O Labirinto
O Mal-Estar na Cultura PARTE I | Reflexões sobre a nossa cultura contemporânea
1.
Em sua resenha de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941, de Orson Welles), o escritor argentino Jorge Luís Borges o definiu como um labirinto sem centro. Perpassando múltiplos pontos de vista e depoimentos, sem contar a própria voz narrativa de Welles, o filme sobre o magnata das comunicações Charles Foster Kane nunca consegue elucidar de fato quem é Kane. O longa é estruturado sobre um mistério - o que significa Rosebud, a última palavra proferida pelo magnata antes de morrer - mas que, ao final, após a sua revelação, no fundo, nada nos diz. É possível resumir a vida de um homem a uma palavra? O mistério de Cidadão Kane é o mistério da natureza humana em si. Cada um dos personagens que aparecem no filme acreditam saber quem Kane de fato era, mas a narrativa de Welles é labirinto sem centro pois, quando chegamos ao final do trajeto, estamos tão confusos quando o começamos. E a metáfora do labirinto é apropriada para diversos filmes e séries que estrearam em 2022.
The Staircase (idem, minissérie), de Antonio Campos, foi a grande surpresa que tive neste ano. Já conhecia a mítica série documental de 2004, o clássico true crime do francês Jean-Xavier de Lestrade que inspirou produções subsequentes como Making a Murderer (2015/2018, de Laura Ricciardi e Moira Deimos) e tantas outras que tomaram os streamings nos últimos anos. A série - tanto a ficcional quanto a documental - abordam a morte misteriosa e suspeita de Kathleen Peterson. A suspeita recai em seu marido, Michael. Já vou dar um spoiler: não dá para sabermos de fato se Michael matou Kathleen ou não, e há evidências em igual medida que o condenam e o inocentam. Mas nenhuma das obras é sobre isso de fato.
O documentário de 2004 é ostensivamente focado no enlouquecedor sistema judiciário americano, mas se torna também um perfil sobre o controverso e enigmático Michael Peterson. Escritor, bissexual, ex-militar, envolvido com política, Peterson é um quebra-cabeça onde quase nenhuma das peças se encaixam. Com 13 episódios de uma hora cada, seria difícil imaginar como uma série ficcional poderia agregar algo a essa história que não foi coberto por Lestrade, mas Campos milagrosamente não só consegue fazer uma minissérie única e original, como também complementar ao documentário.
Creio que a grande sacada narrativa de Campos (que também dirigiu o magistral O Diabo de Cada Dia [The Devil All The Time, 2020]) foi a de incorporar os documentaristas como personagens de seu drama. Com isso, Campos transforma a sua série não é só mais uma trama true crime, mas sim uma interrogação sobre a natureza humana e sobre a verdade. Correção: a Verdade, com maiúscula. Não seria, afinal, a missão da Arte (sim, maiúscula), assim como a da Filosofia, a natureza da realidade? A Verdade que se oculta por trás das (falsas e efêmeras) aparências? O crime pode também ser um gesto criativo e artístico, e o crime como arte já foi por diversas vezes explorado por gente como Thomas Harris, David Fincher e até mesmo H.P. Lovecraft. Seja como for, The Staircase é nada menos que um diálogo com Cidadão Kane, e Michael Peterson é o vazio no centro desse labirinto. Campos utiliza a sua câmera, a forma da TV narrativa e episódica para interrogar, também, o uso da câmera como mecanismo para desvendamento da realidade.
O documentário de Lestrade é feito à maneira do cinema veritè, cujo maior expoente sem dúvida é o documentarista Robert Drew. O filme mais famoso de Drew é Crisis: Behind a Presidential Commitment (1963), que foi exibido na televisão americana à época. O diretor acompanha o gabinete do presidente John F. Kennedy ao longo de dois dias, seguindo-o para cima e para baixo pela Casa Branca e outros lugares. Kennedy e seu gabinete raramente notam a câmera de Drew (se é que notam - faz tempo desde que vi o filme). Drew dizia que sua câmera é como uma “mosca na parede”, um elemento ignorado, quase invisível, que está ali a observar a realidade imparcialmente - e sem ser notada. Mas esse é o “pulo do gato”: podemos até não dar bola, mas sabemos que a mosca está ali (e o que uma câmera portátil dos anos 60 é certamente maior do que uma mosca).
O que quero dizer é: os Kennedy estavam sendo eles mesmos no documentário ou eles estavam atuando? O debate em torno de Crisis, que perdura até hoje, e invariavelmente fica centrado na questão de sua autenticidade. Afinal: não estamos todos representando? Essa, na verdade, não é uma questão específica de Crise, mas do documentário em geral. Sabemos que estamos sendo filmados, sabemos que estamos sendo observados, ainda que não saibamos exatamente por quem. E onde que nós podemos ser nós mesmos? Como nos definharíamos verdadeiramente e, partindo do pressuposto (improvável) que tenhamos essa resposta, como nos comportaríamos para expressar essa verdade?
E é justamente essa questão que Lestrade por vezes se faz em sua minissérie documental, mas que é absolutamente central ao projeto de Campos. Dentre este labirinto de evidências forenses, depoimentos, testemunhos enviesados de familiares, filhos biológicos e adotivos, amantes secretos, romances de guerra e teorias bizarras que envolvem corujas, o que é Verdade? Inclusive é interessante ver o tema do labirinto e do desnorteamento ser incorporado por Campos na própria linguagem da série, com o uso de planos-sequências longos onde a câmera acompanha diversos personagens pela mansão dos Peterson, passando pelos seus corredores, cômodos, salas, etc. É por isso mesmo que solucionar a morte de Kathleen Peterson é secundário diante da verdadeira interrogação de Campos. Quanto a isso, vou deixar ao leitor que tire as suas conclusões.
II.
O Batman (The Batman, 2022), mais uma interpretação do super-herói da DC Comics, re-imagina o personagem criado por Bill Finger (tá, e por Bob Kane, droga!) à luz do cinema de David Fincher e dos suspenses paranóicos de Alan J. Pakula. Sendo antes de mais nada um drama noir, o filme de Reeves aborda um Batman/Bruce Wayne ainda no começo de sua carreira, um personagem perturbado e doentio, tomado pelo sentimento de vingança, e imerso em uma Gotham City infernal. Inspirado pela metrópole anônima de Se7en (idem, 1995, de David Fincher) e também pela Babel pós-moderna de Fritz Lang (Metrópolis, 1927), a Gotham City de Reeves é uma versão contemporânea de Sodoma e Gomorra, um antro de pecado, corrupção e desespero. A trama do filme lida justamente com o próprio mito de fundação de Gotham, uma narrativa labiríntica que leva quase três horas de duração por meio de mistérios, enigmas e charadas, somente para terminar em um atentado terrorista (que mistura os assassinatos políticos dos filmes de Paula dos anos 70 com o terrorismo da Al Qaeda no 11 de setembro) que é literalmente um dilúvio bíblico, uma enchente que irá lavar Gotham de seus elementos indesejados (o sonho de Travis Bickle, no clássico filme de Martin Scorsese e Paul Schrader).
O filme conclui com o Batman (Robert Pattinson) abandonando suas fantasias doentias de vingança e suicídio para emergir das ruínas como um verdadeiro herói preocupado com a justiça. Mas o pecado original de Gotham permanece: um conluio entre as elites econômicas (a família Wayne, os Arkham, etc) com o gangsterismo (a família Maroni, os Cobblepot, etc) gerou um mundo que em breve será regido por insanos: o Charada (Paul Dano) e os outros criminosos presos no Asilo Arkham - e o próprio Batman/Bruce Wayne. Sim, o filme de Reeves é só o primeiro capítulo de uma saga multimídia, mas ele já dá o tom do que foi o cinema e a televisão de 2022.
Se7en e Zodíaco (Zodiac, 2007) também lidam com o crime como arte, e o detetive como um crítico cultural que deve interpretar os elementos estéticos e simbólicos da obra/assassinato do assassino/artista para desvendar a Verdade que existe ali - isto é, a sua identidade. Em ambos os filmes, ficamos sem saber. Sim, leitor, eu sei: ao final de Se7en, sabemos que John Doe (Kevin Spacey) é o autor dos crimes. Mas o que isso quer dizer? Sequer podemos nomeá-lo (“John Doe” é o equivalente a “João Ninguém”). O Zodíaco permanece uma sombra, uma silhueta, o filme inteiro. Robert Graysmith, o cartunista (artista) que vira detetive amador se vê imerso em uma teia de códigos e cifras deixados pelo assassino por toda a Califórnia. A Califórnia de Fincher é a sua Babel, tal qual a Cidade de vidro (1985), de Paul Auster. A nossa Babel contemporânea, sugere Fincher (e Reeves), é uma onde até mesmo os nossos comportamentos mais íntimos passam a ser pré-determinados e vigiados por um código oculto (ou “texto sombra”, na terminologia de Shoshanna Zuboff), dos algoritmos e da “inteligência da máquina”. É a Metrópolis de Lang, a Gotham de Reeves, a Califórnia de Fincher e também A rede social (The Social Network, 2010), de Mark Zuckerberg. E, também, a paranóia de Angela Childs (Zoë Kravitz) em KIMI (idem, 2022, de Steven Soderbergh).
III.
Códigos cifrados, mistérios, assassinatos, moralidade, paranóia, e crime como arte: 2022 foi o ano em que a Era de Ouro do Mistério voltou à vida. É verdade que eu falo muito de noir aqui No Escuro, mas a origem do gênero policial se deu nas mãos de autores como Dorothy Sayers, Arthur Conan Doyle, Edgar Allan Poe, S.S. Van Dine (cujo detetive Philo Vance é, na verdade, um dândi e crítico de arte) e, claro, Agatha Christie. Em sua gigantesca maioria britânicas, essas histórias geralmente envolvem crimes cometidos em locais confinados (uma casa de campo, um hotel, um navio, etc) e cujos suspeitos pertencem a todo tipo de classe social e econômica. O detetive, geralmente um tipo excêntrico e brilhante, junta as provas e, depois, ao final, reúne todo o grupo de personagens (ou elenco) numa sala para revelar o culpado.
Esse tipo de trama geralmente vira mais um jogo, um exercício lúdico (e não é à toa que o jogo de tabuleiro Detetive seja inspirado nesse tipo de narrativa) do que uma peça literária em si. É o que acontece com as recentes - e medíocres - adaptações de Christie feitas por Kenneth Branagh, O assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 2018) e Morte no Nilo (Death on the Nile, 2021). Mas esse tipo de obra vira literatura - e cinema - quando transcende o mero aspecto lúdico e se torna uma investigação não sobre o crime e o criminoso (esse é o terreno do noir), mas sim sobre a sociedade. Ao se utilizar de um vasto elenco de personagens que são representantes de todo tipo de estrato social e econômico, um romance de mistério feito à moda da Era de Ouro se torna um exame sobre a moral da sociedade e seus costumes.
E é exatamente o que acontece em filmes como Veja como eles correm (See How They Run, de Tom George), Glass Onion (idem, de Rian Johnson) e O Menu (The Menu, de Mark Mylod). Todos os filmes contém elementos humorísticos, de sátira social e cultural. O primeiro, de Tom George, inclusive, lida diretamente com Agatha Christie e a adaptação teatral de uma de suas obras que, por sua vez, é inspirada num crime verídico. A peça, The Mousetrap (A Ratoeira), composta em 1952 por Christie, é um grande sucesso de público, e será adaptada para o cinema por um diretor bêbado e cínico (interpretado por Adrien Brody). O diretor é assassinado e passa a ser investigado por Stoppard (o sempre brilhante Sam Rockwell) e pela novata Stalker (Saoirse Ronan, com timing cômico impecável). O filme de George segue à risca as regras do mistério da Era de Ouro, mas o toque inovador dele é abordar, com cuidado e sofisticação, a nossa obsessão contemporânea por adaptações de crimes verídicos. Em uma época tomada por séries ficcionais e documentais sobre crimes bizarros, assassinatos em série e outras atrocidades, Tom George se pergunta até que ponto é correto fazermos esse tipo de coisa - e quais são os prazeres secretos que esse tipo de narrativa de fato atiça. Ecoando Hitchcock e sua janela indiscreta, George, assim como Antonio Campos, contrapõe a linguagem teatral, a literária e a cinematográfica para explorar o tema com a própria linguagem do cinematógrafo. O resultado é brilhante - e surpreendente, ainda mais quando levamos em conta o quão modesta é a produção de Veja como eles correm (o filme está disponível no Star+).
Mas outra obra que contém elementos dos mistérios de Agatha Christie é The White Lotus. A série satírica, concebida (e escrita e dirigida) por Mike White é nada menos que um milagre. A trama acompanha um grupo de personagens que vão passar férias em resorts paradisíacos, da rede White Lotus. A primeira temporada se passa no Havaí e a segunda, de 2022, por sua vez, se passa na Sicília. Pessoas ricas passando férias em locais paradisíacos. Quem diria que um conceito tão simples e anódino como esse poderia gerar a série mais bem acabada de 2022? Pois é.
A primeira temporada serviu para explorar assuntos de classes sociais e econômicas, e White faz nada menos que uma das mais ricas e provocadoras explorações sobre as tensões de classe que corroem a nossa sociedade por dentro. O que torna The White Lotus uma série transgressora e desafiadora é justamente o fato de que qualquer discussão sobre classe desapareceu - ou, melhor, foi reprimida - por um novo tipo de conflito, o identitário. Sim, querido leitor, é a terrível cultura Woke.
Só que, para White, ela não é tão terrível assim. Se utilizando da sátira social e do humor, ele desnuda essa ideologia pelo que ela é de fato é: etiqueta. Sim, isso mesmo: o identitarismo nada mais é que um novo conjunto de regras de etiqueta, desenhada (designed) especificamente para uma elite que se assume iluminada e progressista (quando são pessoas insensíveis, tolas, vãs e patéticas). Seria fácil detestar esses personagens, afinal: eles se julgam importantes, frequentam lugares deslumbrantes, tem acesso fácil à melhor comida e bebida e, ainda por cima, são bonitos e ricos. Assim como políticos e advogados, é realmente muito fácil odiá-los. White, no entanto, expressa simpatia mesmo pelos personagens mais toscos (sim, estou falando de você, Tanya [Jennifer Coolidge]). Ele quer entendê-los, não julgá-los. Ele quer criar empatia com eles - algo impensável dentro da visão de mundo identitária, profundamente narcisista. Se White julga, ele julga a sociedade que incentiva, se não produz, esse tipo de comportamento.
E o mais surpreendente é que o showrunner e diretor dobra a aposta na segunda temporada, que se tornou um dos maiores fenômenos de audiência de 2022. Ambas temporadas começam com um assassinato, um cadáver (ou mais), e esse é gancho inicial: quem morreu? Quem matou? E por quê? A partir desse momento, a narrativa retrocede em uma semana, onde acompanhamos o elenco de personagens chegando ao resort para a sua estadia. Se a primeira temporada abordava questões de classe e identidade, a segunda o faz, também, mas o foco é nas relações sexuais e íntimas entre homens e mulheres. O interessante é que, se na primeira temporada a morte misteriosa era pouco mais do que um gancho, na segunda temporada ela é uma sombra que paira sobre todos os personagens. E é interessante que Whike contraponha sexo com morte: a sátira social de The White Lotus passa a se tornar, no fundo, um drama existencial e metafísico.
White explora os labirintos do desejos carnais e sexuais, que se misturam ao desejo por status social e riqueza, e como a morte - a indesejada, afinal - paira sobre todos que estão envolvidos nesse jogo. The White Lotus pode até não ser uma adaptação de Agatha Christie, mas certamente é a sua mais verdadeira atualização. E essa atualização nada mais é, ao meu ver, pelo menos, que um encontro entre o mistério da Era de Ouro com o Noir: o desejo é Destino. Por mais que usemos modismos progressistas, teorias Woke, etiquetas politicamente corretas e tdo tipo de tecnologia social e sexual, nós não controlamos os nossos corpos e desejos. Estamos submetidos - loucamente - à vontade de um Destino invisível e muitas vezes cruel. Mas, também, muito engraçado e absurdo.
Isso é uma coisa que Rian Johnson poderia ter feito em The Glass Onion: A Knives Out Mystery. Continuação de seu filme de 2019, Entre Facas e Segredos (Knives Out), o longa de 2022 é uma nova aventura do detetive brilhante e excêntrico Benoit Blanc (Daniel Craig). Dessa vez, Blanc é misteriosamente convidado por um magnata da tecnologia, Miles Bron (Edward Norton, brilhante como sempre), para participar de um jogo de mistério concebido pelo próprio Bron, e que, no caso, consiste na solução de seu próprio assassinato. Confinados a uma ilha, como no clássico E não sobrou nenhum (1939, também conhecido pelo título de O caso dos dez negrinhos), de Agatha Christie, Blanc deve investigar os outros convidados, todos eles supostos amigos de Bron e, de alguma maneira, presos a ele, também.
Johnson é um diretor e roteirista de mão cheia, tendo realizado os melhores episódios de Breaking Bad (2013-2018), “Fly”, “Fifty-One” e “Ozymandias”, além de longas policiais inteligentes, como A ponta de um crime (Brick, 2005) e Looper - Assassinos do Futuro (Looper, 2012), que mistura drama policial Noir com ficção-científica e viagem no tempo. A trama de Glass Onion é repleta de reviravoltas, e flashbacks dentro de flashbacks, um tipo de recurso que, na mão de um diretor e roteirista menos talentoso, poderia descarrilhar facilmente. Ao mesmo tempo, o filme de 2022, assim como o seu antecessor de 2019, opera numa chave mais “hiperreal”, com personagens ligeiramente caricatos, e uma estética que por vezes o aproxima do desenho animado. A ilha de Bron é completamente ridícula e absurda, um passo acima da já fantasiosa mansão Harlan Thrombey (Christopher Plummer), do primeiro filme.
Eu suspeito que Johnson, no entanto, tenha sido uma das vítimas da famosa “Trump Derangement Síndrome”, com a presidência do Homem Laranja tendo afetado suas faculdades mentais. Star Wars Episódio VIII: O Último Jedi (Star Wars Episode VIII: The Last Jedi, 2017), não obstante seja um delírio visual e sonoro, perde-se em digressões tolas, maniqueísmo barato e personagens ridículos e patéticos que estão ali para marcar um posicionamento político tosco e vagabundo. O mesmo tipo de coisa afeta Entre Facas e Segredos, algo que pode ser constatado nos personagens Hugh Ransom Drysdale (Chris Evans) e Marta Cabrera (Ana de Armas), retratados respectivamente como o Mal absoluto e o Bem absoluto. Esse tipo de registro poderia dar certo, ainda mais quando levamos em conta que Johnson trabalha uma estética apropriadamente mais exagerada nestes filmes, mas ele perde toda a nuance que existe na luta de classes que era tão bem captada por Agatha Christie - e, claro, por Mike White, em The White Lotus. Johnson não consegue ver características redentoras em Hugh Drysdale, e não enxerga pecados e defeitos em Marta Cabrera. Se esses personagens funcionam dentro do filme, isso se dá pelo talento de seus intérpretes.
Passada a presidência do rufião laranja, no entanto, Johnson parece ter acalmado sua histeria, e The Glass Onion é um filme que, graças a Deus, não tem nenhum dos moralismos baratos do primeiro filme. Mas o que resta, também, não é grandes coisas. É um filme divertido e muito bem feito, como já assinalei (o elenco todo, em especial Janelle Monaé, está estupendo), mas que curiosamente não tem muito a dizer. Há diversas referências aqui e ali - a trama se inicia com um mistério que se oculta em uma caixa, uma referência não muito sutil às “mystery boxes” de J.J. Abrams (que dirigiu os Episódios VII e IX de Star Wars, e basicamente ignorou o filme de Johnson); o personagem de Norton aparece vestido exatamente como Frank T. J. Mackey (Tom Cruise), em Magnólia (idem, 1999, de Paul Thomas Anderson); e o próprio fato de que Bron é uma caricatura de Elon Musk e Steve Jobs. E é neste ponto que Johnson poderia ter abordado que estes gigantes da tecnologia, cujas invenções regem o nosso mundo contemporâneo, nada mais são que completos idiotas. E esse é o ponto: e se o nosso mundo fosse controlado não só por con men, vigaristas de quinta categoria, mas também por imbecis? Para um cineasta que se crê tão antenado às questões do dia (e que faz questão de deixar isso claro em todos os seus filmes), essa é uma questão que nunca é levantada em The Glass Onion. Por isso, fiquemos com Mike White, que é muito mais competente e sofisticado ao nos mostrar as nossas elites com muito mais crueza, nudez e sim, empatia, também.
Luís, esse parágrafo abaixo é um primor. Parabéns, ele contempla inúmeras percepções que também tive, mas não fui capaz de conseguir, da sua maneira brilhante, expressar.
White explora os labirintos do desejos carnais e sexuais, que se misturam ao desejo por status social e riqueza, e como a morte - a indesejada, afinal - paira sobre todos que estão envolvidos nesse jogo. The White Lotus pode até não ser uma adaptação de Agatha Christie, mas certamente é a sua mais verdadeira atualização. E essa atualização nada mais é, ao meu ver, pelo menos, que um encontro entre o mistério da Era de Ouro com o Noir: o desejo é Destino. Por mais que usemos modismos progressistas, teorias Woke, etiquetas politicamente corretas e tdo tipo de tecnologia social e sexual, nós não controlamos os nossos corpos e desejos. Estamos submetidos - loucamente - à vontade de um Destino invisível e muitas vezes cruel. Mas, também, muito engraçado e absurdo.
Poxa, muito obrigado, Leandro!