Orson Welles e Ed Wood entram num bar e...
Realismo, ou como fechar os olhos para a realidade - Uma reclamação | Parte VII
VII.
Eu estou sendo chato, como sói de ser, mas há um contra-argumento que pode ser feito: “se é para tomar liberdades com uma história verdadeira, não seria melhor inventar uma nova, apenas meramente inspirada em fatos reais?” É um argumento razoável. Ao invés de adaptar a história do assassino em série Zodíaco, que aterrorizou a Baía de São Francisco nos anos 60 e 70, Don Siegel e Clint Eastwood criaram o seu próprio assassino - Scorpio (Andrew Robinson) - que é executado por “Dirty” Harry Callahan (Eastwood) ao final de Perseguidor Implacável (Dirty Harry, 1971), ao passo que o verdadeiro Zodíaco nunca foi identificado, quando mais capturado. O filme de Siegel toma inúmeras liberdades, mas até aí, é uma história original. Os últimos filmes de Quentin Tarantino deliberadamente alteram a verdade histórica, criando verdadeiras realidades paralelas. Mas talvez o exemplo máximo e mais famoso seja o de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Orson Welles não biografou William Randolph Hearst - na verdade, ele criou um personagem novo, que combina características biográficas não só de Hearst, mas também de outros tycoons do período - e ainda colocou traços de sua própria personalidade. O mito de que Cidadão Kane é uma biografia pouco velada de Hearst é algo que perdurou, e o próprio magnata das comunicações comprou esse mito; prova disso é o fato de que incontáveis biógrafos de Hearst reclamem da falta de autenticidade do filme de Welles até hoje (um exemplo notável é David Nasaw, que escreveu a biografia definitiva de Hearst). O problema é que Welles quis deliberadamente criar um personagem único e novo, e não fazer uma biografia velada.
Ao fim, não há regra. Podemos ter filmes baseados em fatos reais que são factualmente precisos e que são muito bons, e filmes que se baseiam em fatos reais, tomam inúmeras liberdades, e que também são bons. Zodíaco (Zodiac, 2007), de David Fincher, pertence ao primeiro grupo, e é um dos melhores filmes dos anos 2010. Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, 2009) e Era uma vez… em Hollywood (Once Upon a Time… in Hollywood, 2019), ambos de Quentin Tarantino, mudam radicalmente os fatos históricos - e estão entre os dois melhores filmes do diretor. Curiosamente, Fincher e Tarantino (e outros diretores bem-sucedidos que pertencem a um dos dois grupos) se aproximam ao encontrarem um sentido narrativo em suas histórias. Zodíaco não é a história de um serial killer que matou umas pessoas nos anos 60 e nunca foi pego; é, na verdade, a história de uma obsessão pela elucidação de um crime, do descobrimento de uma verdade. Quem matou? E por quê? Em meio a uma tonelada de documentos, testemunhos e evidências, acompanhamos os investigadores se perderem em questões existenciais, sobre quem eles são, e não sobre quem é o Zodíaco. De igual maneira, os filmes de Tarantino distorcem a história para lançar uma compreensão do nazismo enquanto cultura, e sobre o sentido de vingança, justiça e impunidade (no caso de Bastardos Inglórios), ou então uma reflexão sobre o que poderia ser a última era de ouro de Hollywood, uma invenção tipicamente americana. Onde que o cinema se perdeu? Essa é uma das questões levantadas por Tarantino em seu filme de 2019.
Claro, estou simplificando a análise e a interpretação (minha) sobre estes três filmes, mas o que quero dizer é que Fincher e Tarantino, de maneiras radicalmente diferentes, fazem a mesma coisa: transformam fatos reais em histórias. Olham para fatos que ocorreram na realidade - acontecimentos, nada mais - e os ordenam esteticamente em uma narrativa. Ao fazerem isso, conferem sentido, amarram fatos banais ou insólitos (ou criminosos) em temas universais e transcendentes e, assim, transformam a História (sim, com “H” maiúsculo) em arte, algo eminentemente plástico e modelável.
Um exemplo que acho bastante pertinente é o de Ed Wood (idem, 1994), a cinebiografia do infame - e bizarro - cineasta dos anos 40 e 50, por vezes chamado de “o pior diretor de todos os tempos”. Tocada por Tim Burton, é provável que esta cinebiografia seja o seu melhor filme. Produção impecável, uma decupagem e fotografia inspiradas e ousadas (a sequência de créditos iniciais, por si só, é uma pequena-obra prima) e, principalmente, atuações memoráveis. Johnny Depp está impecável como Wood, assim como todo o elenco de apoio: Martin Landau como Bela Lugosi, Sarah Jessica Parker como Dolores Fuller e diversos outros nomes de peso compõe um casting de apoio impecavelmente desenhado. Mas, independente destes méritos - e o que realmente interessa para nossa discussão - são as liberdades que Burton toma com a história de Ed Wood.
Naquele momento, Wood já era um diretor, digamos, consagrado. Já haviam biografias em circulação, e seus filmes - em especial o infame Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 From Outer Space, 1959) - já eram dubiamente reconhecidos como péssimos (era o início da cultura do guilty pleasure). Sendo assim, os fatos da vida do diretor já eram de conhecimento geral. Burton, no entanto, toma diversas liberdades, e mesmo exagera aspectos da personalidade de Wood, enquanto diminui outras. Mas uma cena é sintomática, e explica em boa parte quais eram as suas intenções.
Em um determinado momento, Wood (Depp) entra em um bar esfumaçado e decadente. Lá, ele encontra somente outra pessoa, encurvada sobre sua bebida: Orson Welles (Vincent D’Onofrio). “O pior diretor de todos os tempos” se senta à mesa do “maior diretor de todos os tempos” e os dois têm uma conversa franca sobre o ofício.
ED WOOD: Você sabia que eu já tive produtores que querem remontar meus filmes?
ORSON WELLES: Odeio quando isso acontece.
ED WOOD: E eles sempre querem que eu escale seus amigos para o elenco. Nem se importam se são as pessoas certas para o papel.
ORSON WELLES: Nem me fale. Eu vou fazer um suspense para Universal. Eles querem Charlton Heston para o papel de um mexicano.
Boa parte da conversa alude a anedotas da vida real. Welles teve plena liberdade criativa em seu primeiro longa, Cidadão Kane, mas depois nunca mais conseguiu desfrutar dessa mesma liberdade. Seu segundo filme, Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942), foi famosamente remontado e refilmado sem a supervisão de Welles, e o material que filmou originalmente se perdeu (Welles, neste momento, estava pulando Carnaval no Brasil, e captando imagens para seu documentário É tudo verdade - que também nunca foi oficialmente lançado). Quanto a Heston no papel de um mexicano, Welles está aludindo ao filme que lançaria em 1957, A Marca da Maldade (Touch of Evil) - que, ironicamente, talvez esteja em pé de igualdade com Kane. Apesar dessa veracidade, Welles não se ressentia do fato de ter Heston como um mexicano (essa irrealidade faz parte da atmosfera surreal e barroca de A Marca da Maldade); e, além disso, tal encontro entre Wood e Welles nunca ocorreu. É provável que Welles sequer soubesse da existência de Wood, que sempre foi um cineasta marginal, operando nas margens do sistema.
No entanto, Burton cria uma cena completamente fictícia dentre de um filme baseado em fatos reais com um propósito temático. Não se trata simplesmente do contraste entre o “pior” e o “melhor” diretor de todos os tempos, mas sim um encontro que reflete sobre a própria condição existencial de dois diretores, de dois artistas. Os dois compartilham anedotas e frustrações, e apesar do oceano de talento que existam entre Wood e Welles, os dois estão unidos em sua busca de fazerem arte. De contarem histórias.
ORSON WELLES: Vale a pena lutar por uma visão. Por que passar a vida realizando os sonhos de outra pessoa?
À sua própria maneira, os dois são visionários. Os dois são autores cinematográficos, apesar da deficiência técnica de um e da alta proficiência do outro. Burton revela um paradoxo que existe dentro da teoria da política dos autores, desenvolvida pelos franceses nos anos 50 e importada para os Estados Unidos nos anos 60 por críticos como Andrew Sarris e Paul Schrader. No fundo, Burton remonta à filmografia de Welles, em especial Cidadão Kane, com seu biopic sobre Ed Wood. A questão fundamental do primeiro filme de Welles era: é possível resumir a vida de um homem a uma palavra? Quem foi Charles Foster Kane? E, em igual maneira, o que significa ser “o pior diretor de todos os tempos”? O que é ser diretor de um filme? O que é uma visão artística? E por que artistas sacrificam suas vidas por isso? É uma questão visceral, e o mero enumeramento de fatos reais, dados, anedotas e cronologia é incapaz de responder.
Por mais triunfal e espirituoso que seja o filme de Burton, ele e a publicidade que o acompanha dependem de outra inverdade: que Wood era um sonhador que nunca teve sua chance, um cinéfilo imparável que continuou fazendo filmes apesar das desvantagens da pobreza, da falta de talento e de indústria cruel, pouco apreciativa. Isto é um absurdo total: Wood não era apenas “sem talento” e não poderia ter feito um filme meramente ruim se tivesse o orçamento de Cleópatra para desperdiçar. Qualquer um que tenha prestado atenção a Glenda, Plano 9, A Noiva do Monstro, O Desejo Sinistro, Orgia dos Mortos, etc. (e até mesmo os filmes softcore roteirizados por Wood e dirigidos por outros tolos carregam a marca inconfundível do homem) podem perceber que há algo lá, algo mais do que inépcia, falta de recursos, alcoolismo e obsessão fetichista. O reconhecimento coletivo de Wood como um mártir de Hollywood desafia as evidências; não é como se ninguém reconhecesse uma gardênia podre quando a visse.
“Sinister Urges: The Legacy of Edward D. Wood Jr.”, de Michael Atkinson. In: Ghosts in the Machine: The Dark Heart of Pop Cinema. Págs 65-66. Tradução minha.
Burton faz essas deturpações históricas e factuais para tentar chegar ao cerne da psique de Wood. Como é impossível chegar a uma conclusão definitiva (como o próprio Welles sabia), Burton faz algo diferente - mais uma vez remontando a Welles - e busca a si mesmo em Wood. Para isso, ele modifica o sujeito real, que existiu historicamente, e busca ver em Wood e nos seus filmes uma resposta para si mesmo. O próprio Burton é um esquisitão, que gostos únicos e uma imaginação mórbida, sinistra e infantil, de contos de fadas. Ao contrário de Wood, Burton teve um sucesso extraordinário logo no início de sua carreira, disparando para o alto escalão de Hollywood antes mesmo de completar 30 anos de idade. Mas, ao buscar a si mesmo em Wood, ao tentar compreender seu fascínio pelos filmes bizarros que o sujeito dirigiu, Burton busca a si mesmo. Mutatis mutandis, Burton poderia muito bem ter sido um fracassado como o diretor de Glen ou Glenda. Há um centro de mistério, irrespondível nisso. E justamente por isso a cena com Orson Welles: no final do dia, independentemente de quem você seja, nunca comprometa a sua visão. Afinal, porque desperdiçar a sua vida fazendo o sonho de outras pessoas?
A discussão entre História e ficção é fascinante, e obviamente as duas nasceram interligadas, como sabemos pelas narrativas épicas e míticas de Homero e Heródoto, na Antigüidade. Mas, em algum momento, especificamente na Modernidade, as duas aparentemente se separaram de vez, e por vezes são antagônicas. Para não me estender excessivamente, e com o intuito de retomar o assunto sobre Zona de Interesse, acho fundamental recuperar um texto antigo, onde um historiador - perdão, um Historiador - recupera justamente a necessidade de se unir História com arte - ou Arte.
"Tocada por Tim Burton, é provável que esta cinebiografia seja o seu melhor filme"- certamente é meu favorito.