I.
Tem certas coisas que desafiam qualquer explicação. Uma coisa que meus pais nunca entenderam, por exemplo, é a minha obsessão por horror. Desde criança, sempre fui fascinado por monstros, é verdade (muitas crianças são, vide a popularidade de fantasias, festas de Halloween ou Dia das Bruxas, pegadinhas com sustos etc), mas eu ia um tanto além: eu ativamente ia atrás de filmes e livros de horror. Meus pais não entendiam porque eles nunca gostaram de horror, tampouco meu irmão, salvo um ou outro exemplo aqui e ali (é de bom gosto apreciar O Exorcista, de William Friedkin, afinal, ou mesmo Tubarão, de Spielberg). Eles não só não gostam do gênero, como ativamente o evitam. “Será que há algo de errado com o Luis?”; “Como alguém pode achar que uma porcaria como O massacre da serra elétrica é uma obra de arte?”. E as coisas pioram: aos oito anos de idade, por acidente, eu entrei no quarto dos meus pais enquanto eles assistiam Psicose, de Hitchcock (minha mãe sempre gostou de suspenses psicológicos, como os filmes de Hitchcock ou mesmo O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme; meu pai, ao contrário, os detesta). Entrei no quarto bem quando a mocinha é retalhada no chuveiro, aquele sangue maldito escorrendo pelo ralo da banheira. Nem preciso dizer o quanto aquilo me aterrorizou, os malditos acordes da trilha sonora de Bernard Herrmann ficaram na minha cabeça por meses. Minha mãe, coitada, tinha de ficar no banheiro enquanto eu tomava banho, pois eu simplesmente me recusava a entrar no chuveiro sem saber que tinha alguém mantendo vigília do lado de fora. Minha mãe me disse que esse pavor durou alguns meses inclusive. Era um inferno na vida deles. E, no entanto, inexplicavelmente, lá estava eu, pouco tempo depois, caçando filmes de horror para assistir.
Freddy Krueger, Jason Vorhees, Pinhead e os Cenobitas, Candyman, Michael Myers, Leatherface, Alien, Predador, Ghostface. Esses foram os monstros que marcaram minha pré-adolescência, e parte da minha adolescência. Nunca tive muito medo desses vilões, e muitas vezes que reconhecia que estes filmes eram meio toscos, se não mal-feitos. Mas algo neles me fascinava, e não era necessariamente a violência. Aliás, até a ascensão do gênero torture porn, com filmes como Jogos Mortais, O Albergue e Centopéia Humana, a verdade é que filmes de horror mainstream não eram graficamente violentos. Suspeito que filmes de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Sam Peckinpah e Quentin Tarantino eram mais sanguinolentos que boa parte das fitas estreladas pelas criações de John Carpenter, Wes Craven, Ridley Scott e Clive Barker - ao menos no cinema.
(Posteriormente fui entender que isso se deu por conta da polêmica dos video nasties, mais uma entre tantas censuras que o cinema mainstream de horror sofreu ao longo de sua história. Neste caso em específico, com a ascensão do home video, censores se voltaram para o emergente mercado de locadoras, e passaram a exigir cortes nas cenas de nudez e violência mirando os filmes de horror em especial; assim, franquias como Sexta-Feira 13, A hora do pesadelo e Halloween, para citarmos algumas, viram suas continuações serem radicalmente higienizadas. Há um ótimo filme sobre isso - Censor, 2021, de Prano Bailey-Bond, que trata ficcionalmente de como o horror atua numa mente… censora e moralista).
Eu sempre consumi horror, mas diria que ele se tornou uma obsessão para mim quando eu tinha 12 anos de idade. Me lembro especificamente de buscar incessantemente por uma cópia de O massacre da serra elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, 1973, de Tobe Hooper) - obra fundamental do horror contemporâneo - sem obter sucesso. Quando saiu o remake de 2003, produzido por Michael Bay e Brad Fuller, o original voltou a circular, numa cópia bem ruim em DVD. Mas, enfim, eu consegui ver o filme. De todo jeito, pode parecer estranho descobrir horror aos 12 anos, mas na verdade é algo bastante comum. Carol J. Clover, em seu livro seminal sobre o cinema de horror norte-americano dos anos 80, Men, Women and Chainsaws (1992, revisto e expandido em 2015), compreende que muitos pré-adolescentes gravitam em torno do horror cinematográfico como uma forma de rito de passagem. Ir ao cinema escondido (obviamente, 12 anos não cumpre os requerimentos de classificação etária da maioria desses filmes) e ser submetido a algo que fundamentalmente trata de medo, violência e morte - e também, claro, sexo - é algo sem dúvida presente na vida de um adolescente. Esse, inclusive, é o elemento revolucionário da análise de Carol Clover, e uma que se tornou canônica.
A autora se foca no cinema slasher, isso é, os filmes das franquias Halloween (cujo monstro é Michael Myers), Sexta-Feira 13 (Jason Vorhees), O massacre da serra elétrica (Leatherface e seu clã de canibais), A hora do pesadelo (Freddy Krueger) e diversos outros filmes e subgêneros, como o Rape and Revenge (Estupro e Vingança). O enfoque de Clover é justamente nas complicadas relações de gênero, e como eles se relacionam com sexo e violência. Um clichê, por exemplo, é afirmar que filmes como Sexta-Feira 13 são “reacionários” e “conservadores” pois as vítimas de Jason Vorhees são, essencialmente, adolescentes que fazem sexo pré-marital. A sobrevivente - em 90% dos casos - é uma jovem adolescente, que se mantém virgem (quem cunhou a expressão “Final Girl” para designar as heroínas desses filmes foi Carol Clover, por sinal). No entanto, Clover percebe que, apesar das personagens femininas serem o foco desses filmes, o recorte de gênero do público apela igualmente a homens e mulheres. Homens se projetam nas personagens femininas, ao mesmo tempo em que mulheres se projetam nos poucos heróis masculinos. Mais do que fantasias reacionárias de repressão sexual e castigos, esses filmes, na verdade, articulam sentimentos de sexo e violência, vida e morte, que apelam a adolescentes, ou seja, indivíduos que estão passagem da infância para a vida adulta. Os monstros assassinos desses filmes são quase sempre homens (podemos excluir a mãe de Jason Vorhees, Pamela, dessa equação). Mas são homens que andam mascarados (a máscara branca sem forma de Michael Myers; a máscara de hockey de Jason Vorhees; a máscara de couro humano de Leatherface; a face desfigurada e derretida de Freddy Krueger etc), e homens que possuem dimensão físicas quase caricaturais. Além disso, quase sempre empunham facas, machetes, cutelos, motosserras… extensões fálicas que eles usam para perfurar corpos jovens e macios e cheios de hormônios. O sexo, aqui, se torna um aviso. Sim, você pode fazer sexo pré-marital. Mas cuidado. Ele pode - e muitas vezes vai - te machucar. A mensagem vale tanto para mulheres quanto para homens. A iniciação na vida adulta passa necessariamente por um contato com dor. Sempre vemos nesses filmes homens adolescentes que, por serem meio esquisitos e estranhos, não conseguem se conectar com as lindas mulheres ao seu redor, e suas mortes podem significar uma incapacidade de superar suas frustrações sexuais. De igual maneira, muitas vezes a Final Girl quase se conecta com um homem, e podem até entrar em preliminares - somente para descobrirem que seus parceiros masculinos são canalhas venais. No caso de Sidney Prescott em Pânico (Scream, 1996), seu namorado se revela como o verdadeiro assassino literalmente após os dois consumarem sua primeira relação sexual. Assim, tais filmes não contém uma agenda ideológica conservadora - muitos deles foram condenados por políticos de direita e autoridades religiosas, inclusive, sendo constantemente associados à pornografia - mas sim um elemento antropológico antigo, remoto. O universo moral desses filmes, que não obstante se passam nos nossos dias, é “arcaico”: você só chegará à idade adulta como um humano razoavelmente bem ajustado se sobreviver ao violento ritual de passagem na sua adolescência.
E isso não se restringe somente a slashers, claro: boa parte dos romances de horror de Stephen King são protagonizados por crianças e adolescentes precisamente por esse mesmo motivo: Carrie, a estranha (1974); O iluminado (1977); A incendiária (1980); It: a Coisa (1986) e diversos outros, como o recente O Instituto (2019), Later (2021) e o extraordinário Joyland (2013). Doutor Sono (2013), a continuação de O iluminado, é interessante pois retoma o garotinho Danny, sobrevivente dos horrores e abusos de seu pai, Jack Torrance, que vive uma existência pacata como enfermeiro em um asilo, e usa seus poderes sobrenaturais para ajudar os idosos a “passarem” deste mundo para o outro. Descobrimos que os horrores que Danny passou em sua infância o tornaram um adolescente desajustado, e um adulto alcoólatra e viciado em drogas. King nos mostra como os fantasmas e medos não resolvidos de sua infância - ou seja, um rito de passagem que não foi concluído de forma satisfatória - transformaram Danny em adulto destrutivo e auto-destrutivo. Carol Clover em sua análise, portanto, detectou algo que intuitivamente espectadores e autores de horror sabem desde sempre, mas que foi ocultado pelo ruído dos discursos ideológicos. Inclusive, o fato desses filmes não só terem múltiplas continuações, mas também remakes, e serem todos parecidos entre si, não atenta contra a qualidade desses filmes e seus propósitos; pelo contrário, só confirma a sua própria natureza ritualística. Neles, não temos personagens, mas sim arquétipos, e a própria estrutura rígida deles se assemelha mais a uma jornada do herói do que a uma trama realista. A jornada do herói, nesses casos, é invariavelmente a Catábase, isso é, a jornada que é uma descida ao submundo, ao mundo dos mortos, ao inferno, e em quem o herói se transforma quando ele eventualmente retorna para o mundo dos vivos, da superfície.
A outra coisa que Carol J. Clover nota muito bem é que o horror, não obstante seja um gênero popular e comercialmente muito bem-sucedido (basta ver que, no cinema, gêneros como o musical e o faroeste, outrora extremamente populares, praticamente desapareceram, ao passo que horror continua, desde os clássicos mudos do Expressionismo alemão até os dias de hoje, grosso modo), não é exatamente um gênero mainstream. Não é de bom tom afirmar em público que você é fã de horror, e que considera O massacre da serra elétrica um clássico da sétima arte, ou se dedicar o humor macabro de Sexta-Feira 13 Parte VI: Jason Vive. Certa vez, quando expliquei a um colega “não-iniciado” por que considerava Thomas Ligotti um dos maiores escritores vivos de nosso tempo, a resposta que recebi foi um olhar desconfiado: “talvez seja melhor eu manter o 190 pré-discado em meu celular; o Luis não é uma pessoa normal). Sim, quem gosta de horror é, na pior das hipóteses, uma demente perturbado; na melhor delas, é alguém que “está passando por uma fase”. Esse, inclusive, é um aspecto social e cultural do consumo do horror que é enfatizado por diversos críticos e analistas: Noël Carroll, Andrew Tudor, Reynold Humphries e Carol J. Clover - sem contar o próprio Stephen King, em seu tratado de não-ficção sobre o gênero, Dança Macabra (1981) - comentam como o horror, não obstante seja um gênero popular e reconhecível, é essencialmente marginalizado e menosprezado pelo mainstream.
Esse é um aspecto importante do gênero, em sua constituição, tanto no cinema quanto na literatura (e em qualquer outra forma de expressão artística). No cinema, por exemplo, é comum falarmos da Nova Hollywood, por exemplo, aquele movimento de renovação do cinema dos Estados Unidos, que foi marcado pela ascensão de cineastas como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, George Lucas, Robert Altman, Brian De Palma, William Friedkin e Steven Spielberg. É verdade que alguns desses cineastas mexeram com horror, mas em obras pontuais. O Exorcista (The Exorcist, 1973), de Friedkin, por exemplo, é um clássico blockbuster do gênero, mas eu pelo menos vejo ele menos como um grande filme de horror do que um grande filme de William Friedkin; o mesmo pode ser dito de Tubarão (Jaws, 1975), de Steven Spielberg. Qualquer livro de história do cinema ou de crítica voltada a estes filmes vai ignorar solenemente outra revolução e renovação que ocorria no cinema no mesmo período. No caso, “a Nova Hollywood do horror”.
A expressão é minha, e não é boa nem apropriada. Mas, aqui, me refiro aos filmes de George Romero, Wes Craven, Tobe Hooper, John Carpenter, Larry Cohen e outros. Romero, em 1968, lança A noite dos mortos-vivos (Night of the Living Dead), marco inicial desse período de renovação. Tobe Hooper, em 1973, lança o seu O massacre da serra elétrica, e Carpenter, em 1978, lança Halloween. Romero e Hooper montaram “Hollywoods paralelas” - Romero em Pittsburgh, Hooper no Texas. Craven e Carpenter trabalhavam na Califórnia, mas fora do sistema de grandes estúdios e distribuidoras. Larry Cohen transitava entre as costas Oeste e Leste, sempre trabalhando no cinema independente. Quando estes cineastas fizeram a transição para o mainstream, quase sempre se deram mal, não conseguindo se adaptar às demandas do “sistema”. Assim, o que ocorreu foi, essencialmente, a criação de uma indústria paralela. Festivais de cinema, produtoras e distribuidoras especializadas em horror; assim como convenções, revistas, fãs-clube e outras associações devotadas a este consumo.
Ainda que seja verdade que diversos gêneros - e mesmo filmes específicos - também gerem seus próprios mercados e ecossistemas paralelos, como a fantasia e a ficção-científica, ou mesmo o policial/mistério, esses gêneros são consideravelmente mais mainstream e aceitos pelo “sistema” do que o horror. É quase como se horror fosse o irmão inconveniente, o tio esquisito e de passado obscuro que aparece nas festas de fim de ano. Nós até o toleramos, mas em doses homeopáticas. O horror, assim, é um em si um gênero fantasmagórico. Ele paira, translúcido, sobre o mainstream. Sabemos que ele está lá, mas não queremos encará-lo de frente.
Outra descoberta que tive por volta dessa idade foi com o horror clássico na literatura. Meus pais compraram para mim um volume que reunia Frankenstein, o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, Drácula, de Bram Stoker, e O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. O volume, publicado pela editora Ediouro, ainda continha uma introdução de Stephen King (em si retirada de outro livro seu, Dança macabra, um ensaio de não-ficção sobre o horror nos meios de comunicação). Nessa época, me lembro de ter detestado Frankenstein, mas gostei muito de Drácula e, principalmente, de O médico e o monstro. A novela de Stevenson é um primor de concisão, e ele consegue compactar a elaborada e horrível tragédia do Dr. Henry Jekyll em um livro que é melhor fruído se for lido de uma sentada só. Mas eu gostei muito de Drácula, principalmente pela sua forma misteriosa e epistolar. Eu pessoalmente conhecia o vampiro pelo filme de Francis Ford Coppola e o clássico de 1931, dirigido por Tod Browning e estrelado por Bela Lugosi. Agora, não obstante essas duas adaptações sejam excelentes, o livro ainda assim possui uma forma única. É um relato fragmentado e multifacetado dos eventos horríveis que transcorrem, e os episódios com Lucy Westenra e a viagem horrível de Drácula no navio Demeter são pontos altos não só do romance, mas de toda literatura de horror. Frankenstein, no entanto, foi difícil. Achei o livro empolado, pretensioso (sim, um garoto de 12 anos dizendo isso sobre Frankenstein… realmente, Nelson Rodrigues tem razão: “O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência”).
Com o tempo, essas opiniões mudaram. Faz anos que não releio Drácula (algo que pretendo fazer em breve), mas sem dúvida minha opinião sobre Frankenstein mudou radicalmente. Anos depois, quando já estava na faculdade, reli esse omnibus da Ediouro. E, mais velho, foi como ler o livro pela primeira vez. De repente, passagens “filosóficas”, que anteriormente julgava serem enfadonhas e pretensiosas, tornaram-se fascinantes, brilhantes elucubrações sobre a ciência na modernidade. É impressionante como Mary Shelley, então com apenas 17 anos, tenha escrito uma obra que não só arrepiante, mas também de fôlego intelectual considerável. Frankenstein é um livro que não envelhece e não morre, um desnudamento da hubris humana diante do mundo. Essa segunda leitura do livro me levaram inclusive a pesquisar a fundo o Romantismo, como as obras de Percy Bysshe Shelley e Lord Byron - continuando leituras anteriores de William Blake. Mas voltarei a ele.
Quanto à novela de Stevenson, por anos alimentei uma visão sobre ela que era parecida com a de Arthur Machen. Machen era um grande admirador de Stevenson, e inclusive muitos de seus primeiros contos (inclusive o célebre O grande deus Pã) foram compostos seguindo um estilo distintamente stevensoniano. No entanto, Machen certa vez escreveu, em sua autobiografia Far off things (1922) que, após uma primeira leitura, O médico e o monstro perde muito de sua força. Não há mais surpresa ao final. Minha opinião era parecida: a leitura e a técnica de Stevenson eram admiráveis, mas o livrinho, estruturado como uma narrativa de mistério com uma revelação chocante ao final. Mas isso mudou quando adquiri uma coletânea de Robert Louis Stevenson que fora organizada por Davi Arrigucci, Jr e publicada pela editora Cosac & Naify, pouco antes de sua derrocada. O livro continha uma série de novelas, contos e, claro, a história do estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Mas o volume também continha um primoroso ensaio de Vladimir Nabokov sobre a novela. A leitura detalhada e precisa de Nabokov ilumina diversas passagens da história - passagens essas que só podem ser plenamente compreendidas em segundas e terceiras leituras. Só numa primeira vista podemos interpretar Jekyll como sendo a bondade absoluta, e Hyde sua pura maldade. Na verdade, desde o primeiro parágrafo, proferido por Utterance, podemos compreender que não só Jekyll é um hipócrita, mas todos aqueles de seu círculo social e classe econômica são hipócritas perversos que escondem seus desejos escuros e sombrios por trás da fachada de cavalheirismo da Inglaterra vitoriana. Hyde é a conclusão lógica de Jekyll, e não uma personalidade que forçosamente emerge por conta de uma poção. Faz todo sentido que Nabokov tenha feito essa leitura tão perspicaz, e sinto que dizer que não só eu estava errado, mas Machen também.
Ainda aos 12 de anos de idade, a leitura desse volume me abriu as portas ao horror clássico, digamos assim, na literatura. Era meu primeiro contato com a literatura gótica, e a introdução de King me levou não só à sua própria obra (o primeiro livro que li dele foi Misery: Louca Obsessão, seguido de Carrie e Cujo - sendo que este último é, ao meu ver, o seu melhor de horror). Mas também adquiri nesta época um pequeno volume com histórias de Edgar Allan Poe, traduzidas e adaptadas por Clarice Lispector. Poe até hoje é uma das maiores obsessões.
Nenhum conto seu é particularmente assustador, mas a sua imaginação e a sua linguagem são extraordinárias. Ler Poe é adentrar em um mundo de perversidade, loucura, tragédia mas, também, melancolia. Há descrições extraordinárias de beleza, mas não qualquer beleza: uma faded beauty, algo fugaz, “piscou e perdeu”. Ele faz isso puramente pela força de sua linguagem, e boa parte de suas melhores histórias poderiam ser facilmente classificadas como poemas em prosa. Ler Poe, portanto, é como adentrar em um mundo que é o limiar entre o estar desperto e as profundezas do inconsciente. Praticamente todo ano eu releio alguns contos e poemas de Poe, isso quando não releio toda sua obra ficcional (sua obra jornalística é um prazer à parte). Toda vez que faço isso, novos detalhes e insights emergem de suas obras, não obstante eu a conheça de trás para frente.
Paralelamente a isso, por conta do lançamento do filme A Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen, 2003, de Stephen Norrington), eu pude ler pela primeira vez a graphic novel de Alan Moore e Kevin O’Neill. E essa HQ, que se passa em um universo ficcional onde todos os personagens da literatura vitoriana convivem juntos, eu fui levado a descobrir diversos outros autores, principalmente Oscar Wilde e H.G. Wells.
(Antes, um adendo. Eu já lia bastante ficção de horror, é verdade, mas eu lia muitas histórias de detetive e de mistério. Quando era pré-adolescente, eu tive de fazer um longo tratamento dental e bucal, o que significava muitas idas ao dentista e muitos procedimentos que me colocavam de cama por dias. Invariavelmente levava edições de bolso da L&PM Pocket dos livros de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e muita Agatha Christie (uma das escritoras favoritas de minha mãe, diga-se). Li todas as histórias de Holmes, e mais da metade da obra de Christie neste período. Hoje, não é o meu tipo favorito de ficção policial e de mistério: prefiro a escola americana de hard boiled.)
H.G. Wells foi minha Gateway drug para a ficção-científica. Ele me levou a explorar George Orwell, Aldous Huxley, Philip K. Dick… mas, naquele momento, e até hoje, na verdade, eu sempre coloquei as obras de Wells junto com as de Stoker, Stevenson e Shelley. É verdade que o objetivo de Wells é gerar medo, mas é inegável também que muitos de seus romances tenham passagens de horror absoluto, como em A ilha do Dr. Moreau, O homem invisível e Guerra dos Mundos. E, nessa mesma linha, como vimos, nem sempre os objetivos de Shelley e Stevenson é gerar medo pura e simplesmente. Shelley faz uma profunda exploração sobre os rumos da ciência e da tecnologia na aurora da era moderna, e Stevenson muitas vezes se usa do horror e da violência para explorar a hipocrisia e a perversidade que se ocultam por trás dos menores gestos e ações de uma cultura cavalheiresca e aristocrática. Sim, não dá para classificarmos Wells como um ficcionista de horror, mas me parece também um tanto reducionista a etiqueta de ficção-científica. Me parece que o correto é agrupar todos esses autores sob a rubrica de “gótico”.
Essas leituras formaram a espinha dorsal de minha formação particular pelos rumos e caminhos do horror. É verdade que leria muito Stephen King e Clive Barker nos anos seguintes, mas ainda não tinha encontrado o meu “nicho”, digamos assim, no gênero. Essa formação pelo gótico, com leituras complementares de histórias policiais e de mistério, assim como uma montanha de filmes (slashers, em sua grande medida), foram essenciais para os próximos passos que daria. Aos 20-21 anos, faria uma nova investida no gênero, descobrindo novos autores, conceitos e mesmo também todo um ramo da crítica cinematográfica e literária voltada para o gênero horror, sobrenatural e de ficção-científica. Mas isso fica para a próxima parte.
Adoro textos escritos com apuro.
Sensacional, Luis. Desta coletânea do Stevenson pela Cosac&Naify, os contos Markheim e o Demônio da Garrafa (acho que é esse o nome) são das coisas mais excelentes que eu já li em literatura. Bom saber que aprecias. Estou em boa companhia.