagens: Halloween (1978)]
[Imagens: Halloween (2018)]
E, aqui, preciso fazer uma rápida digressão para apreciar um dos meus enquadramentos favoritos do cinema. Laurie chega até sua casa e sobre para o seu quarto. Algo chama a sua atenção e ela vai até a janela. Cortamos para a sua subjetiva: um plano do jardim. Um varal de roupas com toalhas brancas esvoaçando. No meio delas, Michael Myers, olhando diretamente para câmera. O que perturbador nesse plano é que Myers está completamente imóvel, enquanto que a paisagem ao seu redor está em movimento. Mas não qualquer movimento: é o vento que vem da natureza. A parte mais visível de Myers é justamente o seu rosto ou, devemos dizer, a sua máscara, que é branca, assim como os lençóis e toalhas que estão ao vento. Além disso, ele não parece querer fazer o mínimo esforço de se esconder - e, mesmo assim, ele está entre os lençóis, como se estivesse querendo se esconder. Sua posição é estranha, não natural. Ele é tanto parte daquela paisagem (a brancura da máscara e das peças no varal) quanto não é (não está submetido às leis da natureza). Myers é a personificação do Mal e dos paradoxos do horror. Ele pertence e não pertence, ao mesmo tempo. Quando a câmera corta de volta para Laurie, só nos resta sentir pena dela. A noite vai ser longa.
[Imagens: Halloween (1978)]
Esses paralelismos não são meros gracejos de Green. Tendo a sua trilogia enfim finalizada, posso dizer que passei a apreciar muito mais Halloween 2018 e Halloween Kills, em especial este segundo. Cada capítulo tem sua própria identidade e sentido, e o do longa de 2018, basicamente um espelho do original de 1978, parece nos dizer que simplesmente inverter os papéis não é o que vai eliminar Myers de vez.
E Laurie não triunfa sobre Michael justamente porque não basta a ela ser uma assassina eficiente como ele: ela precisa se tornar outra coisa. A guardiã de Haddonfield e a mestra de Allyson. E é por isso que Halloween Ends é como se fosse um alinhamento dos participantes do ritual. A abertura de Ends é uma variação da própria abertura do filme original de 1978 - e isso é interessante de notar, uma vez que o filme de 2018 reproduz o original de Carpenter beat por beat de roteiro - com exceção do seu prólogo pré-sequencia de abertura. Esse espelhamento só ocorre em Halloween Ends, e Green alinha Corey ao jovem Michael Myers perfeitamente.
Green e McBride tem uma boa sacada com Corey: ele é o garoto ideal. Bonito, inocente, inteligente. Seu sobrenome, Cunningham, é uma referência explícita ao all-american boy Richie Cunningham (Ron Howard), do clássico sitcom Happy Days (1974-1984). Mas Corey é, no fundo, fraco, e não resiste à crueldade do Destino, e logo ele sucumbe à influência de Michael Myers que, como a Coisa, de Stephen King, vive nos esgotos de Haddonfield. Corey se transforma no aprendiz de Michael, e inclusive passa a usar a sua máscara. Isso faz com que Allyson, por sua vez, tenha que se tornar aprendiz de Laurie, e o conflito final está dado. O horror de Allyson, no entanto, é não só o de ter perdido a sua mãe e amigos para o Mal de Michael, mas também o fato de que ela fez sexo com Corey, e o via como sua alma gêmea, dois rebeldes que estavam prontos para enfrentar o mundo (e por vezes Halloween Ends parece referenciar casais de criminosos em filmes como Terra de Ninguém [Badlands, 1973, de Terrence Malick] e Assassinos por natureza [Natural Born Killers, 1994, de Oliver Stone]).
O final de Halloween Ends, assim como o final de Pânico 2, é idêntico ao final de As Eumênides, a última peça da Trilogia de Orestes (a Orestéia):
O caráter abaladoramente trágico de seu conteúdo não padece de dúvida, mas só se manifesta nos destinos de Agamenon e Clitemnestra como conflito trágico fechado, o qual não admite outra solução senão o aniquilamento, enquanto que Orestes é impelido a uma situação trágica, que o leva à noite da loucura e que, no entanto, admite a grande reconciliação final, a solução radiante da presença do Deus supremo. A última parte da trilogia e esta, vista a partir do final como um todo, encontram-se em nítido contraste com uma visão absolutamente trágica do mundo, que entrega o ser humano a uma destruição inerente à natureza do ser. O conflito em que está envolvido Orestes é inimaginavelmente horrível, mas como o conflito não é cerradamente trágico, pois admite a reconciliação das potências combatentes e, nessa reconciliação, a libertação da dor e do sofrimento. Assim, a participação que seu destino tem no trágico se nos apresenta como situação trágica através de cujas tormentas o caminho conduz à paz.
(A tragédia grega, pág. 39)
A recepção de Halloween Ends foi morna, quando não totalmente negativa. Muitas críticas foram direcionadas ao personagem de Corey, que “rouba” o espaço de Michael Myers e que, por sua vez, faz com que Allyson tenha mais espaço que Laurie. Mas isso já estava posto desde o primeiro capítulo da nova trilogia, de 2018 - e, nele, Green já nos deu o máximo de Laurie o possível. E esse é o ponto: a recepção foi negativa por que querem mais do mesmo e, quando o recebem, reclamam de falta de inventividade e ousadia. Pois eu acho que Green foi brilhante ao mostrar que Myers é a máscara e, com Corey, o que essa possessão demoníaca pode fazer. Myers e Laurie não são diminuídos, eles são encerrados, como o próprio título do filme sugere.
Halloween (1978), Halloween (2018), Halloween Kills (2021) e Halloween Ends (2022) compõe uma das grandes sagas do horror, uma que é temática e esteticamente amarrada como raramente vemos no horror. Há diversos detalhes que costuram o filme, desde a impressionante trilha sonora composta por John e Cody Carpenter (a minha favorita é, justamente, a de Ends, ainda que a de Kills tenha ótimos momentos) até o uso impecável das sequências de créditos de abertura:
> No original de 1978, a abóbora de Halloween já começa acesa, e a câmera vai se aproximando até que ela toma quase que totalmente a imagem, até se apagar, cortando para a noite em que Myers, criança, comete o seu primeiro assassinato;
> No longa de 2018, cortamos da máscara de Myers para uma abóbora murcha, que vai se inflando e crescendo até tomar a tela por completo, emulando o original e basicamente nos dizendo: “Michael voltou”;
> Em Halloween Kills, passamos várias abóboras, que vão se acendendo e pegando fogo, uma a uma. Kills é filme de fato único no gênero slasher, pois ele não possui protagonista de fato: os protagonistas são cidadãos de Haddonfield que vão à caça de Michael. Mais próximo de um filme de ação, o filme é repleto de mortes e sequências de multidão, onde o Mal e a loucura de Michael se espalham por todos os habitantes;
> Halloween Ends, por sua vez, mostra como Mal de Michael se espalha: por dentro. Uma sequência de abóboras, que se acendem só para serem destruídas por dentro, gerando uma nova abóbora, assim em sucessão infinita. A última abóbora da sequência se revela de carne e tripas - exatamente o que acontece com Michael ao final do filme.
Após Halloween Ends (e mesmo Pânico 2) eu fiquei convencido de que seria impossível alguém fazer algo de novo e diferente com o gênero slasher, mas eis que, mais uma vez, sou positivamente surpreendido por dois filmes de Ti West, X e Pearl, ambos lançados neste mesmo ano, e ambos parte da mesma saga (que deve concluir em 2023, com MaxXxine).
X se passa no Texas, nos anos 70, e acompanha uma equipe de jovens cineastas que alugam uma casa de fazenda para fazerem o seu primeiro filme pornô. A grande estrela é a jovem Maxine (Mia Goth). Os donos da propriedade, no entanto, logo se tornam hostis e começam a chacinar a equipe, um por um. Num primeiro momento, pode parecer mais um slasher formulaico, um belo exercício de gênero que emula perfeitamente O massacre da serra elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1974, de Tobe Hooper) - o que, por si só, não seria pouca coisa, uma vez que se trata do maior filme de horror da história do cinema. Mas Ti West vai além, explorando o horror como um gênero performático. O sexo explícito e violência gráfica, assim como cinema pornô e o gênero slasher estão intimamente ligados. Essa relação não é nova: Brian De Palma faz essa relação explicitamente em Um Tiro no Escuro (Blow Out, 1981), assim como o próprio Craven fez no início de sua carreira. Mas talvez De Palma seja chave aqui, pois ele, como poucos, construiu sobre o cinema de Alfred Hitchcock, em especial Psicose (Psycho, 1960), o slasher prototípico, para nos mostrar como o cinema é um exercício pervertido. No escuro do cinema (ou de suas casas), o espectador passa a espiar pela fechadura da porta (a tela) para ver performances de sexo e violência. Nos tornamos cúmplices desse tipo de coisa. Se sexo e horror representam vida e morte, o corpo de Maxine representa beleza e o de sua antagonista, Pearl (também interpretada por Mia Goth, sob toneladas de maquiagens e próteses de látex), feiúra, é justo dizer que as reações que West provoca em nós é a da atração e repulsa. Mas é justamente nesse espetáculo voyeurístico de sexo e morte que X (e Pearl, sua prequel), assim como Halloween Ends e Pânico 2, recupera a sua conexão com a tragédia.
O uso de máscaras é essencial à constituição do gênero trágico, mas também há outro: os ditirambos. O canto de coral, assim como a máscara, é um recurso estético e dramático que remonta também a rituais primitivos, pré-civilizacionais: o “canto dos bodes”.
Assim, para o grego, todo o seu mundo está cheio de forças da natureza vistas de um modo pessoal, forças delicadas e amáveis, forças perigosas, rudes e alegres. E as mais travessas dessas forças, transbordantes de seiva vital, são os sátiros, ou silenos, como também eram chamados (…) Toda a vida turbulenta e impulsiva da natureza se personificou neles e, tal como essa mesma vida, estão rodeados, com todas as suas loucuras, de impenetráveis mistérios, e cada um deles conhece o futuro.
(A tragédia grega, págs. 68-69)
Os personagens de X, como quase todos personagens de slashers, estão afastados das cidades e da civilização moderna, imersos na natureza. Juventude, sexo, alegria e tristeza perpassam esses jovens, que estão justamente na fase da passagem, isso é, a da adolescência. A sacada brilhante de West é de se utilizar do cinema para revelar a dimensão do ritual: num filme, todos estão desempenhando papéis. Mas não é só mera encenação: a arte e o talento de genial de Maxine é justamente no sexo, e esse talento específico revela uma verdade. Desculpe: uma Verdade. A equipe não fica simplesmente erotizada ao ver a sua performance. Eles vêem a Beleza, de fato. Tanto que Lorraine Day (Jenna Ortega), a operadora de som, que é sexualmente reprimida e puritana, logo é transformada pela performance de Maxine e ela mesma se torna atriz no filme. O problema é que a performance de Maxine também é vista por Pearl, a sua contraparte demoníaca. O que West nos mostra é que o ritual pornográfico desperta forças na Natureza - uma dessas forças é, justamente, o Mal, personificado na insanidade dos idosos e, principalmente, Pearl. Dito de outra forma, mais uma vez o paradoxo do horror: o mesmo ritual conjura forças ao mesmo tempo da Beleza e da Feiúra, da Vida e da Morte.
Alguns cultos implicam igualmente atos orgiásticos, pois as proibições e costumes sancionados pela tradição perderão sua razão de ser, dando lugar à liberdade absoluta. Ora, todos esses atos e crenças são explicados através do mito da destruição do mundo, seguido de uma nova Criação e da instauração da Idade de Ouro (…)
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Trad. Pola Civelli. Pág. 9)
E esses contrastes e complementos são reforçados pelas cruzamento entre as personagens de Maxine e Pearl: o “X” do título do filme ganha uma outra conotação. Pornografia, horror, censura, tabu, conflito, complementaridade. Isso é reforçado diversas vezes por West no próprio cruzamento de imagens na montagem e também nas diferentes formas com que Maxine e Pearl interagem.
X e Pearl, assim como Halloween (1978), Halloween (2018) e Halloween Ends (2022), nos mostram um mundo que funciona em um tempo que não é linear, mas cíclico. Não é exatamente uma repetição, ou mesmo uma rima. Estes filmes operam em um universo que não é o nosso, regido pelas leis do progresso e da ciência; eles são regidos por um tempo mítico, uma percepção mais antiga. Pearl, a prequel de X, conta a história de Criação do “universo ficcional” de Ti West; em X, portanto, vemos Maxine descobrir esse tempo mítico, cíclico. O mesmo vale para a trilogia de David Gordon Green, onde ele assume que o original de 1978 é o início daquele universo mítico. Laurie Strode e Allyson encerram, em Halloween Ends, o ciclo que começou em 1978, mas o próprio Green sugere que o ciclo vai recomeçar - ainda que não seja com Michael Myers.
O fim, portanto, está implícito no começo e vice-versa. Isso nada tem de surpreendente, pois a imagem exemplar desse começo, que é precedido seguido de um fim, é o Ano, o Tempo cósmico circular, tal qual se apresenta no ritmo das estações e na regularidade dos fenômenos celestes.
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Pág. 50)
O tempo do mito é o tempo cíclico. O fim de um ciclo já contém os elementos que formarão um novo começo, e vice-versa. O tempo cíclico é o tempo das estações, alinhado com a natureza, com a Criação e com o Cosmos.
Os paralelos que existem entre Fogo contra fogo e Heat 2, assim como os próprios paralelos internos de Heat 2 fazem não com que a história seja necessariamente sobrenatural, por exemplo, mas sim Noir, onde o Destino cego, implacável e muitas vezes cruel, determine a vida dos personagens. E o romance ainda nos mostra que, nesse labirinto confuso de um mundo em transição, há um Minotauro à solta: Otis Wardell, que está sempre na caça, sempre na busca por novas vítimas.
Muitos críticos do romance de Mann e Gardiner torceram o nariz para as “coincidências” extraordinárias contidas em sua trama. Isso, no entanto, não é um defeito - é Mann reafirmando o seu conteúdo Noir. Tempo, inclusive, é fundamental no romance: 1988, 1995 (quando se passa o filme original), 1996, 2000. Ciclos que se repetem em um contexto de “crepúsculo do mundo”, um mundo que está chegando ao seu fim para que outro surja.
O horror sobrenatural em Halloween não é explicado por uma causa qualquer e nem precisa. O “sobrenatural” faz parte daquele mundo tanto quanto o “natural” - os personagens que não o haviam percebido ainda. Ou, melhor, alguns perceberam: Sam Loomis (Donald Pleasance), no filme original, percebeu que Myers não é simplesmente um psicopata mas sim a “encarnação do Mal”; nos filmes de Green, é Laurie quem se torna aquela que “enxerga” o Mal sobrenatural de Myers - ela se torna Loomis (e precisa aprender a se tornar uma mãe e avó). Nesse sentido, e seguindo o exemplo dado pela tragédia, no sentido clássico, é que essas tramas são míticas. Halloween, ao fazer alusão a um ritual pagão, situa suas narrativas dentro de um tempo mítico; X e Pearl contém uma sugestão de sobrenatural, ainda mais sutil que Halloween, mas ele pode muito bem estar lá - a figura do evangelista, pai de Maxine, já aponta para isso. Mas nem precisaria: o alinhamento entre as duas personagens ao longo dos dois filmes já sugere uma intervenção cósmica, do destino.
A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata o modo como algo foi produzido e começou a ser. O mito afala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural.
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Pág. 11)
E, mais adiante,
(…) a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Pág. 13)
E o que vemos nestes filmes é justamente uma trama de aprendizagem, de amadurecimento - não muito diferente do que vemos no próprio Aramgeddon Time, de James Gray, por sinal. Sim, são filmes completamente diferentes, mas que estão falando coisas muito parecidas de formas diferentes, assim como o próprio Heat 2, de Michael Mann e Meg Gardiner. Não são tramas didáticas, onde o cineasta se assume como um professor, onde o público é sua platéia de alunos cativos; não, sua função é como a dos tragediógrafos de antigamente: tecendo tramas míticas que visam nos mostrar o funcionamento do mundo, para que nós (e mesmo eles próprios) consigam entrar em sintonia com o Cosmos.
A cosmogonia é o modelo exemplar de todos os tipos de “atos”: não só porque o Cosmo é o arquétipo ideal de toda a situação criadora e de toda criação - mas também porque o Cosmo é uma obra divina, sendo, portanto, santificado em sua própria estrutura. Por extensão, tudo o que é perfeito, “pleno”, harmonioso, fértil, em suma: tudo o que é “cosmicizado”, tudo o que se assemelha a um Cosmo, é sagrado. Fazer bem alguma coisa, trabalhar, construir, criar, estruturar, dar forma, in-formar, formar - tudo isso equivale a trazer algo à existência, dar-lhe “vida” e, em última instância, fazê-la assemelhar-se ao organismo harmonioso por excelência, o Cosmo. Ora, o Cosmo, repetimos, é obra exemplar dos Deuses, é a sua obra-prima.
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Págs. 34-35)
Como se não bastasse isso, as estréias de Halloween Ends, X e Pearl coincidiram com uma nova - e muito bem preparada - edição de O grande Deus Pã (1890), pela editora Todavia, e com tradução de Guilherme da Silva Braga. Um dos grandes títulos da literatura de horror, a novela de Arthur Machen foi uma das principais inspirações de Lovecraft, em especial para compor o seu O chamado de Cthulhu. Faço referência a Pã porque ele é o mais famoso de todos os sátiros e caprinos que influenciaram os ditirambos da tragédia clássica, e Machen faz nada menos que um milagre ao nos mostrar - como é comum ao gênero gótico - como o passado (isto é, o nosso passado primitivo) insiste em permanecer, mesmo na aurora da Modernidade. O grande Deus Pã é também um triunfo da literatura e da arte Decadente, e o escritor compõe uma história de horror que mistura ciência e alquimia, religião e horror cósmico - e, claro, sexo e violência.
Todas essas obras, como é de esperar tanto do horror quanto da pornografia, são consideradas baixas e imorais. Pior: perigosas. A suposição é de que elas corromperiam a alma e o caráter daqueles que as veem, e elas não possuem nenhum mérito artístico ou estético. Seu intuito é mais baixo: causar repulsa, ou atração. Nojo, ou erotismo. Mas há um fundo moral profundo nessas obras, uma compreensão do mundo e da natureza humana - e da natureza da realidade, no caso do horror cósmico - que nos perturba justamente por ser Verdadeira. Quis enfatizar a conexão com a tragédia não só porque os cineastas fizeram-nas em seus filmes, mas também para enfatizar que o que está em jogo nesses filmes, do ponto de vista moral, é muito mais profundo do que podemos supor. Aplicar conceitos ideológicos, de esquerda ou de direita, progressistas ou reacionários, fazem tanto sentido quanto dizer que o Papa Francisco é de esquerda, ao passo que Bento XVI era de direita. É estúpido esse tipo de suposição porque o referencial é outro.
“O teatro não é uma casa de correção para malandros, nem uma escola primária para menores de idade”. Seria injusto omitir desse coro de vozes a de E.T.A. Hoffmann que, entre muitas coisas, também foi crítico de alto gabarito. Nas Notícias das mais Recentes Aventuras do Cachorro Berganza, podemos ler: “De qualquer forma, considero a decadência do vosso teatro provém da época em que se passou a considerar o aperfeiçoamento moral do homem como finalidade suprema, ou mesmo como único objetivo do teatro, tentando assim transformá-lo em escola correcional”.
(A tragédia grega, págs. 46-47)
A arte não tem função: ela simplesmente é. A tragédia grega, como vimos, nos ajuda a dar uma compreensão maior do mundo e como devemos nos relacionar com ele, mas isso não faz com que ela seja um manual pedagógico. O mesmo vale para os filmes de horror. No máximo, ganhamos uma compreensão, mas ela é ambígua, difícil, repleta de complexidades que não podem ser reduzidas a ensinamentos fáceis.
A criação poética não pode ser dirigida por programas, mesmo que estes se encontrem bem acima dos que nos foram oferecidos no passado com as mesmas pretensões. Mas precisamos ter muito cuidado para não jogar fora a criança junto com a água do banho (…) Em cada um dos três grandes trágicos acontece mais de uma vez que o autor, saindo do âmbito da representação mitológica, fala diretamente aos atenienses que se acham no teatro de Dionísio e, por dever sagrado (Ésquilo e Sófocles) ou com uma profunda confiança no poder do Logos (Eurípedes), tenta comunicar-lhes o que sabe sobre os deuses e os homens. Mas isso é fundamentalmente diferente da concepção de que a obra de arte em seu determinado conjunto deve servir, desde o princípio, a um determinado propósito educativo.
(A tragédia grega, pág. 47)
O trabalho do artista é compartilhar a sua compreensão do mundo com o público. Mesmo sendo uma via de mão única, é um diálogo, também, uma vez que podemos revisitar constantemente as obras (eu mesmo revisitei a de Wes Craven e Arthur Machen este ano). Aulas e jogos de aprendizagem sem dúvida são importantes, e de fato possuem um caráter teatral a elas, mas não são arte. Não há Verdade ali, tampouco Beleza (um dos motivos por nunca ter sido um grande fã de Bertolt Brecht e seu teatro didático).
E o que esses filmes nos mostram é menos a persistência de um modo arcaico, ultrapassado, de se pensar, mas sim uma mitologia moderna, como Mircea Eliade diz. Isso se dá pelo fato de que, como ele nota, o pensamento mítico é elemento constitutivo do ser humano.
Pesquisas recentes trouxeram à luz as estruturas míticas das imagens e comportamentos impostos às coletividades por meio da mass media. Esse fenômeno é constatado especialmente nos Estados Unidos. Os personagens dos comic strips (histórias em quadrinhos) apresentam a versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos. Eles encarnam a tal ponto o ideal de uma grande parte da sociedade, que qualquer mudança em sua conduta típica ou, pior ainda, sua morte, provocam verdadeiras crises entre os leitores; estes reagem violentamente e protestam, enviando milhares de telegramas aos autores dos comic strips e aos diretores dos jornais. Um personagem fantástico, Superman, tornou-se extremamente popular graças, sobretudo, à sua dupla identidade: oriundo de um planeta destruído por sua catástrofe, e dotado de poderes prodigiosos, ele vive na Terra sob a aparência modesta de um jornalista, Clark Kent; Clark se mostra tímido, apagado, dominado por sua colega Miriam Lane. Essa camuflagem humilhante de um herói cujos poderes são literalmente ilimitados, revive um tema mítico bastante conhecido. Em última análise, o mito do Superman satisfaz às nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limitado, sonha revelar-se um dia um “personagem excepcional”, um “herói”.
O romance policial se prestaria a observações análogas. De um lado, o leitor assiste à luta exemplar entre Bem e Mal, entre o herói (= o detetive) e o criminoso (encarnação moderna do Demônio). De outro lado, por um processo inconsciente de projeção e identificação, o leitor participa do mistério e do drama, e tem a sensação de estar pessoalmente envolvido numa ação paradigmática, isto é, perigosa e “heróica”.
(Mito e Realidade, Mircea Eliade. Pág. 159)
Horror, ficção científica e narrativas policiais e de mistério podem pertencer à mesma matriz gótica, mas o próprio caráter sobrenatural que o gótico possui por si só já apontam para uma outra realidade, uma outra forma de compreender a realidade. Mark Fisher fala de “assombrologia”, o fato de que somos assombrados por sensações macabras e estranhas de algo que não deveria estar aqui (o Weird) ou algo que já esteve (o Eerie). Mais do que possibilidades que não se concretizaram, ou quase se concretizaram, eu diria que o assombro de Halloween Ends, X e Pearl, e também Heat 2, é o fato de que, no fundo, vivemos em um mundo que luta constantemente para ocultar o fato de vivemos em um tempo mítico, uma cosmogonia de eterno fim e recomeço. E como nós devemos entrar em sintonia com ele.