Uma Falha na Matrix
O Mal-Estar na Cultura PARTE IV | Reflexões sobre a nossa cultura contemporânea
X.
Quando deixamos de entender o mundo é de fato um livro muito apropriado para os nossos tempos - inclusive na sua forma. De difícil classificação, o livro de Labatut é um misto de ensaio sobre a história da ciência e da modernidade com romance ficcional - e que tipo de ficção? Histórica, científica, de horror cósmico? É um pouco de todas essas coisas. Mas essa dificuldade de classificação, assim como o próprio caráter amorfo, dinâmico e fluido é muito apropriado para os nossos tempos de modernidade líquida (Zygmunt Bauman) - ou hipermodernidade (Gilles Lipovestky), supermodernidade (Marc Augé), modernidade tardia (Ulrich Beck, Anthony Giddens) ou simplesmente pós-modernidade (Fredric Jameson, Linda Hutcheon, Perry Anderson). Não conseguimos nem mesmo classificar o período em que estamos, tamanha a confusão. Eu mesmo prefiro Era Axial, seguindo a terminologia de Karl Jaspers e adotada por antropólogos, filósofos e historiadores que enxergam que a modernidade, como um todo, está presa (stuck) em uma fase liminal, uma transição.
Boa parte do livro de Labatut (justamente aquela intitulada “Quando deixamos de entender o mundo”, que é uma espécie de livro-dentro-do-livro, é dedicada a ficcionalizar a história da descoberta do mundo quântico no começo do século XX. Seus personagens são Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, Albert Einstein, Niels Böhr e Louis-Victor-Pierre-Raymond, sétimo duque De Broglie. Um traço comum a todas essas figuras, nas mãos de Labatut, é que elas quase que enlouqueceram completamente no curso de suas investigações científicas. Na verdade, não fosse pela loucura e seus comportamentos bizarros e aberrantes, dificilmente eles teriam conseguido compreender alguma coisa em primeiro lugar. Esse é justamente o traço mais fascinante do retrato ficcional que Labatut faz: a profunda compreensão do mundo só passa pela loucura - exatamente aquilo que tanto nos assombra nas obras de Lovecraft e Philip K. Dick. Sonhos aterradores, visões proféticas, e o aprendizado de línguas novas - no caso, a matemática de Schrödinger e Heisenberg - aproximam a ciência de ponta do misticismo religioso, e os físicos quânticos de Labatut mais se assemelham aos alquimistas de antigamente do que aos tipos sérios, pacatos, de jaleco branco, preocupadíssimos com seu status social como especialistas e consultores políticos e intelectuais públicos. Ao retomar os esforços desses cientistas - e a loucura que passaram ao descobrir um mundo bizarro e microscópico - os dois livros de Labatut lançados em 2022 no Brasil são nada menos que uma tentativa de investigar a loucura que parece ter caído sobre nós nos últimos anos. Mas e o que isso significa? Labatut aponta caminhos, mas é sábio o suficiente de não tentar responder. Mas é curioso que ele trata da ciência - da hard science, isto é, a física, a química e a língua comum delas, a matemática - para traçar o momento em que deixamos de entender o mundo.
E o curioso é que essa é justamente a preocupação central da obra de Adam Curtis, documentarista inglês da BBC. Com uma obra extensa, que remonta ao início dos anos 80, e compreende mais de trinta filmes, minisséries e curta-metragens, o que mais surpreende quem se depara com a obra do inglês é quão coesa ela é. Curtis aborda temas como sociologia, ciência política, tecnologia, invenções científicas, e história da cultura e do pensamento, para elaborar uma “história emocional da modernidade”. A partir de sua minissérie de 1992, Pandora’s Box, até a sua mais recente, Can’t Get You Out Of My Head (2021), Curtis desenvolveu um estilo único no cinema. E, tal como o próprio romance de Benjamin Labatut, o estilo de Curtis é inclassificável.
Boa parte disso se dá pelo fato de que, não obstante Curtis seja um documentarista (ele se considera um jornalista), sua principal inspiração formal é a literatura do escritor modernista John Dos Passos, em especial a Trilogia U.S.A., composta pelos romances The 42nd Parallel (1930), 1919 (1932) e Money (1936) (Curtis deu uma excelente entrevista sobre isso, que pode ser lida aqui).
O épico de Dos Passos é conta a história dos Estados Unidos se utilizando de uma variedade de recursos estilísticos, misturando ficção com história, recortes de jornais com poesia, transcrições de documentos com diálogos imaginados e fluxo de consciência. Curtis faz algo semelhante em seus trabalhos: imagens de arquivo com a narração em Voice Over (que é o próprio Curtis narrando), colagens de cenas jornalísticas com trechos de filmes Hollywoodianos, uso de entrevistas com autoridades e trilha sonora pop. É um estilo híbrido, amorfo, mais próximo da forma livre do ensaio do que do documentário ou mesmo da ficção. O efeito final é nada menos que hipnótico.
E sobre o que fala o cinema de Curtis? Bem, a sinopse de Can’t Get You Out Of My Head é um bom começo:
Esta nova série de filmes conta a história de como chegamos aos dias estranhos que agora vivemos. E por que tanto os que estão no poder - quanto nós - acham tão difícil seguir em frente.
Os filmes traçam diferentes forças em todo o mundo que levaram até agora, não apenas no Ocidente, mas também na China e na Rússia. Abrange uma ampla gama - incluindo as estranhas raízes das modernas teorias da conspiração, a história da China, ópio e opióides, a história da Inteligência Artificial, a melancolia sobre a perda do império e amor e poder. E explora se a cultura moderna, apesar de seu radicalismo, é realmente apenas parte do novo sistema de poder.
(Trecho retirado do site da BBC. Tradução minha)
Eu cito Can’t Get You Out Of My Head porque a minissérie não só representa o maior triunfo artístico de Curtis - que transcende John Dos Passos para chegar também à literatura de Thomas Pynchon, Don DeLillo e Philip K. Dick - como a conclusão lógica de todos os assuntos de sua obra. É importante repassarmos brevemente pelos seus filmes e séries mais importantes:
Pandora’s Box (1992, 6 episódios): minissérie que cobre os perigos de certas invenções científicas, como fertilizantes (o inseticida DDT), energia nuclear (os incidentes de Chernobyl e Three Mile Island) e a bomba atômica. Mas o inglês também aborda as invenções tecnológicas sociais e culturais - a ciência aplicada ao universo da política e da economia. Curtis nos mostra as tentativas de engenharia social por parte da URSS de transformar os seus cidadãos em seres puramente racionais e científicos; as teorias do pós-colonialismo e pan-africanismo que atravessaram as lutas políticas dos países da África Ocidental; a teoria dos jogos desenvolvida pela RAND Corporation para desenvolver a base intelectual da Guerra Fria - e como essa teoria migrou para os mercados e grandes corporações. Ou seja: como teorias acadêmicas, pretensamente científicas, tentaram reescrever e remodelar (ou, melhor, re-programar) as sociedades do Ocidente e do Oriente. Como é comum na obra de Curtis, ele expressa genuíno interesse em cada uma dessas invenções e ideias, somente para mostrar como elas terminam agravando o problema que justamente ansiavam por solucionar, oq eu confere contornos tragicômicos aos assuntos que ele aborda (essa tragicomédia, aliás, é uma marca de seu estilo);
The Living Dead (1995, 3 episódios): série que explora como o passado e a própria história permanecem assombrando o presente como uma alma penada. Soa estranho, mas Curtis mostra como o Ocidente sucessivamente tenta fazer tábula rasa de si mesmo após experimentos fracassados (crises econômicas, derrotas em guerras, etc). Seja a tentativa de desnazificação da Alemanha no pós-Guerra, seja o fantasma de Winston Churchill atemorizando Margaret Thatcher, Curtis faz uma série documental imbuída de uma estética gótica, onde as ideias do passado não são superadas, mas sim permanecem, ocultas, fantasmagóricas, no presente;
The Mayfair Set (1999, 4 episódios): o nascimento do tráfico de armas internacional com a derrocada da União Soviética e o surgimento dos Anos de Ouro da Globalização. Curtis explora as transformações do capitalismo financeiro na etapa em que ele se espalha pelo resto do mundo (tema próximo ao de Heat 2);
The Century of the Self (2002, 4 episódios): sem dúvida a série mais famosa de Curtis, e a primeira que eu vi dele (anos atrás, em 2012), o cineasta nos reconta a história de Edward Bernays, o “pai das Relações Públicas” e o nascimento da sociedade de consumo nos Estados Unidos. Sobrinho de Sigmund Freud - “o pai da psicanálise” -, Bernays transforma as teorias de seu tio em fórmulas e métodos que possam ser aplicadas por grandes corporações para venderem os seus produtos. O objetivo é transformar o caráter e a personalidade do cidadão democrático. Na esteira dos horrores da Segunda Guerra Mundial, e no início da Guerra Fria, Bernays buscou uma forma de “pacificar” o cidadão - potencialmente rebelde, insolente, imprevisível, causador de conflitos e desordem - para que o horror do passado não se repetisse. A saída de Bernays foi a de transformar esse cidadão em um consumidor. O resultado é mais do que uma transformação da economia americana: é a reconfiguração emocional, psicológica e cultural do país. Curtis faz conexões surpreendentes, mostrando como o consumismo narcisista que marcou a sociedade americana dos anos 50 influiu diretamente para os movimentos de contra-cultura e psicologia radical dos anos 60 e 70, em especial a psicodelia;
The Power of Nightmares (2004, 3 episódios): Curtis faz um paralelo surpreendente e inusitado entre a ascensão do islamismo radical com a ascensão do neoconservadorismo de George W. Bush e outros políticos e intelectuais americanos que iniciariam a “Guerra ao Terror” no pós-11 de setembro de 2001. Curtis faz um uso brilhante de montagem paralela ao longo de três episódios para mostrar como radicais islâmicos desvirtuaram certas ideias do Corão para justificar o seu terrorismo, do mesmo jeito que neoconservadores desvirtuaram as ideias de Leo Strauss para justificarem suas aventuras militares e intervencionistas, além dos seus próprios experimentos nos mercados e nas economias do Ocidente;
The Trap: What Happened To Our Dream of Freedom (2007, 3 episódios): Partindo da teoria de liberdade de Isaiah Berlin, Curtis faz uma assombrosa meditação sobre como nós nos tornamos encarcerados pelas nossas próprias ideias de liberdade. Eu diria que essa série representa o fim do primeiro ciclo da obra de Curtis, que começa com Pandora’s Box;
The Rise and Fall of the TV Journalist (2007) / Oh Dearism (2009) / Paranoia and Moral Panics (2010) / Oh Dearism II (2014): Quatro curta-metragens exibidos em programas especiais da BBC sobre a decadência do jornalismo, que se tornou infectado “pela imaginação paranóica”. Traçando a origem dessa patologia à descoberta do escândalo de Watergate e à própria paranóia de Richard “Tricky Dick” Nixon, o inglês nos mostra como o jornalismo profissional ficou obcecado com a ideia de desmascarar teorias da conspiração a todo momento. O resultado disso é criar uma espécie de “cultura do escândalo e da paranóia”, com a manufatura de pânicos morais a cada semana. Trata-se de uma tentativa alucinada e moralista que agrava o próprio problema que supostamente se tenta corrigir (ou seja, a mesma ideia contida nas invenções científicas abordadas em Pandora’s Box, mas transpostas para o mundo do jornalismo). Décadas e décadas desse tipo de jornalismo paranóico é uma reação indiferente por parte do público. É impossível se acreditar em qualquer coisa, e o estado constante de alarme e pânico resulta numa dormência dos sentidos e da mente, uma apatia. Ao espectador anestesiado, resta simplesmente dar de ombros e dizer: “Oh dear”;
All Watched Over By Machines of Loving Grace (2011, 3 episódios): Curtis retoma os temas de Pandora’s Box, The Century of the Self e The Trap para recontar as origens das Big Techs. Ayn Rand, contracultura, poesia Beat, e tecnologia de ponta (além da Guerra Fria e a teoria dos jogos) se misturam em um caldo cultural para que Curtis possa nos mostrar como, na origem de sonhadores e inovadores (para usar a classificação de Walter Isaacson) como Bill Gates, Steve Jobs e outros havia a promessa - e a expectativa - de que o Personal Computer (PC), e a Internet provocariam uma revolução intelectual, cultural, sexual e sentimental na humanidade. O que as máquinas fizeram foi forçar uma visão simplificada da realidade, reduzindo-a a uma mera sequência de códigos binários, que poderiam ser facilmente controlados e regidos por um computador. O leitor, nessa altura do texto, pode tranquilamente supor como essa história acaba - a realidade, afinal, sempre contra-ataca. Essa temática de simplificação da realidade através de teorias científicas, invenções tecnológicas ou teorias sociais e econômicas é uma constante, desde Pandora's Box, e é a partir de All Watched Over By Machines of Loving Grace que Curtis vai começar a abordar os efeitos dessa simplificação mais diretamente. Por isso, ao meu ver, temos o fechamento do segundo ciclo da obra de Curtis;
Bitter Lake (2015, longa-metragem): Com a desastrosa saída dos Estados Unidos do Afeganistão em 2021 esse filme voltou a circular nas redes, e suponho que muitas pessoas tenham descoberto a obra de Curtis a partir dele. Retomando temas de The Power of Nightmares, Curtis nos mostra como a desastrosa Guerra ao Terror foi gestada já no fim da Segunda Guerra Mundial, com a incompreensão de líderes do Ocidente sobre o Oriente Médio sendo o catalisador de inúmeros problemas da região desde então: a sequência onde uma professora britânica tenta explicar o Dadaísmo e o mictório de Duchamp para uma sala de aula de mulheres afegãs é ao mesmo tempo a cena chave do filme e uma das mais hilárias do filme. O aspecto tragicômico desta sequência é simbólico: Curtis está nos mostrando como o Ocidente tem uma ideia simplista e banal de uma sociedade é completamente diferente;
Living in an Unreal World (2016, curta-metragem) e HyperNormalisation (2016, longa-metragem): os temas levantados em The Rise and Fall of the TV Journalist; Oh Dearism; Paranoia and Moral Panics e Oh Dearism II são recuperados por Curtis para, ostensivamente, comentar a irrealidade em que vivemos. Todas essas tentativas de simplificação da realidade terminaram que por criar uma “segunda realidade” - fake, postiça, simplista. A “primeira realidade”, aquela que habitamos mas que não conseguimos mais enxergar ou compreender continua nos afetando, no entanto. Curtis vê o escândalo ridículo em torno das fake news como mais um “pânico moral” conjurado pela mente paranóica dos jornalistas, assim como a própria eleição de Donald Trump e o Brexit (ambos de 2016) como sendo partes do mesmo fenômeno. Uma vez que ninguém mais consegue controlar o monstro de Frankenstein que se tornou a realidade, resta a tentativa cínica e ensandecida por parte de políticos e cientistas de redefinirem o conceito de verdade e mentira ao seu bel prazer. Curtis se vale da literatura SciFi e cyberpunk de Philip K. Dick e de William Gibson para tentar compreender o fenômeno da “hipernoramalização” de nossa realidade saturada de narrativas e imagens, sejam elas jornalísticas, sejam elas de filmes hollywoodianos;
Can’t Get You Out Of My Head (2021, 6 episódios): todos os temas de todos os filmes de Curtis reaparecem aqui, nesta minissérie épica que cobre toda a história do século XX e início do XXI. Partindo da eleição de Joe Biden e da pandemia da Covid19, Curtis visa explorar o lamaçal político e intelectual em que nos enfiamos, uma sociedade que se tornou incapaz de imaginar novas configurações e possibilidades sociais e políticas, presa como está a soluções fracassadas do passado. Nem a cultura, nem a ideologia (o comunismo e o capitalismo), nem a tecnologia e a internet (temas de All Watched Over By Machines of Loving Grace) foram capazes de dar uma saída adequada aos nossos impasses políticos e sociais.
Tudo isso é muito bem resumido por Benjamin Labatut:
O documentarista Adam Curtis tentou explicar o absurdo que muitas sociedades, muitos movimentos sociais e muitas revoltas populares estão sofrendo como fruto de uma crise da imaginação: “Este pode ser o momento em que todas as velhas histórias que deram sentido ao mundo estão entrando em colapso. Agora mesmo, antes de chegar a próxima grande história, uma massa disforme de trilhões e trilhões de fragmentos sem nenhum sentido está se precipitando para tentar preencher esse vazio. E por um breve intervalo de tempo na história, ficamos imersos num mundo completamente desprovido de significado. Mas então, de um lugar que hoje nem sequer podemos imaginar, alguém começará a juntar todos esses fragmentos de uma forma totalmente nova. E daí surgirá a próxima grande história”. O fracasso de nossas grandes narrativas em refletir como é estar vivo durante a segunda década do século XXI e o colapso desse dom divino que nos permite colocar em palavras a realidade e dar sentido ao que nos cerca para partilhar uma história em comum sem dúvida estão na base da nossa confusão atual e da nossa quase total desorientação. Mas desconfio que há algo mais: não temos histórias para explicar a nós mesmos de maneira adequada, por que estamos em uma corrida desenfreada, desconectados do passado e sem nenhuma ideia nítida de futuro, livres de qualquer tipo de vínculo, porém completamente perdidos. Vítimas da velocidade, nos transformamos em alciões, em martins-pescadores que despencam em queda livre, de olhos fechados, aturdidos em nosso próprio movimento. É como se tivéssemos sido vítimas de um processo voraz de total imprevisibilidade. A sensação é de estarmos “saindo do livro”.
(A pedra da loucura, págs. 30-31-32)
A fragmentação das grandes narrativas é um dos temas abordados pelos pensadores e teóricos da pós-modernidade, o primeiro deles sendo Jean François-Lyotard em seu clássico A condição pós-moderna (1979), onde o francês, do jeito truncado e hermético que lhe é característico, preconizava não só o fim da União Soviética e o surgimento do “pós-Marxismo” - isto é, o identitarismo narcisista que assola os nossos dias - como também a consequente perda de referencial teórico e ontológico que assolaria, por sua vez, as democracias e sociedades do Ocidente. Seculares, pois a religião deixou de fornecer uma grande narrativa para o Ocidente, e com a decadência do Marxismo, não há mais “metanarrativas”, grandes sistemas de produção de sentido que dão a “cola” social e cultural para as sociedades. O que resta? Bem, o século do Eu (Curtis) e outras formas aberrantes, paranóicas e patológicas de organização social.
A forma estética para captar esse tipo de dissolução é justamente aquela esboçada pelos livros de Labatut, pelos filmes de Curtis e também da recipiente do Prêmio Nobel de Literatura de 2022, Annie Ernaux. Sua obra começou a ser publicada no Brasil em 2021, pela editora Fósforo, e desde então já temos cinco títulos lançados por aqui: O Lugar, Os anos, O acontecimento, A vergonha e O jovem. Misturando autobiografia, memórias, autoficção e ensaio de história cultural, Ernaux reflete sobre si mesmo e sua geração: uma geração entre, sem característica definidora alguma. Não lutou em nenhuma grande guerra, mas também não participou ativamente dos movimentos estudantis e de revolução social e sexual que caracterizaram a segunda metade do século XX. Na França e, agora, com a consagração do Prêmio Nobel, Annie Ernaux se tornou uma espécie de símbolo de feminista, e todo o discurso em torno de sua obra fazem questão de enfatizar isso. Ela mesmo, no entanto, afirma repetidas vezes em seus livros que já era velha demais para participar do Maio de ‘68 e da Revolução Sexual dos anos 60. Mesmo que se compadeça da causa dos estudantes, não raro ela expressa inveja por não pertencer à mesma geração que eles. Por exemplo, em O jovem, Ernaux reconta o caso que teve com um rapaz quase trinta anos mais jovem que ela. Superficialmente, podemos ler essa relação como uma denúncia do controle sexual exercido por uma sociedade patriarcal, que aceita que um homem mais velho se relacione com uma mulher mais jovem, mas não o contrário. Ainda que isso esteja presente no livro de Ernaux, ela está no fundo falando sobre o seu próprio sentimento de deslocamento: “De vez em quando, de longe e com discrição, pedindo para eu não me virar, mostrava-me um de seus professores da faculdade de letras. Ele me arrancava da minha geração, mas eu não pertencia à dele” (O jovem. Trad. Marília Garcia. Pág. 13).
Ele era o portador da memória do meu mundo de origem. Mexer o açúcar na xícara de café para diluir mais rápido, cortar o macarrão, picar a maçã em pedacinhos para, em seguida, pegar com a ponta da faca - tantos gestos esquecidos que, de modo perturbador, eu reconhecia nele. Remontava os meus dez, quinze anos, e eu estava de novo sentada à mesa com minha família e meus primos, que tinham, como A., a pele muito branca e as bochechas vermelhas, características típicas dos normandos. Ele concretizava o meu passado.
Com ele, eu percorria todas as épocas da vida, da minha vida.
(O jovem, pág. 19)
O relacionamento com o jovem (“A”), pelas palavras de Ernaux, mais do que relatar sobre a tensão erótica que existe entre uma mulher mais velha e um homem mais novo, ensaia um reencontro com si mesma. Com sua vida, com sua juventude, mas também com quem deixou de ser na passagem dos anos. E esse reencontro termina de forma agridoce, até mesmo doída. O que Ernaux sugere é que esse relacionamento é “proibido”, algo de anti-natural.
Ao se deparar com o casal que nitidamente formávamos, os olhares passavam a ser descarados, quase estupefatos, como se diante de uma união antinatural. Ou um mistério. O que as pessoas viam não éramos nós e, sim, de modo confuso, o incesto.
(O jovem, págs. 28-29)
É como a Assombrologia, tão bem descrita por Mark Fisher: Ernaux se encontrou com o fantasma de si mesma, jovem - presa nas engrenagens do tempo, condenada a repetir constantemente os mesmos erros por toda eternidade.
Já o tenente Hiroo Onoda é ele mesmo um náufrago da História. Destacado pelo governo Imperial japonês para manter sob controle a ilha de Lubang, nas Filipinas, em dezembro de 1944, Onoda se viu imerso na selva lutando um sofrido combate de guerrilha por 29 anos. Os anos se passaram e Onoda nunca foi contactado pelo governo japonês sobre o fim da guerra e a derrota do Japão. Na verdade, ele mesmo custou a acreditar que seu país havia perdido. Ao fazer isso, passou quase trinta anos de sua vida lutando uma guerra solitária contra um inimigo imaginário, caminhando de costas para que suas pegadas confundissem seus potenciais inimigos. Ocasionalmente, vislumbrava aviões estranhos, revistas falando sobre acontecimentos impossíveis e escutava comunicados que, de tão bizarros, só poderiam ser um esforço de guerra psicológica. Onoda, na verdade, estava captando os detritos da história e do tempo, que ocasionalmente penetravam pela densa mata de Lubang. Eventualmente, a duras penas, Onoda é convencido dos fatos, e levado de volta ao Japão. Sua reintegração nunca é completa, e ele permanece como um náufrago da História, alguém que foi avistado boiando em alto-mar por anos e resgatado.
Muitas vezes ele se perguntava se seus anos em Lubang poderiam ter sido anos de sonambulismo, mas se algo palpável, não presente em seus sonhos, materializava-se de repente, então ele não poderia ter estado sonhando. Onde começa aquilo que se pode tocar e onde começa a lembrança desse algo? Por que, ele se perguntava com alguma frequência, sua marcha interminável na selva não podia ter sido uma ilusão? Em seus milhares de passos, chamara a sua atenção que não existia nem poderia existir um presente. Cada um de seus passos já era passado, e cada novo passo, futuro: o pé levantado, algo já acontecido; o pé que pisa na lama defronte, futuro. Onde estava o presente? Cada centímetro para diante, algo vindouro; cada centímetro para trás, coisa já passada. E isso em medidas cada vez menores, milímetros, frações já imperceptíveis de milímetros. Nós acreditamos viver no presente, mas ele não pode existir. Caminho? Vivo? Luto uma guerra? Mas e os muitos trechos que ele caminhou de costas para iludir o inimigo? Também o passo para trás caminhava para o futuro.
(O crepúsculo do mundo, págs. 92-93)
Essa perspectiva geracional de “nem-nem”, tanto de Ernaux - aliada do seu Lugar, dos seus Tempo (Os anos) e, no fundo, de si mesma (O acontecimento, A vergonha e O jovem) - quanto de Hiroo Onoda, no entanto, oferece uma perspectiva única para captar o século XX e as diferentes etapas da modernidade, em especial como a tecnologia e a sociedade de consumo soterraram o mundo tradicional dos seus pais e avós.
A chegada cada vez mais veloz de novos bens de consumo fazia o passado ficar para trás. As pessoas não se perguntavam sobre a utilidade de cada objeto, simplesmente desejavam ter as coisas e sofriam por não ganhar o bastante para poder comprar tudo à vista. Virava um hábito preencher cheques e as “facilidades de pagamento” e os créditos eram descobertos. Todos estavam à vontade com as novidades, sentiam orgulho de ter um aspirador de pó e um secador de cabelo elétrico. A curiosidade era mais forte que a desconfiança. Descobríamos o cru e o flambado, o steak tartare com pimenta, os temperos e o ketchup, o peixe à milanesa e o purê instantâneo, as ervilhas congeladas, o palmito em conserva, a loção pós-barba, a espuma para banho de banheira e a ração para cachorro. As cooperativas e os familistérios davam lugar aos supermercados onde os clientes ficavam encantados por poder tocar nas mercadorias antes de comprar. As pessoas se sentiam livres, não pediam nada a ninguém. Todas as noites, a loja de departamentos Galeries Barbès oferecia aos clientes um bufê no estilo camponês. Os jovens casais de classe média garantiam sua elegância comprando uma cafeteira Hellem, um perfume Eau Sauvage da Dior, um rádio de ondas curtas, um aparelho de som, venezianas e papel de parede de juta, um jogo de mesa e cadeiras de madeira, um colchão Dunlopillo, uma secretária ou escrivaninha e móveis cujos nomes eles tinham lido em romances. Frequentavam antiquários, serviam jantares com salmão defumado, camarão com abacate, fondue, liam Playboy, Lui, Barbarella, Le Nouvel Observateur, Teilhard de Chardin, revista Planète, fantasiavam lendo os pequenos anúncios de apartamentos de “luxo” com closet, que ficavam nos “Condomínios Residenciais” - o nome por si só era um luxo -, andavam de avião pela primeira vez disfarçando a angústia e se emocionando ao ver de cima os quadrados verdes e dourados, e se impacientavam por não terem recebido ainda o telefone solicitado há mais de um ano. Algumas pessoas não viam motivos para ter um telefone e continuavam indo aos Correios, onde o atendente compunha o número no guichê e enviava a chamada para uma cabine.
As pessoas nunca se entediavam, elas queriam mais é aproveitar.
(Os anos. Trad. Marília Garcia. Págs. 80-81)
Assim como Curtis, Ernaux percebe que foi o capitalismo que possibilitou a gestação da geração de Maio de 68 e de toda a contracultura do período. Excluída do protagonismo desses processos por uma questão geracional, Ernaux se vê como espectadora distanciada das transformações sociais que abalaram o Ocidente na segunda metade do século XX. O resultado desse avanço inexorável de tecnologias, consumo, saúde, estética, e tudo o mais trazido à tona pela avalanche do capitalismo no pós-Guerra resultou em um presentificação do progresso - ou uma stuck culture, como diz Paul Skallas.
Estávamos completamente tomados pelo tempo das coisas. Um equilíbrio mantido por bastante tempo entre a espera por eles e o seu surgimento, entre a privação e obtenção, tinha se rompido. A novidade já não suscitava ataques nem entusiasmo, já não assombrava mais o imaginário. Era o caminho normal da vida. Talvez o próprio conceito de novo desaparecesse, assim como o progresso já quase não existia, estávamos condenados a isso. Começávamos a entrever a possibilidade ilimitada de tudo. Os corações, os fígados, os olhos, a pele passavam dos mortos para os vivos, os óvulos de um útero para o outro e mulheres de sessenta anos davam à luz. O lifting interrompia a passagem do tempo no rosto das pessoas. Na televisão, Mylène Demongeot era a mesma boneca resplandescente que tínhamos visto em Basta ser bonita, conservada intacta desde 1958.
(Os anos, pág. 200)
Ernaux inclusive faz previsões sobre o futuro, sobre como a onda do progresso pode reescrever a própria natureza humana, incidindo em seus comportamentos mais íntimos e sexuais. O resultado é uma espécie de futuro biotecnólogico e pós-humano, muito semelhante àquele imaginado por Michel Houellebecq em Partículas elementares:
Dava vertigem pensar nos clones, em crianças inseridas em um útero artificial, implantes cerebrais, em wearables - que em inglês ganhava uma pitada a mais de de estranheza e de poderio. Dotados de uma sexualidade completamente indiferenciada, essas coisas e comportamentos coexistiriam com os antigos durante certo tempo.
Mas a facilidade de tudo ainda assombrava e produzia a exclamação, diante de um novo objeto recém-chegado no mercado: “Sensacional!”.
(Os anos, pág. 200)
O que mais me chamou a atenção nos seus livros, no entanto, é justamente este aspecto: Annie Ernaux está à deriva. A história (“História”) seguiu o seu curso, enquanto ela ficou que nem o tenente Onoda, do romance de Werner Herzog (O Crepúsculo do Mundo, 2022, trad. Sérgio Tellaroli, Todavia Livros): lutando uma guerra imaginária, entre sonhos e memórias, enquanto o mundo continua sua jornada.
Mesmo livros que explicitamente apontam para temáticas sexuais e femininas, como é o caso de O acontecimento e O jovem, esse aspecto chama a atenção. O primeiro lida com as complicações físicas e psicológicas)de um aborto, ao passo que o segundo conta a história do caso que Ernaux - já na meia-idade - teve com um rapaz muito mais jovem que ela. É nítido que a autora levanta questões sobre o feminino em uma cultura ainda ostensivamente favorável aos homens, mas o que subjaz por baixo disso é um certo senso de inadequação. Ernaux nunca fica confortável com sua ascensão de classe social e econômica, assim como nunca fica confortável com a vida cosmopolita nas grandes metrópoles, em contraste com sua infância rural e de trabalho braçal. Esse aspecto de deslocamento ganha contornos existenciais mais profundos em livros impecáveis como O lugar e Os anos, onde Ernaux mistura o testemunho autobiográfico com uma acurada crítica cultural.
Os seus livros, no fundo, estão discutindo a mesma coisa que os filmes de Curtis e, em certa medida, os livros de Labatut: quando deixamos de entender o mundo e ficamos presos na modernidade, na passagem de um mundo (o passado) para outro, um futuro que não se realiza (as lamentações de Mark Fisher). Como vimos anteriormente, Heat 2 é também uma narrativa sobre essa confusão, esse realinhamento da sociedade contemporânea no fim de milênio. De 1988 a 2000 (antes dos atentados do 11 de setembro), o que vemos é a reorganização da sociedade no mundo global e do capitalismo sem fronteiras que temos hoje.
Essa sensação de que as coisas estão em fluxo, de que há algo de estranho no ar, já está sendo captada nas frestas da cultura. Uma série de pensadores, críticos, escritores e romancistas já começam a apontar para o surgimento de uma ordem pós-liberal, se assim quiser. Trata-se do que há de mais rico e instigante sendo pensado hoje no mundo da cultura, da política e da tecnologia. Livros como Por que o liberalismo fracassou?, de Patrick J. Deneen; The Coming of Neo-Feudalism: A Warning to the Global Middle Class, de Joel Kotkin; O fim da classe média: A fragmentação das elites e o esgotamento de um modelo que já não constrói sociedades, de Christophe Guilluy; Postjournalism and the death of newspapers e The media after Trump: manufacturing anger and polarization, de Andrey Mir; The Revolt of The Public and the Crisis of Authority in the New Millennium, de Martin Gurri; A Era do Capitalismo de Vigilância, de Shoshanna Zuboff; A nova idade das trevas, de James Bridle; e a própria obra de Mark Fisher, morto em 2017, mas que começou a ser publicada no Brasil em 2020, são marcos desse tipo de pensamento e tendência.
Mark Fisher (1968-2017) é um teórico de esquerda profundamente atípico. Para começo de conversa, e ao contrário da gigantesca maioria de seus colegas de academia, Fisher nasceu em uma família de classe média baixa e verdadeiramente proletária. Nos anos 80, foi envolvido com grupos punk e pós-punk, e viveu intensamente a rica e variada cena musical underground britânica do período. Fisher conviveu não somente com músicos, mas também com uma nova geração de críticos e jornalistas musicais. Sua principal amizade do período foi Simon Reynolds.
Reynolds cobria minuciosamente todas as bandas desse submundo punk e pós-punk, e o fazia analisando e compreendendo as bandas como sendo parte de um fenômeno cultural, político e social maior. Jacques Derrota, Gilles Deleuze, Fredric Jameson, Slavoj Zizek e tantos outros notórios críticos culturais de esquerda figuravam em seus ensaios, mas eram descritos em uma linguagem jornalística acessível, refinada e, ao mesmo tempo, viva. Fisher foi profundamente influenciado por Reynolds e podemos dizer que ele foi a mais duradoura influência em seu estilo e abordagem.
Sem perspectivas, Fisher ingressou na academia nos 90. Estudando na Universidade de Warwick, a sua tese de PhD, Flatline Constructs: Gothic Materialism and Cybernetic Theory-Fiction (1999), é um marco para compreendermos os caminhos de sua obra. Fisher escreve com clareza e sobriedade sobre música, cinema (não só filmes de arte, mas filmes cult, como os de Rainer Werner Fassbinder e David Lynch), blockbusters (que vão de Exterminador do Futuro aos épicos de Christopher Nolan), televisão (comenta extensamente não só sobre seriados, mas também sobre reality shows), literatura (em especial a de ficção-científica e de horror) e, claro, política, cultura e economia. Seu interesse em temas sombrios, como o Gótico, o Cyberpunk, a ficção paranóica, e o Horror são postos lado a lado com autores difíceis como Jameson, Derrida, Lyotard e outros santos da tradição de esquerda. Reforço, no entanto, que Fisher escreve sobre todas essas coisas com uma prosa acessível, envolvente, transitando da crítica de um blockbuster para uma densa exposição teórica com uma naturalidade surpreendente.
Sua tese de 1999 o levou à fundação do lendário CCRU - Cybernetic Culture Research Unit. Junto a Nick Land (que se tornaria um dos pais do neorreacionarismo e aceleracionismo) e Sadie Plank, Fisher e outros pesquisadores que logo se tornariam profundamente influentes na cena cultural e intelectual britânica, promoveram uma série de estudos sobre a natureza da Internet e como esta modificaria a cultura e o ser humano. O estilo dos textos do CCRU, que não são assinados, é bastante único: misturam programação com poesia, literatura com teoria. São textos difíceis - e de difícil classificação. Mas o contato com teorias estranhas, heterodoxas, marcaria profundamente a visão de Fisher.
Enquanto conduzia sua vida acadêmica como professor, num ambiente que ele considerava estéril e desestimulante, cada vez mais preocupado em cumprir metas de RH (aquilo que ele denominava de stalinismo de mercado), Fisher produziu uma série de textos e ensaios em seu blog, k-punk. Fisher falava de tudo lá, e seu resultado dão quase mil páginas de textos (todas recolhidas no gigantesco volume k-punk: The Collected and Unpublished Writings of Mark Fisher, lançado em 2021 e ainda inédito no Brasil). Não só nestes textos, mas também em outros pela internet e em seus influentes e poderosos livros de crítica cultural, lançados ao longo dos anos 2000 e 2010, deixariam uma marca profunda na cultura.
O inesperado sucesso de seu primeiro livro, Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? (2008), coincidiu de ser lançado quase que o mesmo tempo que o colapso financeiro do mercado imobiliário, que provocou um verdadeiro renascimento da esquerda no mundo, com autores como Zizek liderando uma nova geração de intelectuais, que vão de Thomas Piketty a David Graeber. O sucesso permitiu que Fisher não só se envolvesse em movimentos de militância política e protesto, como criou um séquito de seguidores em volta de si: não só Simon Reynolds e alguns colegas do CCRU, mas também alunos. Fisher também montou o selo editorial Zer0 Books, dedicado a uma crítica cultural de esquerda eclética e acessível, em nítido e explícito rompimento com a tendência dominante de esquerda de se criticar somente a alta cultura, em desprezo da cultura pop e de massa. Fisher tinha nítido desprezo pelos teóricos da Escola de Frankfurt, e pouco falou de conterrâneos como Raymond Williams e Terry Eagleton.
As sucessivas derrotas que a esquerda sofreu na apatia pós-crise financeira de 2008 (a continuação do “longo fim da história”) desencadeou uma onda de depressão em Fisher. Ao longo de toda a sua vida, ele sempre lutou contra essa mazela psicológica, e escreveu extensivamente sobre o assunto, fazendo inclusive conexões entre a condição depressiva - uma verdadeira epidemia dos nossos tempos - com condições sócio-econômicas maiores. O resultado foi o desenvolvimento da teoria da Assombrologia (Hauntology) e do “lento cancelamento do futuro”. Os textos de Fisher desse período fariam uma virada sombria, cobrindo artistas e obras que possuem um nítido caráter assustador, distópico e, bem, inquietante.
Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos (2014, 2022 no Brasil) é um dos seus mais belos livros. Dedicado principalmente à música, mas ainda assim cobrindo temas culturais maiores, além de cinema, TV e literatura, Fisher se debruça sobre a ideia de que vivemos tempos assombrados. Não só habitamos as ruínas industriais, vivendo em um mundo cada vez mais virtual, irreal, como também podemos nos lembrar de futuros que nunca aconteceram. A Assombrologia designa um estilo musical próprio, típico de músicos como William Basinski, Burial, The Caretaker e outros. Música ambiente, com interferências eletrônicas pontuais, distorções e outros recursos digitais e analógicos. São sons perturbadores, e que disparam gatilhos de nostalgia e melancolia em nós. Melancolia de se lembrar de uma época em que nós podíamos imaginar um futuro diferente.
Fisher detesta movimentos hippies e toda a contracultura dos anos 60, mas ele reconhece que havia naquele período a oportunidade de se imaginar formas e arranjos sociais diferentes - não necessariamente socialistas ou comunistas, ainda que ele fosse um esquerdista radical. O ponto de Fisher não é com esta ou aquela ideologia per se, mas sim com a imaginação. O que ele conclui em Fantasmas da minha vida é que o avanço do neoliberalismo nos anos 80, 90, 2000 e 2010 gerou uma colonização implacável do subconsciente das pessoas. Uma completa e total anestesia e apatia, onde o ser humano é simplesmente incapaz de sonhar e imaginar. A epidemia de depressão, assim como o nítido rebaixamento das condições de vida por todo o Ocidente desenvolvido e liberal seriam os sintomas dessa mazela maior do Realismo Capitalista.
Por fim, em 2017, é lançada sua magnum opus: The Weird and the Eerie. Pouco antes do seu lançamento, Fisher cometeu suicídio. Sua morte abrupta foi um verdadeiro terremoto no meio cultural e político inglês. É sabido que Fisher não só estava no meio de um curso único e ambicioso, The Post-Capitalist Desire, como também escrevia febrilmente aquele que seria sua grande obra política, Acid Communism (só temos a introdução deste livro). Fisher estava ativo, produzindo mais do que jamais havia produzido em toda a sua vida e, no entanto, morreu. Esse fato lança uma sombra peculiar sobre seu último livro, em especial pela sua temática.
The Weird and the Eerie parte da obra do mestre do horror cósmico e pessimista H.P. Lovecraft para analisar obras culturais a partir de dois conceitos: o Weird (o estranho) e o Eerie (o macabro, ou, como o chamo, o inquietante). O Weird é aquilo que não pertence. Na obra de Lovecraft, é o momento em que percebemos que há algo que não deveria pertencer esse mundo acabou por invadi-lo. Na primeira parte, atribuiu isso à cena de O show de Truman quando o mesmo percebe um mundo de bastidor que se oculta por trás do seu. Em TraumaZone, é o momento em que os russos percebem que a realidade tal qual conheciam era uma grande mentira, e o real - o verdadeiro - irrompe violentamente sobre eles. Já o Eerie é aquilo que deveria estar lá, mas não está. Sentimos uma inquietação, um vazio crescente em nós. O desaparecimento misterioso de uma pessoa gera esse sentimento em nós (ela deveria estar lá, mas não está). Fisher atribui muito desse sentimento à própria paisagem industrial abandonada e carcomida da Grã-Bretanha. Um futuro estava sendo construído ali, mas ele foi “roubado” (por quem?) de nós.
Medo, horror, ansiedade, inquietação são recobertos por uma mortalha cinza escura de depressão. Essa é a sensação que temos ao ler os ensaios de The Weird and the Eerie, que analisam a banda pós-punk The Fall, os filmes de David Lynch, Christopher Nolan e Rainer Werner Fassbinder, a música ambiente e assombrológica de Brian Eno e tantos outros produtos culturais sombrios. É raro vermos um acadêmico de esquerda se debruçar sobre esses temas e, aqui, a obra de Fisher de fato adquire sua marca mais impressionante: há ideologia? Sim, há. Mas é completamente diferente de qualquer coisa que já li na esquerda. O único autor comparável a Fisher é o próprio Adam Curtis - o que não é de se surpreender, uma vez que os dois ingleses não só eram amigos próximos, como se encontravam ao menos uma vez pela manhã para tomarem chá juntos.
A obra de Fisher é curiosa por ser curta (poucos títulos) e vasta ao mesmo tempo (inúmeros posts em blogs, entrevistas por todos os lados, influência imensurável por suas editoras de livros e outros escritores, além da própria variedade quase infinita de assuntos e temas). Após a sua morte abrupta, ainda estamos sentindo todo o efeito de sua obra, que só agora começou a ser publicada no Brasil, a partir de 2020. Lá fora, no entanto, já temos alguns volumes dedicados a analisá-la.
Em foi justamente em março de 2020 que foi publicado Egress: On Mourning, Melancholy and the Fisher-Function, de Matt Colquhoun, o primeiro livro dedicado a analisar o legado e o pensamento de Fisher. Colquhoun, que também transcreveu as últimas aulas dadas por Fisher (Post Capitalist Desire: The Final Lectures, lançado em 2021) e que organiza a re-publicação de toda sua obra tanto no inglês quanto no espanhol, sentiu a morte de seu antigo mestre de forma bastante profunda. Fotógrafo amador além de ensaísta e teórico, Colquhoun, como Fisher, também lidava com sentimentos de depressão e de alienação. As palestras do professor, assim como a sua obra, o ajudaram a compreender seu lugar no mundo e também a interpretá-lo. O súbito e inesperado suicídio de Fisher (que é abruptamente sentido em Post Capitalist Desire) lançaram Colquhoun e outros alunos num luto profundo e sombrio. Estas são as melhores partes de Egress, e uma que podemos sentir como as ideias manifestadas em livros como Ghosts Of My Life e The Weird and Eerie, em especial os conceitos de Hauntology (conceito de Jacques Derrida, por vezes traduzido como “fantologia”, “espectrologia” ou, mais recentemente, como “assombrologia”), Weird e Eerie - sentimentos indesejados e melancólicos de ausência ou presença de um elemento estranho - ganham vida em meio ao estado liminal de luto sentido por Colquhoun e amigos próximos de Fisher. Egress é também um livro bastante único, que une o ensaio ao tratado teórico e acadêmico, crítica cultural com o relato pessoal. Esse caráter amorfo talvez seja o aspecto mais interessante do livro de Colquhoun.
O problema, ao meu ver, é que Colquhoun, não obstante tenha profundo domínio tanto do texto quanto de conceitos espinhosos dos mais herméticos pensadores de esquerda do século XX, é ainda um pensador bastante tradicional de esquerda. Fisher não tinha nada disso, e seu pensamento pode ser colocado ao lado de outros esquerdistas radicais heterodoxos como Nina Power, Angela Nagle, Anna Khachiyan, Ray Brassier e Simon Reynolds. Todos esses pensadores, até hoje, se situam à margem da esquerda, fora do mainstream.
De seu primeiro livro, Realismo Capitalista (2008), até o seu último, The Weird and the Eerie (2017, publicado postumamente), passando por Ghosts Of My Life, os ensaios em seu blog k-punk e seu trabalho de formação no CCRU, Fisher buscou uma forma nova de se pensar a cultura contemporânea, misturando crítica cultural, filosofia, tecnologia e produção musical. Escreveu sobre militância política, política cultural, críticas de cinema, TV, música, literatura e até mesmo histórias em quadrinhos, além de voltar o seu olhar para o desenvolvimento da internet, da mudança da paisagem da Inglaterra e das sociedades ocidentais, fotografia e arquitetura.
Realismo Capitalista é um livro que pode ser inserido numa tradição que remonta a Jean Baudrillard e Fredric Jameson, de se criticar a “falsa-consciência” gerada pela ideologia burguesa: ou seja, a hiperrealidade ou “sociedade do espetáculo”, de Guy Debord. O interessante é que Fisher rejeita os preceitos de pensadores como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, aristocratas por natureza, e de fato procurou abraçar a cultura pop e mesmo pulp. Nesse ponto, ele até mesmo se afasta de “Situacionistas” como Baudrillard e Debord, chegando a um tipo de crítica cultural que é basicamente sem comparação dentro do campo da esquerda. A ideia de Fisher é que, desde o fim da União Soviética, vivemos em um marasmo cultural provocado pelo Realismo Capitalista - semelhante ao Realismo Soviético. Um estilo fácil, complacente e imaginativamente morto. Preso em fórmulas mercadológicas e relatórios de performance para investidores, a cultura do Realismo Capitalista é uma que, tal como a sua contraparte soviética, é acomodada e satisfeita em se julgar a mais perfeita e bem acabada de todas as ideologias políticas. Fisher, no entanto, encontra sinais de que nem tudo anda bem no Ocidente: recordes de desemprego, queda de qualidade de vida, bullshit jobs (conceito de David Graeber, outro pensador de esquerda heterodoxo, e que também morreu subitamente em 2021), epidemia de patologias psicológicas… tudo isso coroado pela crise financeira de 2008. A solução dessa crise não foi uma tentativa de se reorganizar um sistema disfuncional, mas simplesmente dizer que os grandes bancos de investimento e as agências de crédito que causaram a crise eram “grandes demais para falir”. Fisher busca desesperadamente por uma saída desse labirinto, mas percebe que o sistema capitalista - financeiro e digitalizado - é como o grande Cthulhu, de Lovecraft: impossível de ser descrito, impossível de ser vencido, e ocasionalmente despertado por sacerdotes do caos (banqueiros, políticos, etc). É curioso que, ao final de sua vida, Fisher estivesse revisitando a contracultura dos anos 60 e 70. Digo que é curioso pois Fisher sempre expressou escárnio e asco por hippies e suas comunas malditas, além do próprio uso de drogas psicodélicas. Mas é justamente nesse ponto da psicodelia que seu mais novo projeto, Acid Communism, iria tocar e desenvolver. O que seria isso? Jamais saberemos.
E é aí que os problemas do livro de Colquhoun começam a aparecer, pois ele reconfigura e reinterpreta o pensamento de Fisher dentro de chaves muito mais convencionais - e ortodoxas - do pensamento de esquerda. É verdade que Colquhoun preserve o respeito que Fisher tinha pela cultura pop e mainstream, e sua análise de séries como The OA e Westworld são impecáveis, emulando perfeitamente o estilo do mestre; o problema é que tais análises entram num conjunto de pensamento esboçado por Colquhoun que é decepcionante de convencional. Suas conclusões e análises poderiam ter perfeitamente saído em publicações como The New York Times, The Atlantic, The Washington Post ou, pior: a Jacobin. Colquhoun regurgita o pensamento de Fisher para uma esquerda Zoomer, engajada nas redes e narcisista ao extremo com suas preocupações bobocas de identidade (todas essas preocupações fartamente atendidas por grandes corporações transnacionais e think tanks com orçamentos multimilionários). Um exemplo disso é que, dentro todos os textos de Fisher que Colquhoun poderia ter analisado em detalhe, é justamente no polêmico Exiting the Vampire’s Castle (2014) que ele se detém. Nele, Fisher faz uma crítica demolidora ao identitarismo doentio e obsessivo que tomou a esquerda.
Neste verão, considerei seriamente a possibilidade de me retirar de qualquer envolvimento com política. Exausto pelo excesso de trabalho, incapaz de qualquer atividade produtiva, me encontrei vagando pelas redes sociais, sentindo pesar minha depressão, com minha exaustão aumentando.
As contas do Twitter de “esquerda” geralmente configuram uma zona miserável e desanimadora. No início deste ano, ocorreram algumas tempestades em certos perfis no Twitter, nas quais figuras específicas identificadas à esquerda foram “autuadas” e condenadas. O que essas figuras haviam dito era, às vezes, censurável; mas, no entanto, a maneira pela qual foram pessoalmente difamadas e perseguidas me deixou uma sensação residual horrível: um cheiro de má consciência e um moralismo tipo “caça às bruxas”. A razão pela qual não me manifestei sobre nenhum desses incidentes, tenho vergonha de dizer, foi o medo que tive. Os valentões estavam na outra parte do playground. E eu não quis atrair a atenção deles para mim.
[Me utilizo de uma versão traduzida do ensaio, que pode ser lido aqui: https://medium.com/@fabriciosilveira_13890/deixando-o-castelo-do-vampiro-46c0af4e5a01.]
Publicado em 2013, Fisher escreveu o ensaio para defender o comediante Russell Brand. Neste momento, Fisher vinha percebendo que a atividade de esquerda, galvanizada pela crise de 2008, estava esfriando cada vez mais. Uma nova onda de derrotas e depressão acometeria o autor, culminando em Fantasmas da minha vida (2014). Russell Brand, no entanto, interessou o autor ao ver que um comediante talentoso e esquerdista radical que tinha a capacidade se comunicar com mais jovens e encher auditórios. Brand, no entanto, era politicamente incorreto. E a esquerda, neste momento, estava sendo gradualmente - mas rapidamente - tomada pelo identitarismo.
Na noite seguinte, ficou claro que a aparição de Brand havia produzido um momento de divisão. Para alguns de nós, a força da argumentação de Brand com Paxman foi intensamente emocionante, milagrosa; eu não conseguia me lembrar da última vez em que uma pessoa da classe trabalhadora teve espaço para destruir tão consumadamente uma classe “superior” usando inteligência e razão. Não era Johnny Rotten xingando Bill Grundy — um ato de antagonismo que confirmou mais do que desafiou os estereótipos de classe. Brand havia enganado Paxman — e o uso do humor foi o que separou Brand da amargura de tanto “esquerdismo”. Brand fez as pessoas se sentirem bem consigo mesmas; enquanto a esquerda moralizante se especializa em fazer as pessoas se sentirem mal e não é feliz até que suas cabeças estejam inclinadas em culpa e auto-aversão.
A esquerda moralizante rapidamente garantiu que a história não fosse vista como uma violação extraordinária, por parte de Brand, das convenções sem graça do “debate midiático” convencional, nem sobre a alegação de que a revolução iria acontecer. Esta última alegação só pôde ser ouvida pela ‘esquerda’ narcisista pequeno-burguesa como Brand dizendo que queria liderar a revolução — algo que eles responderam com ressentimento típico: ‘Eu não preciso de uma celebridade de salto alto para me liderar’. Para os moralistas, a história dominante era sobre a conduta pessoal de Brand — especificamente seu sexismo. Na febril atmosfera de McCarthismo fermentada pela esquerda moralizante, pistas que poderiam ser interpretadas como indício de sexismo significam que Brand é um sexista, o que também significa que ele é misógino. E então está feito. É curto e grosso. Ele está condenado.
É certo que Brand, como qualquer um de nós, tenha que responder por seu comportamento e pela linguagem que usa. Mas esse questionamento deveria ocorrer numa atmosfera de camaradagem e solidariedade, e provavelmente não em público, em primeiro lugar — ainda que, quando Brand foi questionado sobre sexismo por Mehdi Hasan, ele demonstrasse exatamente o tipo de humildade bem-humorada que faltava inteiramente nos rostos daqueles que o julgaram. “Eu não acho que sou sexista, mas lembro da minha avó, a pessoa mais adorável que eu já conheci: ela era racista, mas não acho que ela sabia. Não sei se tenho um cacoete cultural muito grande, sei que gosto muito da linguística do proletariado, dizer coisas como ‘querida’ e ‘pintinho’; portanto, se as mulheres pensam que sou sexista, estão em melhor posição do que eu para julgar, então vou trabalhar nisso.”
No olho do furacão, Fisher tentou desesperadamente reordenar a esquerda. O resultado foi o seu cancelamento. Na época, dez anos trás, no entanto, o termo era outro: call-out culture. Exclusivo da esquerda, e restringido a certos guetos na Internet, o fenômeno era pouco conhecido ou discutido. Fisher, no entanto, foi no cerne da questão: trata-se não simplesmente de um esquerdismo moralista, mas sim de um tipo de liberalismo de esquerda doentio. O identitarismo é como um vampiro, mas um que suga a força vital e intelectual das pessoas, drenando-as de sua capacidade imaginativa. O resultado do identitarismo, na terminologia fisheriana, é um reforço ideológico do Realismo Capitalista.
Mas, uma vez que a classe reapareceu, é impossível não enxergá-la em toda parte na resposta ao caso Brand. Brand foi rapidamente julgado e/ou interrogado por pelo menos três pessoas, à esquerda, provenientes de escolas particulares. Outros nos disseram que Brand não poderia realmente ser da classe trabalhadora porque ele era um milionário. É alarmante quantos “esquerdistas” pareciam concordar fundamentalmente com a tendência por trás da pergunta de Paxman: “O que dá a essa classe trabalhadora a autoridade para falar?”. É também alarmante e, na realidade, angustiante que eles pareçam pensar que as pessoas da classe trabalhadora devem permanecer na pobreza, na obscuridade e na impotência para que não percam sua ‘autenticidade’.
Alguém me passou um post escrito sobre Brand no Facebook. Não conheço o indivíduo que o escreveu e não gostaria de nomeá-lo. O importante é que o post foi sintomático de um conjunto de atitudes esnobes e condescendentes que aparentemente é bom exibir enquanto alguém ainda se classifica como sendo de “esquerda”. Todo o tom era terrivelmente arrogante, como se fosse um professor de escola riscando à mão o trabalho de uma criança ou um psiquiatra avaliando um paciente. Brand, ao que parece, é [descrito como] “claramente e extremamente instável… [devido a] um relacionamento ruim ou uma contrariedade [qualquer] na carreira, [apto para] desmoronar no vício em drogas ou em coisa pior.” Embora a pessoa afirme que “realmente gosta muito de Brand”, talvez nunca ocorrerá a ela que uma das razões pelas quais Brand pode ser “instável” é esse tipo de avaliação condescendente e falsamente transcendental [feita a respeito de gente como ele] pela burguesia de “esquerda”. Há também um aspecto chocante, mas revelador, em que o indivíduo se refere casualmente à “educação desigual” de Brand [e] ao seu vocabulário que causa estremecimento, característico de um autodidata — sobre o qual esse indivíduo generosamente diz: “Não tenho nenhum problema com isso”. Ora! Como esse sujeito é bom! Não se trata de um burocrata colonial escrevendo sobre suas tentativas de ensinar a alguns “nativos” a língua inglesa no século XIX ou de um professor de uma escola vitoriana em alguma instituição privada que descreve um de seus bolsistas. É um “esquerdista” escrevendo algumas semanas atrás.
Para onde ir daqui para a frente? Antes de tudo, é necessário identificar as características dos discursos e os desejos que nos levaram a esse passo sombrio e desmoralizante, onde a classe desapareceu, mas o moralismo está em toda parte, onde a solidariedade é impossível. A solidariedade é impossível, mas a culpa e o medo são onipresentes — e não porque somos aterrorizados pela direita, mas porque permitimos que os modos burgueses de subjetividade contaminem nosso movimento.
Isso não significa que Fisher jogue a culpa do identitarismo no colo da direita - ele é mais sofisticado e corajoso que isso. Fisher culpa nominalmente a esquerda e, em especial, a esquerda acadêmica, por isso.
A primeira proposição é o que eu chamo de Castelo do Vampiro. O Castelo do Vampiro é especializado em propagar a culpa. É motivado pelo desejo de excomungar e condenar, típico de um padre, o desejo de um acadêmico-pedante de ser o primeiro a ser visto a detectar um erro e o desejo de um hipster de fazer parte da multidão. O perigo de atacar o Castelo do Vampiro é que ele fará parecer — e fará tudo o que puder para reforçar esse pensamento — que aquele que o ataca também está atacando as lutas contra o racismo, o sexismo e o heterossexismo. Mas, longe de ser a única expressão legítima de tais lutas, o Castelo do Vampiro é melhor entendido como uma perversão liberal-burguesa e uma apropriação da energia desses movimentos. O Castelo do Vampiro nasceu no momento em que as lutas, não definidas por categorias identitárias, tornaram-se a busca de “identidades” reconhecidas por um grande Outro burguês.
(…)
Já reparei num fascinante mecanismo de inversão mágica entre projeção-desaprovação, pelo qual a simples menção de classe é tratada automaticamente como se isso significasse que alguém está tentando rebaixar a importância de raça e gênero. De fato, o caso é o oposto, pois o Castelo do Vampiro utiliza um entendimento liberal de raça e gênero para ofuscar as questões de classe. Em todas as tempestades absurdas e traumáticas do Twitter sobre privilégios, no início deste ano, foi notável que a discussão sobre privilégios de classe estava totalmente ausente. A tarefa, como sempre, continua sendo a articulação de classe, gênero e raça — mas o movimento fundador do Castelo do Vampiro é a desarticulação da classe em relação às demais categorias.
O Castelo do Vampiro foi criado para resolver o seguinte problema: como você pode deter imensa riqueza e poder enquanto também aparece como vítima, marginal e oposicionista? A solução já estava lá — na igreja cristã. Assim, o Castelo do Vampiro recorreu a todas as estratégias infernais, patologias sombrias e instrumentos de tortura psicológica que o cristianismo inventou, e que Nietzsche descreveu na Genealogia da Moral. A existência desse sacerdócio da má consciência, esse ninho de devotos piedosos, é exatamente o que Nietzsche previu quando disse que algo pior do que o cristianismo já estava a caminho. E aqui está…
O Castelo do Vampiro se alimenta da energia, ansiedades e vulnerabilidades dos jovens estudantes, mas, acima de tudo, vive convertendo o sofrimento de grupos específicos — quanto mais “marginais”, melhores — em capital acadêmico. As figuras mais louvadas no Castelo do Vampiro são aquelas que descobriram um novo mercado de sofrimento — aquelas que podem encontrar um grupo mais oprimido e subjugado do que qualquer outro explorado anteriormente serão promovidas através dessas fileiras muito rapidamente.
Fisher se põe a descrever como o Castelo do Vampiro - ou o Complexo Acadêmico Identitário - funciona. É claro que Fisher seria cancelado, e as derrotas subsequentes da esquerda no campo político (antecipadas pelo ressurgimento da direita no mundo, com a eleição de Donald Trump e o Brexit - que seriam comentadas brevemente por Fisher antes de seu suicídio), comprovariam a sua tese. Até hoje este ensaio é profundamente controverso dentro da esquerda, e mesmo os fisherianos mais aguerridos, como Matt Colquhoun, precisam fazer malabarismos retóricos exemplares para defendê-lo diante da malta Woke.
Pode-se falar o quanto for de interssecionalidade, mas a verdade é que, na prática, o discurso identitário se sobrepõe ao de classe ao despertar os sentimentos mais animalescos e tribalistas da raça humana. O resultado não é só um narcisismo doentio, uma patologia violenta, mas também uma paranóia, onde todos duvidam de todos, e onde qualquer gesto, palavra ou comportamento podem ocultar uma violência. A famosa solidariedade de esquerda é estilhaçada pelo martelo do identitarismo, criando ressentimentos e manufaturando paranóias - que são prontamente atendidas pelo mercado. Exiting the Vampire's Castle constrói sobre textos antigos de Fisher (em especial Liberal Communism, assim como ensaios onde teceu críticas à obra de Margaret Atwood e aos governos de Gordon Brown e Tony Blair), e conclui como a esquerda se tornou um mero aparato do liberalismo progressista, cujo radicalismo identitário nada mais é que uma grife de butique. O contorcionismo de Colquhoun é até interessante, mas falha ao se confrontar com as críticas mais devastadoras tecidas por Fisher em seu ensaio.
A obra de Fisher, portanto, pode ser inserido dentro daquilo que chamamos de pensamento “pós-liberal”, ainda que seja de uma vertente de esquerda mais radical. Mas, para além de livros, aqui a internet se mostrou um campo fértil para se estudar e disseminar linhas de pensamento mais heterodoxos, que não encontra espaço nos canais mainstream.
Publicações recentes como Unherd, American Affairs, Compact, The New Atlantis, IM-1776 e outras vieram para substituir as inanidades que eram regularmente publicadas em sites como Quillette e Areo Magazine; podcasts como Aufhebunga Bunga, Outsider Theory, The Bret Easton Ellis Podcast e Red Scare (do qual Adam Curtis é um convidado recorrente) exploram linhas semelhantes de pensamento. Não podia deixar de mencionar Substacks como Year Zero, de Wesley Yang; The Upheaval, de N.S. Lyons; Safety Propaganda, de Adam Lehrer; e Nina Power, que era colega de ninguém menos que Mark Fisher.
Mas, para além de Labatut, Curtis, Ernaux e Fisher, temos algumas outras manifestações culturais que tentaram dar conta desses tempos confusos e amorfos em que estamos inseridos.
XI.
Interessante que nos anos de 2020-2022 tivemos a explosão de uma subcultura bastante específica na Internet: a da liminaridade. Comunidades no Reddit, páginas de Instagram e centenas de vídeos no YouTube pipocaram nesses anos, todas elas determinadas a explorar e compartilhar imagens, histórias pessoais e contos que lidam com o tema. A principal delas foi a história das Backrooms, originada no site CreepyPasta.
O CreepyPasta é basicamente uma comunidade digital que agrega artistas e escritores amadores que compartilham imagens e contos de horror. No fundo, nada mais que é uma versão digitalizada da milenar arte de se sentar em volta de uma fogueira e contar histórias de assustar. Diversos fenômenos culturais recentes se originaram nesse site, como o monstro Slender Man, que se tornou um fenômeno midiático considerável. Primeiro, fotomontagens de parquinhos e outros locais frequentados por crianças, onde sempre podemos vislumbrar uma figura estranha ao fundo: um humanóide, alto, esticado, sem rosto, vestindo um terno. A partir destas fotomontagens, toda uma mitologia e história pregressa foi criada por diversos usuários. O “folclore” de Slender Man cresceu consideravelmente, sendo explorado em webséries - a brilhante Marble Hornets (2009-2014, 133 episódios) é o maior exemplo -, jogos de videogame, histórias em quadrinhos e dois longa-metragens (os dois péssimos). E, infelizmente, também inspirou um crime real, onde duas meninas conspiraram para assassinar uma terceira, com facadas. (sobre isso, recomendo o documentário Beware the Slenderman, 2016, de Irene Taylor Brodsky, disponível na HBO Max). As Backrooms fazem parte deste mesmo ambiente cultural, mas o horror é muito mais indireto que o de Slender Man: é a fotografia de uma sala vazia. As paredes são nuas, talvez com um papel de parede desgastado, amarelado. O carpete que cobre o chão é bege. A luz é artificial, fosforescente. E a qualidade da imagem em si remonta ao filme fotográfico usado em câmeras analógicas amadoras, dos anos 90. Somente a imagem foi postada, mas de repente, uma torrente de comentários e outras imagens semelhantes foram postadas seguindo a original. O público se engajou e começou a produzir uma infinidade de conteúdo adicional, criando uma verdadeira mitologia complexa elaborando sobre essa simples imagem de um “não-lugar”. É interessante, porque é como se ela tivesse despertado algo que pertencesse ao inconsciente coletivo de pessoas do mundo inteiro. E então, claro, veio a minissérie.
Postada pelo cineasta e criador digital Kane Pixels há pouco mais de um ano, The Backrooms (Found Footage) é um curta-metragem de horror de menos de dez minutos de duração. Desde seu lançamento, o curta soma mais de 43 milhões de visualizações no YouTube. Como o próprio título diz, trata-se de um curta found footage. Desde já adianto que não sou exatamente um grande entusiasta do gênero. Acho A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999, de Eduardo Sanchez e Daniel Myrick) brilhante, e gosto bastante de Cloverfield - Monstro (Cloverfield, 2007, de Matt Reeves) muito bom. Mas só. The Backrooms, assim como Marble Hornets, são os melhores exemplos do gênero (ao meu ver), após estes dois filmes que citei.
O filme começa em 1996, com um operador de câmera captando uma tomada de um curta-metragem estudantil. A cena envolve um rapaz mascarado, presumivelmente um assassino, atacando uma vítima insuspeita. O diretor corta, dá algumas instruções para a equipe. O cameraman (o protagonista) dá um passo para trás e… cai. Cai? Parece um tropeço. A imagem corta e segundos depois estamos dentro das Backrooms. O que aconteceu? Onde estamos? A confusão do operador de câmera é palpável. Ele começa a vasculhar o ambiente, um labirinto de salas e mais salas e corredores que se repetem quase que identicamente, sem fim. A luz é a mesma, a decoração é a mesma. Até que coisas estranhas quebram a monotonia e repetição. Sons estranhos à distância. Mensagens desesperadas rabiscadas em uma parede. E, por fim, uma criatura bizarra e indescritível que aparece e o persegue. O protagonista foge mais adentro da instalação, e novos ambientes ainda mais bizarros são revelados: uma infinidade de cidades e mais cidades (sem arquitetura definida) aparecem. A criatura continua no encalço e, num gesto de desespero, o protagonista pula em alçapão. A imagem nos mostra a câmera caindo do céu, como se tivesse sido atirada de um avião, rumo ao solo. Vemos a paisagem de uma cidade rapidamente se aproximando, até que a imagem corta e câmera cai num jardim. O filme acaba aí.
Trata-se de uma narrativa curta, simples e extremamente eficiente (e o mais surpreendente é que só a primeira e a última imagens são captações em live action, todo o restante é computação gráfica hiperrealista). Kane Pixels nos guia por um labirinto ao mesmo tempo surreal e impossível com extremo realismo e acuidade que somente o estilo found footage pode proporcionar. O horror não vem nem tanto da criatura, mas do ambiente em si: despersonalizado, impossível, a arquitetura ciclópica tão bem descrita por Lovecraft reimaginada como salas corporativas anódinas. Os sentimentos de desolação, vazio e despersonalização são absolutamente opressores. Kane continuou a fazer mais curtas (episódios) explorando outras facetas e mesmo a história pregressa das Backrooms. Há curtas muito impressionantes, como o segundo, Missing Persons (“Pessoas desaparecidas”), que mostra que mais pessoas pelo mundo inteiro simplesmente desapareceram como o protagonista do filme original. O desaparecimento se dá por aquilo que, no mundo dos games, se chama de “Noclip”. É um bug, uma falha que ocorre no mundo do game, e geralmente acontece quando o avatar do jogador entra em alguma área não renderizada do game. O efeito é o protagonista “cair” em um abismo indefinível, sem forma, ou então em partes do game que foram simplesmente abandonadas pelos desenvolvedores. O avatar dificilmente morre: pode ficar em queda-livre para sempre (como ocorre nos games da série Grand Theft Auto) ou ele adentra um labirinto sem forma e é incapaz de voltar. O assustador do projeto de Kane Pixels é que ele reimagina as Backrooms, e o Noclip, como sendo uma possibilidade de nosso mundo. Missing Persons, assim como os outros curtas da mesma série, mostram que desaparecimentos no mundo inteiro podem estar conectados às Backrooms, que existem em um “não-lugar” - uma realidade paralela, talvez, ou uma segunda realidade que, de alguma forma, se oculta sob a nossa.
E creio que isso seja especialmente assustador por que, afinal, desaparecimentos inexplicáveis e sem solução ocorrem no nosso mundo. Ainda que isso seja verdade desde sempre na história da humanidade (basta nos lembrarmos do bizarro caso da tripulação do navio Mary Celeste, em 1872, que desapareceu sem deixar vestígios), eles são particularmente perturbadores nos nossos dias atuais. Câmeras de vigilância, smartphones com localização, tecnologia forense de ponta… vivemos em um mundo de vigilância constante. É muito, mas muito difícil alguém simplesmente desaparecer sem deixar qualquer vestígio. E, no entanto, isso ocorre.
Pensemos no desaparecimento do irlandês Trevor Deely, em 8 de dezembro de 2000, que foi visto pela última vez voltando para casa depois de uma festa de Natal, em Dublin. Deely, um rapaz de 22 anos e com uma carreira promissora no mundo dos negócios, saiu de um bar onde festa de Natal da firma acontecia, em direção ao seu apartamento. Isso foi por volta das três da manhã de um dia de semana, e chovia e ventava muito na cidade. Para complicar, uma greve de táxi acontecia naquela semana. Antes de ir para casa, no entanto, Deely decide dar uma rápida passada no prédio da empresa. As câmeras captam o rapaz entrando no prédio. Lá, ele jogou conversa fora com o segurança e um colega, que trabalhava no turno da noite, tudo isso enquanto deixava notas para si mesmo de tarefas teria que resolver no dia seguinte. Deely sai do prédio e prossegue em seu trajeto de volta para casa. A última imagem de Trevor Deely é a da câmera de segurança de um caixa eletrônico: ela capta o jovem de 22 anos caminhando pela calçada encharcada, e enfrentando uma forte ventania. Depois que ele sai de quadro, nunca mais foi visto. Apesar de haver uma movimentação estranha por parte de certas pessoas de preto que estavam próximas a Trevor nesses movimentações da madrugada, a Garda irlandesa não encontrou nada suspeito. O apartamento de Trevor estava intocado, e não há sequer qualquer indício de crime. Lagos e rios próximos foram revistados, assim como campos e matas próximas. Essas investigações continuaram por mais 17 anos, e a Garda inclusive chegou a contatar a Interpol e outras organizações policiais internacionais para procurar por Trevor Deely em outros países, mas sempre voltavam de mãos vazias. O que aconteceu com Trevor?Não há nada, nenhum indício, nenhuma pista, por menor que seja, que indique qualquer coisa. O rapaz simplesmente desapareceu da face da Terra. E o mais enlouquecedor disso tudo é que a história de Trevor Deely, por mais estranha que seja, não é de todo incomum.
Consideremos, então, o caso de Brian Shaffer (março de 2006), estudante de medicina de Ohio, nos EUA. Shaffer estava em um happy hour com colegas, em um bar dentro de um shopping. Ele desaparece neste local, após ser visto entrando no bar - e há câmeras cobrindo todas as entradas e saídas do shopping. Mais uma vez, nenhum vestígio. Ou então consideremos o alemão Lars Mittank, que se tornou um fenômeno no YouTube. Mittank é visto entrando o aeroporto de Varna, na Bulgária. Mittank perde o voo e, durante a sua espera no aeroporto, seu comportamento fica cada vez mais errático e bizarro (tudo isso é captado pelas câmeras de segurança do local). De repente, Mittank sai correndo em disparada. Ele corre alucinadamente para fora da aeroporto, pelo estacionamento e ruas adjacentes, rumo a uma mata local. É a última vez que foi visto. O fato de que são acontecimentos inexplicáveis, desaparecimentos sem vestígios, sem indício algum de crime, e tudo captado por câmeras de vigilância, nos fazem nos perguntar se aquilo que Kane Pixels mostra em seus curtas não é de fato verdade.
[Imagem: a última vez em que Brian Shaffer foi visto]
[Imagem: o bizarro desaparecimento de Lars Mittank]
[Imagens: a última vez em que Trevor Deely foi visto, descendo um rua em direção à sua casa, após sair de uma festa]
Uma outra resposta é que essas pessoas desaparecidas simplesmente foram para a “Cidade”. Escrito por Ricardo Barreiro e ilustrado por Juan Giménez, e publicado em 2022 pela editora Comix Zone (com tradução de Jana Bianchi), o brilhante gibi Cidade (1982) é uma exploração sobre esse tipo bizarro de ocorrência. Jean é um jovem parisiense que vive uma vida comum, pacata e absolutamente anódina. Ele trabalha num bullshit job em um escritório qualquer e tem uma namorada. Após uma discussão entre os dois, Jean decide voltar para casa sozinho. Caminhando pelas ruas noturnas de Paris, e distraído em seus pensamentos, Jean percebe que adentrou uma parte da cidade que não conhecia. Não há luz solar, a noite é perpétua. E há diversos tipos bizarros, pessoas que se perderam naquela cidade dentro da cidade e não conseguem voltar atrás. A HQ assume tons de ficção especulativa, pós-apocalíptica e surreal, com Jean e sua companheira, Karen, tentando desesperadamente escapar.
Ao final, na última história do volume, Jean e Karen chegam até o centro da Cidade. Após se enfrentarem ameaças que mostram realidades bizarras que colapsam umas sobre as outras, enfrentando ameaças apocalípticas, monstros lovecraftnianos, dilúvios bíblicos e mesmo criaturas saídas diretamente de filmes e outros produtos cultura pop, o casal se depara com a última possibilidade de fuga: um elevador que, supostamente, leva os seus passageiros até a saída da Cidade. E, nesse último desafio, eles são guiados por ninguém menos que outro personagem célebre das HQs, o Eternauta. A possibilidade de que eles nada mais são do que vítimas que caíram em um pesadelo gnóstico é aventada por ele:
Qual é a realidade? Como posso ter certeza da minha existência? A cidade é um lugar fantástico. Talvez a interseção em um ponto infinito entre todos os contínuos de espaço-tempo da terra… Aqui nada é impossível. Não há lógica nem regras. Estamos no inferno e no paraíso. Ao mesmo tempo no Aleph de Borges e no Infundíbulo Cronosinclástico de Vonnegut. No todo e no nada… E se a cidade fosse um experimento fantástico conduzido por uma super-raça extraterrestre…? Ou se fosse apenas um delirante pesadelo coletivo? E se ninguém existisse de verdade? E se fôssemos só personagens de um livro? De um filme? Ou por que não… de uma história em quadrinhos…?
(Cidade, pág, 184)
Juan, Karen e os outros personagens que habitam essa cidade sem nome são denominados de “náufragos” - possível referencia à tripulação desaparecida do Mary Celeste. E não seriam Trevor Deely, Lars Mittank, Brian Shaffer, assim como os personagens de Backrooms, náufragos também?
Nesse sentido, Cidade é como penetrar na mente de Hiroo Onoda, o náufrago da História:
O passado era sempre descritível e mensurável, mas, para Onoda, sua memória deformara os acontecimentos, misturara-os por vezes de maneira confusa (…) Segundo Onoda, dores, a memória, em sua graça inerente, não admitia armazenar (do contrário, depois das dores do parto, as mulheres não iriam mais querer ter filhos). O futuro, afirma, era sempre como uma névoa a assumir novas formas, pairando impenetrável sobre uma paisagem desconhecida, mas também esta era por vezes reconhecível. O dia vai acabando. De manhã, o sol nasce. A estação das chuvas começa em cinco meses. E, então, vindo do nada, o inesperado: uma bala de fuzil, visível como um projétil traçante à luz do crepúsculo. Se você não desviar o corpo a tempo, ela vai atingi-lo no futuro. O ponto que a bala teria atingido, o plexo solar, não está mais aonde estava. A degradação de seu uniforme é inevitável, mas o inevitável pode ser modificado. Mancha após mancha, desaceleram-se a ruína, o desgaste, o apodrecimento. No fim, era ainda e sempre um uniforme.
(O crepúsculo do mundo, págs. 93-94)
No filme O show de Truman, há um momento em que Truman (Jim Carrey) começa a perceber que seu mundo é estranho. Não simplesmente estranho: ele é falso. As pessoas se comportam de forma ensaiada, como que dirigida num filme; o tempo todo seus passos parecem ser seguidos por alguém. Como que para testar a veracidade de suas observações, o próprio Truman começa a se comportar de forma errática, testando o limite de sua própria realidade. E, num determinado momento, ele consegue vislumbrar uma equipe de cenotécnicos que trabalham atrás de uma parede no lobby do edifício em que trabalha. A cena em si é rápida, mas ela mostra um ambiente de backstage. Essa fresta que se abre na realidade e revela esse outro mundo por trás é exatamente o que sentimos quando vemos os filmes de Kane Pixels, que revelam ele mesmo um “mundo de bastidor”, que existe sobreposto à nossa própria realidade; ou então Matrix, talvez o maior filme do “ciclo gnóstico” (o termo é do crítico, historiador e jornalista Jesse Walker) dos anos 90. Uma HQ como Cidade é uma perfeita antecessora de Matrix: os personagens caem por uma fresta na realidade e se deparam com um mundo que parece não só de mentira, mas cenográfico. A Cidade é interminável, parece conter a mistura de inúmeras épocas, passadas e do futuro, além de ter um sistema climático errático, que funciona como que pelos desígnios de alguém invisível. A Cidade é controlada por alguém ou ela é viva? Ou seria ela simplesmente um purgatório? Certamente há indícios que nos levam a supor que sim. Mas e se ela for, na verdade, a imaginação de alguém?
Como ela é estruturada em pequenos episódios, misturando uma variedade de gêneros, e até mesmo com a participação de personagens de outras HQs, romances, filmes e mesmo da mitologia clássica, a sensação que temos é que Jean e Karen caíram na mente de um criador - um criador gnóstico aos moldes de MAD GOD. O “momento gnóstico” pelo qual estamos passando pode ser indicativo que nem tudo vai bem no nosso mundo e na nossa cultura.
O que essas obras nos mostram é um mundo que, não obstante seja regido por complexas leis científicas, completamente secularizado e racionalista, e vigiado constantemente por pessoas e Inteligência Artificial, simplesmente não faz sentido? E isso tudo culmina no extraordinário documentário A Glitch In The Matrix (sem tradução no Brasil, 2021), de Rodney Ascher. Ascher é um dos documentaristas mais interessantes da atualidade, ainda que possua uma obra diminuta: O Labirinto de Kubrick (Room 237, 2012), que explora as bizarrices e teorias da conspiração que existem em torno do filme O Iluminado (The Shining, 1980) e que se torna, por sua vez, uma exploração da própria mente genial e labiríntica de Stanley Kubrick; e O Pesadelo - Paralisia do sono (The Nightmare, 2015), um documentário de horror e suspense que explora o bizarro fenômeno da paralisia do sono, e as perturbadoras alucinações que isso gera (e o filme reconstitui diversas delas).








[Imagens: cenas de “A Glitch In The Matrix”, de Rodney Ascher. Ascher estrutura o seu argumento tomando como base uma palestra de Philip K. Dick deu em Metz, na França, em 1977 - a mesma comentada por Benjamin Labatut em “A Pedra da Loucura”]
O leitor deve ter percebido que Ascher é um documentarista que explora fenômenos estranhos e bizarros (esse é adjetivo mais cabível à sua obra), e seu mais recente filme não é diferente. Ascher retoma a temática favorita de Philip K. Dick: e se nós vivêssemos em uma simulação? Seguindo o traçado dessa ideia de filmes recentes como Matrix (idem, 1999, das irmãs Wachowski) e O Show de Truman (The Truman Show, 1999, de Peter Weir) até a famosa “Alegoria da Caverna”, de Platão, Ascher no fundo está explorando os motivos que causam essa ideia do mundo falso surgir e ressurgir em diferentes momentos da história.
Uma das coisas mais interessantes dos filmes de Ascher é que ele não simplesmente expõe essas teorias, ele quer que nós também passemos a ver o mundo pelos olhos delas. Ao final de O Labirinto de Kubrick estamos tão paranóicos quanto aqueles que veem sinais e símbolos ocultos em toda a parte de O Iluminado; ao passo que, muitas das pessoas que assistiram O Pesadelo começaram elas mesmas a terem paralisia do sono, quando nunca antes tinham experienciado isso (não se preocupe leitor, isso não aconteceu comigo). O que Ascher faz neste filme é, primeiramente, expor tanto a teoria de Dick quanto a teoria de que vivemos em uma simulação através de uma combinação de material de arquivo, sequências animadas em CGI e depoimentos de um monte de gente que de fato acredita nessas coisas (e não, os depoimentos deles não são no formato “talking head”, mas sim como avatares de videogame); segundo, ele usa seu considerável repertório de cultura pop para justificar estes argumentos, citando uma torrente de filmes, livros e videogames. E é aí que o filme de fato ganha contornos perturbadores, pois o que há por trás da teoria da simulação é um profundo comportamento antissocial, onde o indivíduo se afasta cada vez mais da realidade. E crimes violentos, e mesmo suicídios, seguem disso.
Ao meu ver, no entanto, essas obras ensaiam na verdade aquilo que o crítico e historiador Jacques Barzun chama de “Arte como Redenção”: a forma como a arte gera um sentimento de maravilhamento e descoberta:
A experiência da grande arte perturba uma pessoa como uma profunda ansiedade pela outra, como uma quase fuga da morte, como uma longa anestesia de uma cirurgia: é um golpe forte do qual a pessoa se recupera lentamente e que a deixa mudada de maneiras que só gradualmente vêm à luz. Enquanto está acontecendo, os sinais físicos relatados de uma provação tão magnífica incluem suor, tremores, calafrios, uma sensação de ser penetrado, permeado e dominado por alguma força irresistível. Ficar emocionado (isto é, “perfurado”) seria a expressão adequada se não tivesse sido degradado pelo uso indevido.
(…)
Sua fonte, (ele sente) a obra de arte, tem validade e influência universais. O sujeito desse conhecimento - que não é mera informação - não tem limites precisos. Depois de passar por uma obra-prima, acreditamos saber mais sobre nós mesmos e sobre os outros, sobre este mundo ou o próximo. Por próximo mundo, quero dizer qualquer reino ideal ou abstrato que você escolher. O fato é que, no que diz respeito a quaisquer mundos ou criaturas, toda arte é “realista”; Quero dizer que testemunha a realidade percebida por outra pessoa. A arte o faz por sua própria intenção. Nenhum artista vai trabalhar dizendo para si mesmo: “O que estou fazendo é dar um relato falso, uma foto do inexistente, só para enganar as pessoas”. Todo artista, ao contrário, professa [estou citando E. M. Forster] “criar um mundo mais real e sólido do que a existência diária…, [um mundo] eterno e indestrutível”.
(The Use and Abuse of Art, Jacques Barzun. Págs. 74-75. Tradução minha)
“Criar um mundo mais real e sólido do que a existência diária…, [um mundo] eterno e indestrutível” - Forster, aqui, parece estar descrevendo a própria sensação de arrebatamento que temos não só quando nos confrontamos com uma obra de arte realmente arrebatadora, como poderíamos dizer que o sentimento se assemelha ao do sublime e do horror, segundo Edmund Burke. Um sentimento que indica que nos “conectamos” com algo maior do que nós mesmos, que vai além da nossa compreensão de realidade. A definição de Forster parece descrever, na verdade, a própria Cidade de Barreiro e Giménez, um lugar mais real e sólido do que a existência diária, e um lugar eterno e indestrutível.
Mas, quando fazemos essa conexão com Cidade, temos que necessariamente fazer com as outras obras que analisamos aqui. Não poderia ser esse lugar a própria Internet, o mundo simulado que Rodney Ascher descreve em seu documentário? Um mundo infinito, uma cacofonia de referências, textos, videos, imagens, fotografias e toda sorte de coisa, todo o conhecimento humano e muito mais que sequer conseguimos imaginar e colocar em palavras. Um mundo que é eterno, mesmo não sendo sólido (a não ser que a teoria do mundo simulado de fato seja verdadeira). Um mundo criado por alguém, um mundo ficcional que se diz real, que se acredita real, como toda obra de arte, seja ela uma pintura realista ou abstrata, um romance ou uma música. E é isso que Adam Curtis tem nos mostrado em seus filmes, tentativas, por parte de cientistas, políticos e ideólogos de criarem um mundo sólido e mais real que a existência diária. Curtis também documenta o fracasso destes homens e mulheres, que tentaram reorganizar o mundo com suas ideias tal qual ele fosse uma obra de arte. O filme HyperNormalisation toma emprestado a expressão cunhada pelo antropólogo russo Alexei Yurchak. Yurchak descrevia uma condição paradoxal de vida que os cidadãos da URSS tinham de aceitar ao longo dos anos 70 e 80: todos eles sabiam que o sistema não só era falho como estava colapsando gradualmente, mas também ninguém sabia ou tinha meios de imaginar um outro mundo possível, restando a eles - e aos políticos, cientistas e ideólogos - unicamente a capacidade de viverem suas vidas como se tudo estivesse bem e funcionando normalmente. Com o passar do tempo, passaram a acreditar na mentira, e esse processo de se acreditar em uma profecia autorrealizável que Yurchak denominou de “hipernormalização”. Curtis aplica o conceito ao nosso mundo moderno, capitalista, globalizado, democrático e liberal. Tecnologistas, cientistas políticos, mass media, jornalistas, comentaristas e toda uma classe de formadores de opinião passam a se comportar como os antigos sovietes, vivendo na hipernormalização pois são incapazes de imaginarem um mundo alternativo ao nosso presente gradualmente mais distópico e disfuncional. O triunfo estético de Curtis é sua habilidade de manipular e modelar uma torrente impressionante e infinita de material de arquivo e nos arrebatar com elas - somente para abrir uma fresta nessa cacofonia de sons e imagens, uma fresta aonde podemos vislumbrar os bastidores. Curtis quer nos mostrar que há outros mundos possíveis para além do nossos, só precisamos largar a mentira de nossos meios.
E como as grandes obras imprimem na mente uma realidade tão transcendente por meios materiais comuns - palavras, sons, cores e linhas - a arte parece dar prova de uma conexão fundamental entre a vida do homem e o Infinito.
(The Use and Abuse of Art, Jacques Barzun. Pág. 75. Tradução minha)
E conectar o homem ao Infinito parece ser exatamente a forma como Cidade (e O show de Truman, Matrix, MAD GOD e tantos outros filmes) acaba, não?
Não é possível saber a Cidade é real ou não. O tempo não faz sentido, a física não faz sentido. Ou, ao menos, não faz sentido para nós. Talvez ganhar consciência do que significa habitar a Cidade seja descobrir que nós somos mera figuras - ou personagens - imaginados por algum deus insano durante o seu sono, como vemos nas obras de Lord Dunsany ou Thomas Ligotti. Mas pode ser também que a Cidade seja, na verdade, a realidade em si, como ela é. Sem filtros, sem anteparos filosóficos ou psicológicos. Uma realidade - a primeira realidade - que só pode ser vista por náufragos, aqueles que “não pertencem”. Ela é como a selva de Lubang:
Ele era um sonâmbulo outrora ou estava sonhando o hoje, o agora? Muitas vezes, em Lubang, essa pergunta o intrigava. Não havia prova de que, quando estava acordado, estava de fato acordado, nem de que, quando sonhava, estava sonhando. O crepúsculo do mundo. Quando, por motivos misteriosos, as formigas param, elas movem as antenas. Têm sonhos proféticos. As cigarras gritam com o universo. No terror da noite, lá estava um cavalo de olhos incandescentes que fumava charutos. Um santo imprimiu uma marca profunda na rocha sobre a qual dormiu. Elefantes, à noite, sonham de pé. Os sonhos febris rolam a rocha da noite para o alto dos montes ardentes e raivosos. A floresta se curva e se estica como lagartas a peregrinar montanha acima e abaixo. A garça, encurralada, ataca apenas os olhos dos perseguidores. Um crocodilo devorou uma jovem nobre. Os mortos, de costas para o sol, deixam-se sepultar de pé. Três homens avançam a cavalo, a sela está vazia. A rede do adormecido apanha peixes. Quem caminha ao contrário também deveria falar ao contrário. Onoda, ao contrário, era Adono. O coração do beija-flor bate mil e duzentas vezes por minuto. Os índios silentes do Mato Grosso do Sul acreditam que o beija-flor vive duas vidas ao mesmo tempo. É somente no meio do gado no Mato Grosso que Onoda encontra alguma segurança. Seu coração bate no ritmo dos animais, sua respiração respira com eles. Então ele sabe que está onde está. A noite se foi, e cardumes de peixe não sabem nada.
(O crepúsculo do mundo, pág. 94)