O Olhar de Górgona (4)
Sobre o filme “Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer | Parte III: Zona de Experiência
Sob a pele é, mais uma vez, de um filme de difícil classificação, ainda que possamos destacar que se trata uma história de ficção-científica com elementos de horror. O filme acompanha uma mulher, interpretada por Scarlett Johansson, que transita pelas ruas de Londres e outras cidadezinhas pequenas da Inglaterra em uma van. Ela aborda homens - nas ruas, ou os atrai para lugares ermos - com a promessa de sexo. O que ocorre é que estes homens são, na verdade, transportados para uma zona sombria, uma espécie de vácuo, onde submergem em um líquido até desaparecerem. A esses episódios, vemos outros também, como por exemplo um momento em que Johansson chega até uma praia, e observa um nadador tentar resgatar um casal que se afoga. Ela nada faz, somente observa, e percebe que o nadador não consegue salvar o casal. Ela se aproxima do homem exausto, na praia, e repetidamente bate a sua cabeça contra uma pedra - tudo isso enquanto o bebê do casal que se afogou está ali, chorando. Ela se afasta, sem ao menos registrar a presença do bebê. E, logo depois disso, vemos a chegada de um homem, numa moto, que está em seu encalço.
Descobrimos que Johansson, na verdade, é uma alienígena em forma humana. Ela interage com homens e desaparece com eles com algum fim misterioso, mas ao longo da sua jornada ela se gradualmente adquire interesse por aquilo que observa. Em um momento, por exemplo, ela atrai um homem bastante deformado para atacá-lo, mas desiste da violência, e contempla o seu próprio corpo, nu, após ver o corpo deformado do homem. Posteriormente, ela tenta comer um pedaço de bolo, somente para vomitá-lo logo na sequência. Ela inclusive manter uma relação sexual com um homem, sem violência.
O filme culmina em um episódio onde um homem tenta estuprá-la, e eventualmente ele rasga a sua “pele”, revelando a verdadeira aparência alienígena de Johansson: uma forma vaga, preta, sem definição, tal qual um manequim animado. Assustado, o seu estuprador derrama combustível na alienígena e ateia fogo nela, queimando-a viva.
Sob a pele é um filme muito mais abstrato e experimental. A narrativa é esparsa, quase não há diálogos, e a própria estética do filme parece estar entre o documental e o televisivo. Apesar da trama de ficção-científica e horror, não há nenhuma construção deliberada por parte de Glazer que remonte a efeitos visuais, trilha sonora de suspense, ou qualquer coisa do tipo.
Ao longo dos dez anos em que trabalhou no projeto com o roteirista Walter Campbell, Glazer modificou inúmeras vezes o projeto. Primeiramente, trata-se de uma adaptação do romance de estréia de Michel Faber, que acompanha uma alienígena, Isserley, que aborda homens e os transporta para sua nave espacial, onde eles serão mortos e preparados como alimentos para serem comercializados e consumidos - carne humana é uma preciosa iguaria para os extraterrestres. A trama lembra bastante o primeiro filme de Peter Jackson, Náusea Total (Bad Taste, 1987), mas Faber trata seu assunto com seriedade, e usa a premissa, que poderia ser de um filme trash, para explorar temas relacionados a sexualidade, gênero, mercantilização da vida e mesmo existencialismo. Glazer descartou quase tudo de sua adaptação, a ponto de que podemos dizer que seu filme é somente livremente inspirado na obra de Faber. O que Glazer faz, na verdade, é se usar de uma trama que é contada do ponto de vista da alienígena - Johansson - para examinar e testar seus cobaias, isto é, os seres humanos.
Glazer poderia ter feito um filme de grande orçamento - em um determinado momento, conseguiu financiamento para realizar um filme de mais de 50 milhões de dólares, repletos de efeitos visuais e elenco hollywoodiano -, descartando tudo isso para algo muito menor (o filme custou em torno de 13 milhões de dólares) e experimental. Glazer foi com câmeras escondidas acompanhando Johansson enquanto ela conduzia e dirigia a van. Em diversos momentos, Glazer dirigia sua atriz a abordar homens nas ruas. Pessoas comuns, não atores profissionais. Johansson deveria abordar estes homens solicitando sexo casual. Caso aceitassem, Glazer e seus produtores negociavam para que estes homens - de novo, incautos - aparecessem no filme.
Com uma linguagem distante, beirando programas de televisão de pegadinhas (como Jackass, por exemplo), o que percebemos é que Glazer está brincando e experimentando. Ele é como um cientista, que vai sozinho a campo observar à distância os seus assuntos. Ele literalmente aborda a perspectiva de um alienígena. Glazer - como a personagem de Johansson - é um outsider. Ele é alguém que está do lado de fora. A partir desta perspectiva, Glazer vai treinar a sua câmera para examinar esses encontros e as possibilidades que dele surgem. A descoberta do corpo, da sexualidade, de comportamentos humanos e relacionamentos são vistos à distância, um alienígena olhando esses curiosos seres bípedes. Não há afetação aqui, e por vezes nos lembra David Cronenberg, outro cineasta que empunha sua câmera como um médico empunha um bisturi. Há poucos closes, poucos recursos cinematográficos que forçam uma dramaticidade ensaiada de aparecer. Curiosamente, o método de Glazer remonta mais ao de outro escritor britânico de ficção-científica, Iain Banks, cujo romance de horror gótico Fábrica de vespas (1984, publicado aqui no Brasil pela Darkside Books, com tradução de Leandro Durazzo), acompanha o dia-a-dia de um adolescente psicopata. Escrita numa linguagem fria, distante e sem qualquer tipo de afetação, o romance foca nossa visão no seu personagem principal - que permanece um enigma. Uma sombra. Banks, que então era um veterano escritor de ficção-científica, dizia que um psicopata é como um alienígena, um estranho entre nós. Humano, mas diferente. Glazer parece ter a exata mesma perspectiva, não só sobre sua personagem principal, mas sobre todos os humanos.
Mais uma vez, é como Stanley Kubrick: Glazer está preocupado com os recônditos sombrios e misteriosos da natureza humana. Há aqui, claro, a recorrência de seus temas anteriores: isolamento, solidão, alienação. O ser alienado de si mesmo e dos outros, jogado em um universo onde ele existe quase como uma presença anômala. Johansson “não pertence”. Há uma casualidade, poderíamos dizer uma banalidade rotineira na forma como humanos se relacionam, seja sexualmente, seja amorosamente. Glazer (e a alienígena) observam o casal se afogando não como uma cena dramática de horror e tragédia, mas como uma curiosidade, quase como se estivéssemos vendo um documentário do National Geographic: “O homo sapiens é uma espécie profundamente social, e o instinto de preservação de vida transpõe os vínculos familiares, e sapiens de outros grupos familiares podem ajudar outros indivíduos quando estes necessitam de ajuda”. Boa parte da crítica especializada focalizou nos tópicos de sempre: Sob a pele é um filme que aborda as relações contemporâneas de gênero; é um filme feminista; é um filme que denuncia a cultura do estupro e o machismo estrutural; a ladainha de sempre. No entanto, Glazer não aborda esses assuntos de uma perspectiva engajada ou contemporânea. Como falei, seu método foi o mais espontâneo possível, depreendendo ações e cenas dando liberdade aos seus atores (e poucos eram atores profissionais, lembremos).
Não é à toa que a verdadeira forma de Johansson seja a de uma figura vaga, escura, sem forma ou características. Comparei ela a pouco a um manequim, porque é exatamente isso: ela é um molde. E aqui temos a conclusão perturbadora: seríamos nós tão diferentes assim? Se nossa pele pudesse ser arrancada, o que aparecer por baixo dela seria tão diferente assim do que vemos na personagem de Johansson? Afinal, o que Glazer (e Kubrick antes dele) parecem estar constantemente constatando é que o ser humano é uma criatura cuja vida interior é algo de difícil definição e representação. O coração humano é com certeza um caçador solitário, e a caçada, aqui, pode ser por algo maior e transcendental. Se nós formos tal qual um molde, quem fez o molde? E o molde foi feito a partir de qual original? Somos feitos à imagem de quem? E por quê? Com qual fim?
O homem que persegue Johansson constantemente ao longo do filme é seu parceiro alienígena (nos é sugerido isso, pelo menos). São como Adão e Eva, que foram expulsos do Paraíso mas aterrissaram em uma Terra já habitada. Uma terra desolada, decadente. Ao final, o parceiro masculino de Johansson contempla sua companheira sendo reduzida a cinzas, que voam pelo céu branco, enquanto ele mesmo vaga, perdido, por uma paisagem montanhosa coberta de neve. Com a câmera distante, e contemplando a paisagem, o homem é como um personagem das pinturas de Caspar David Friedrich, um ser solitário contemplando a majestade da paisagem natural.
Com isso, temos, mais uma vez, os contrastes recorrentes de Glazer. Scarlett Johansson é uma atriz hollywoodiana e sex symbol, inserida em um filme onde ela contracena com não-atores, pessoas comuns que escapam completamente do padrão de beleza de Hollywood (e o homem deformado é o exemplo máximo disso). É a bela mulher que solicita sexo, conduzindo um veículo utilitário, e não um homem. É um filme de ficção-científica filmado como um programa de televisão. É um filme que fala sobre a natureza humana imersa num contexto urbano, pós-industrial, um mundo enferrujado e habitado por sombras e rastros de vida humana. Os contrastes de Sob a pele se metamorfoseiam em paradoxos, seguindo uma lógica existencial e mesmo mística aos moldes blakeanos:
A Crueldade tem Coração Humano,
E o Ciúme tem Humana Imagem;
O Terror, o Divino Aspecto Humano,
E o Segredo, a Humana Roupagem.
A Roupagem Humana em Ferro é forjada,
O Aspecto Humano é uma Forja irada,
A Imagem Humana é Fornalha selada’
O Coração Humano é sua Boca esfomeada.
“Uma Imagem Divina”, Canções da Experiência, de William Blake. Tradução de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho.
Blake é um dos maiores expoentes do Romantismo inglês, e sua obra, clássica na literatura inglesa, é parte do currículo fundamental do Reino Unido. Mas Blake era um católico místico assombrado por visões apocalípticas, e sua principal preocupação era, justamente, na dualidade da natureza humana, que representava, segundo ele, o “matrimônio entre o Céu e o Inferno”. Esse choque paradoxal de contrastes se acirra pela própria complementaridade desses estados extremos da condição humana, e Sob a pele parece ser uma obra atravessada pela imaginação blakeana desta temível simetria:
Quando, no céu, estrelas baixaram
Suas lanças, e então choraram;
Ele sorriu ao que inventou?
Quem criou o Cordeiro te criou?
Tygre, Tygre, em fogo ardendo
Nas florestas, noite adentro;
Que olho, ou mão imortal ousaria
Forjar temível simetria?
“O Tygre”, Canções da Experiência, de William Blake. Tradução de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho.
O Tygre é um poema de Canções da Experiência que se contrasta diretamente com O Cordeiro, de Canções da Inocência. Com essa técnica de espelhamento, Blake reflete sobre os dois estados da natureza humana: o Cordeiro representa a bondade, a inocência, a capacidade para construir; o Tygre, por outro lado, representa o exato oposto: o Mal, a capacidade para a destruição. O mistério da Criação é representado na própria forma com que Blake escreve “Tigre”, isto é, com um “y”, chamando a atenção para o caráter estranho, quase alienígena desta criatura e do potencial destrutivo dela. Mas o mistério, afinal, é: Quem criou o Cordeiro criou o Tygre? E por quê? Com qual fim? Blake remete ao Criador pelas suas mãos e olhos (e estes órgãos são qualificados como imortais) - a mão modela, mas o olho vê.
Sob a pele, como falei, é um filme inteiramente feito ao molde do documentário e do programa de televisão. Apesar de ser um filme de ficção, o seu método toma muito mais emprestado dos métodos jornalísticos que vemos nos documentário, digamos, da Storyville da BBC do que do cinema narrativo tradicional. Glazer faz isso por que, com sua câmera, ele quer que nós vejamos. Nós somos observadores, testemunhas. Mas do quê, exatamente?
Continua na Parte IV.