PARTE I
I.
No dia 8 de julho de 2021 o youtuber “Dr. Rip VHS” subiu um vídeo bastante curioso - e perturbador. Entitulado "JERRY HILL 199M NY 252958" VHS, e com apenas oito minutos e cinquenta e um segundos, o vídeo passou meses no site com poucas visualizações: oitenta e duas, para ser mais preciso. Mas, gradualmente, à medida que usuários foram levantando hipóteses sobre o vídeo, um retrato ainda mais bizarro começou a se desenhar.
Antes de mais nada, uma rápida introdução sobre Dr. Rip. Se trata de um youtuber norte-americano que percorre mercados de pulgas, “família vende tudo” e lojas de departamento como a Goodwill (uma franquia varejista que vende objetos doados a granel), comprando gigantescos acervos de fitas VHS. Rip faz uma curadoria sobre esse material, e aqueles que julga interessante, ele sobe em sua página do YouTube. E o acervo é rico e diverso: filmes corporativos de instruções para funcionários; um vídeo de instrução para uma máquina de café espresso; um workshop ensinando técnicas de massagem japonesas; desenhos animados cristãos; curtas-metragens; um vídeo que instrui usuários a praticarem a auto-hipnose; um documentário sobre o naufrágio do RMS Titanic narrado por Orson Welles; vídeos caseiros produzidos por famílias; e reportagens que relembram o aniversário de um ano dos ataques terroristas do 11 de setembro. Segundo Dr. Rip, a missão de seu canal é recuperar e expor vídeos e mídia antigas, obscuras, que teriam se perdido para o tempo. Há muito mais em seu canal, passando inclusive por telefilmes obscuros e perdidos estrelados por celebridades hollywoodianas. Confesso que não é exatamente meu tipo preferido de conteúdo, mas de fato é um material muito interessante, senão fascinante, uma espécie de museu do vídeo amador, semi-amador e profissional. Apesar de não ser necessariamente um grande admirador de videoarte, o acervo de Dr. Rip é uma mina de ouro. Mas, de todo jeito, é justamente esse acervo rico e diverso - e inofensivo - que tornam o vídeo em questão, "JERRY HILL 199M NY 252958" VHS, tão desconcertante.
Foto do Youtuber “Dr. Rip” mostrando a fita VHS que encontrou numa loja de produtos de segunda mão e doações.
O título do vídeo vem da etiqueta colada ao VHS que Dr. Rip encontrou. Nela, o nome “JERRY HILL” está escrito à mão, ao passo que “199M NY 252958” é uma impressão de computador. O vídeo não possui som. As partes mais perturbadoras do material estão espalhadas ao longo dessa duração. O material foi gravado na fita sobre uma outra gravação, no caso, a de um programa chamado “Camera Intrigante” (que me parece ser uma espécie de “Vídeo Cassetada” latino, talvez mexicano). Vou resumir um pouco da minutagem, para deixar mais claro o que vemos.
> 21 segundos: a imagem corta para uma tela preta. No centro, na parte inferior do enquadramento, entra a legenda “GOOD BOY!”;
> 25 segundos: o texto “GOOD BOY!” permanece, mas agora entra a imagem. Uma parede branca, e uma mesa ou tampo de apoio, com uma manta com camuflagem militar que a recobre. Sobre ela, temos três fitas VHS. Há um recorte de jornal apoiado sobre a terceira fita. A pessoa que opera a câmera percorre os objetos, dando zoom-in e out, mas não é fácil ler o que está escrito na reportagem;
> 38 segundos: o operador da câmera enfim consegue focalizar o texto do recorte de jornal. A manchete lê “MAN CHARGED WITH SPRAYING IRRITANT IN DISNEYLAND”. Não é possível ler o corpo da reportagem, ou ao menos determinar qual é o jornal. De todo jeito, essa reportagem, somada à legenda que o produtor do vídeo colocou, podemos supor claramente que é um endosso a esse tipo de ataque;
A matéria em questão é uma reportagem do jornal The Orange County Register, datada de 01 de abril de 1995. Nela, lemos que um homem chamado Andrew Stephen Marshall deliberadamente dispersou uma substância tóxica que resultou na contaminação de trinta e três pessoas.
> 59 segundos: a imagem corta para outro enquadramento. Se trata do mesmo local, e da mesma mesa revestida com o tecido camuflado. Mas, agora, temos uma porção de fotografias antigas dispostas de maneira ordenada sobre o tampo. Fotos e retratos de pessoas, em grande parte, e parecem ter sido tiradas no século XIX. O estranho, agora, é que o texto da legenda do vídeo muda para “DEAD GUEST”. O operador de câmera passeia pelas fotografias, até retornar ao enquadramento original;
> 2min01seg: a imagem novamente corta para a tela preta. A legenda muda para “NERVE GAS”;
> 2min26seg: mesma tela preta. A legenda muda para “MADE EASY!”, completando a sentença, portanto, temos “NERVE GAS MADE EASY!”;
> 2min32seg: a imagem volta para o mesmo ambiente, a parede branca e a mesa. Mas, agora, temos uma série de instrumentos dispostos sobre o tampo com camuflagem. Garrafas, líquidos, cubas de metal para refrigeração e armazenamento. No canto esquerdo da mesa, temos também um relógio e um calendário.
> 2min55seg: a mão do operador de câmera entra em quadro. Ele veste um grosso agasalho de lã e usa uma luva descartável branca. Impossível determinar o gênero e a cor de pele do operador de câmera. Ele pega o funil e derrama um líquido transparente sobre uma travessa de plástico;
> 3min42seg: na sequência, o operador abre a cuba de metal. Com uma pinça metálica, ele retira um vidro de dentro. O vidro contém um líquido semitransparente, e o operador conserva esses recipientes refrigerados dentro da cuba;
> 4min52seg: o operador focaliza o calendário e relógio. A data marcada é 14 de abril, 1995, e o horário, por sua vez, indica 21hrs;
> 4min56seg: tão logo o calendário se torna legível, a imagem mais uma vez corta para tela preta, e a legenda “DEAD GUEST” reaparece;
O vídeo prossegue, com mais tomadas de instrumentos de laboratório e produtos químicos.
> 5min26seg: a câmera enquadra o freezer de uma geladeira. O operador, agora trajando um agasalho esportivo azul (me parece ser da marca Adidas), e novamente com luva branca descartável, mostra uma série de objetos que estão embalados em papel alumínio.
> 5min57seg: a imagem corta abruptamente para uma rua. É dia, e o operador de câmera parece estar na beira de um estacionamento, pouco antes da calçada. Ele não enquadra nada em particular. Do outro lado da rua, é possível ver uma fila de carros, aguardando o semáforo, do que parece ser um cruzamento. Novamente, temos a legenda “DEAD GUEST” embaixo.
> 6min09seg: a imagem corta para a tela preta. Disso, voltamos para algumas imagens do programa “Camera Intrigante”. O restante da fita é uma tela azul.
Caso não tenha ficado claro, o autor (ou autores) do vídeo estão ameaçando atacarem a Disneylândia com gás nervoso. Gases nervosos - como o sarin, por exemplo - são considerados armas de destruição em massa.
II.
A primeira pergunta que devemos nos fazer é: este vídeo é real? E, caso ele seja, como diabos ele foi parar nas mãos de um youtuber? E, assim, a única pista é a própria etiqueta que veio no vídeo.
A designação “199M NY 252958” segue o estilo de catalogação de documentos do FBI. O Complexo Central de Arquivos do FBI é um prédio maciço que fica localizado próximo à sede da agência policial, na Virgínia. Um cidadão pode acessar os arquivos do FBI de algumas formas diferentes. O primeiro é via o “cofre” (vault), e o segundo, via um requerimento FOIA (Freedom of Information Act). Como eu não sou cidadão americano, eu não posso entrar com esse pedido, e posso somente acessar os documentos que estão disponíveis ao público via o cofre do FBI. Nele, encontramos uma porção de documentos que já estão disponíveis ao público. Vão de informações sobre crimes violentos, máfia, contraterrorismo, 11 de setembro, enfim, uma porção de temas e assuntos. Nele, podemos visualizar documentos escaneados e outros arquivos que foram relevantes a investigações conduzidas pelo FBI. Mas elas podem ser educativas.
Neste documento, por exemplo, que é uma ficha de relatório do FBI sobre o serial killer John Wayne Gacy. O arquivo é designado um código de dois dígitos, seguido por um de quatro. Esse código se repete no cabeçalho das páginas, assim como uma designação sobre o escritório do FBI (Field Office) que elaborou o documento. Esse tipo de catalogação se repete em quase todos os documentos do FBI. Neste, por exemplo, sobre o ativista anti-guerra Abbie Hoffmann, temos o mesmo padrão.




No entanto, temos três números, seguido por uma sequência de seis números. Também temos “NY”, designando qual escritório do FBI que conduziu a investigação e elaborou o documento. Esse código é parecido com o que temos no caso da fita VHS encontrada por Dr.Rip. Resta, agora, saber o que os números significam.
Os primeiros números (199), no caso, designam o número de classificação do FBI no Sistema de Registros Centrais do FBI sob o qual a investigação ou arquivo foi aberto (logo mais eu explico o que é o “M”);
O código do escritório (Field Office) que indica de onde o arquivo foi originado ou produzido. “NY”, no caso, indica que foi o escritório de Nova York que conduziu a investigação;
Por fim, o último código, que varia de três a seis números, é um código específico do arquivo, designando a ofensa que foi investigada pelo escritório em questão. Ou seja: é o código de identificação específico do documento.
De acordo com o Manual de Arquivos do FBI, o código “199” designa “Contra-inteligência estrangeira - Terrorismo”. De acordo com o FBI,
Esta classificação foi estabelecida para sua investigação de atividades terroristas nos Estados Unidos, principalmente atentados, sequestros e importação de armas e explosivos por grupos terroristas suspeitos. Os arquivos detalham os métodos do FBI no desenvolvimento de fontes de inteligência e informantes, suas modernas técnicas de vigilância eletrônica e suas relações de trabalho próximas com a polícia estrangeira e organizações de inteligência. Ele tem como alvo principalmente cidadãos estrangeiros para atenção, incluindo comunistas, grupos do Oriente Médio, o Exército Republicano Irlandês e militantes negros.
A fita VHS, portanto, concerne uma investigação que o FBI conduziu sobre terrorismo e contrainteligência. O “M” foi um pouco mais difícil de encontrar, mas ele é uma classificação temporária. O “M” designa organizações, grupos ou indivíduos que ainda não foram classificados pelo FBI. Ou seja, quando essa fita foi registrada pelo escritório de Nova York do FBI, o grupo que eles investigavam era recente, novo, a ponto de ainda não ter sido mapeado pelo sistema da agência federal.
Ao que tudo indica, a fita não só é real, mas é uma evidência, um documento que pertence (ou pertencia) ao FBI.
O youtuber Dr.Rip, nos comentários do vídeo, explica que ele adquiriu a fita numa loja Goodwill em Portland, Oregon:
Encontrei esta fita em uma Goodwill Outlet em Portland, Oregon. A fita tinha apenas uma etiqueta na lombada com a parte dos números impressa (junto com o subtítulo "CÓPIA VHS DO SEGMENTO PERTINENTE"). O nome JERRY está escrito com caneta permanente de um lado, e HILL do outro.
Ele continua, no comentário abaixo:
E agora que estou pensando mais sobre isso, e como acabou em Portland, pode ter havido alguma conexão com um dos caras do caso se mudando para cá. Lembro-me de algumas outras coisas da polícia na mesma caixa que pareciam um monte de coisas que foram doadas, talvez depois que ele faleceu.
Quando pesquisamos o nome “Jerry Hill”, em associação a FBI e anos 1980/1990, encontramos algumas reportagens sobre um “Agente Especial Jerry Hill”, que atuou em Nevada no final dos anos 90. A última reportagem que encontrei sobre o agente Jerry Hill é uma matéria da Associated Press. Escrita por Peter Zuckerman, jornalista premiado, a matéria cita que Jerry Hill é um agente do escritório de Portland, Oregon, do FBI. Não consegui encontrar mais informações sobre Jerry Hill. Não sei se ele está vivo ou morto. Se estiver vivo, é provável que esteja aposentado já há alguns anos, mas não sei se ele se aposentou em Oregon. No entanto, se cruzarmos essas informações com as que Dr. Rip providenciou em seu comentário, chegamos à conclusão que esta fita, ao invés de estar arquivada no sistema de registros do FBI, estava na posse de Jerry Hill, e de alguma maneira ela foi parar num cesto de doações de uma loja da Goodwill, para ser encontrada pelo youtuber Dr. Rip.
III.
Chizuo Matsumoto nasceu no dia 2 de março de 1955. Era o quarto filho de uma família extensa e muito pobre de fabricantes tatames, na prefeitura de Kumamoto, localizada na ilha mais ao sul de Kyushu, no Japão. Matsumoto sofreu de glaucoma infantil desde o seu nascimento, ficando cego do olho esquerdo e mantendo apenas 30% de visão em seu olho direito. Incapaz de ajudar a família no negócio de confecção de tatames por conta de sua debilidade, Matsumoto foi colocado em um internato para crianças cegas. Ao que se sabe, Matsumoto nunca mais morou com os pais, e sequer manteve contato com eles ou sua família.
Na escola para crianças com deficiência visual, Matsumoto logo se tornou uma figura de destaque entre as outras crianças. Isso se dava por ser o único aluno que tinham visão parcial - confirmando, assim, o velho adágio de que, em terra de cego, o homem de um olho só é rei. O infante Matsumoto logo começou a lucrar com sua vantagem. Ele ia até a cidade comprar doces para as crianças - mediante pagamento, claro -, mas também passou a extorquir outros alunos, quando não agredi-los, e até mesmo ameaçá-los de morte. Apesar de poucos relatos, tudo indica que ele era, por falta de termo melhor, um bully. Um valentão. De todo jeito, Matsumoto não só descobriu como lucrar com suas habilidades, mas também - no que seria uma constante em sua vida - a ser amado e idolatrado por alguns, e odiado e temido por outros.
[Matsumoto] parecia se deliciar em atormentar os outros meninos dando ordens conflitantes a eles, lembrou um colega de classe citado no livro de Egawa.
“Seus colegas de quarto diziam que era um inferno”, disse o colega de classe. “Ele estava sempre usando as pessoas. Uma vez, depois de um assalto perto da escola, Chizuo ordenou que outros meninos ficassem acordados e guardassem o quarto enquanto ele dormia. Além disso, ele ficava mudando o que dizia. Ele dizia para alguém não fazer uma certa coisa e então imediatamente se virava e ordenava que ele fizesse. Como as pessoas tinham medo, elas obedeciam, e então ele ficava bravo, dizendo: ‘Por que você fez algo que eu disse para você não fazer?’ ”
Os dormitórios tinham uma regra de luzes apagadas à noite, mas [Matsumoto] ordenava que seus colegas de quarto a ignorassem, escreveu Egawa. Isso acontecia com tanta frequência que a mãe do dormitório tentava impedir, mas [Matsumoto] gritava de volta: “Vou colocar fogo neste dormitório!”
Um professor, citado anonimamente (…), relembrou o que aconteceu depois:
“Quando um orientador educacional tentou fazer algo a respeito, [Matsumoto] disse: ‘Tudo o que eu fiz foi dizer que colocaria fogo. Foram só palavras. Não há nada para você ficar chateado.’ E você sabe o que mais ele diria? ‘Vou atirar em você até a morte!’ Depois de dizer isso, ele diria: ‘Contanto que eu não atire em você, não é contra a lei. Posso dizer o que eu quiser.’ Quando ele falava assim, os professores ficavam surpresos e diziam: ‘É assustador. O que vai acontecer no futuro?’ Lembro bem que havia conversas assim.”
Mas o professor disse que [Matsumoto] também tinha outro lado, uma habilidade de estender a mão e dar ouvidos a garotos impopulares rejeitados por seus colegas de classe. O professor acrescentou que [Matsumoto] concorreu repetidamente, sem sucesso, à presidência do conselho estudantil, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio.
“No ensino médio, ele implorou em lágrimas para ser nomeado presidente do conselho estudantil, mas perdeu novamente”, disse o professor. “Quando ele perdeu, ele ficou terrivelmente deprimido e disse aos seus colegas de classe: ‘Por que eu perco?’ Uma das meninas disse: ‘Você demonstra preocupação com as pessoas às vezes, mas todo mundo tem medo de você.’ ”
Fonte: https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1995-03-27-mn-47649-story.html
Na adolescência, suas fantasias de poder se tornariam mais megalomaníacas e elaboradas. Além de se imaginar reinando o Japão como um futuro primeiro ministro, Matsumoto também se imaginava como líder de um exército de robôs, que ele usaria para marchar sobre o resto do mundo, submetendo todas as nações ao seu controle.
Tudo isso pode parecer muito ridículo e exagerado, ou talvez meras fantasias de poder de um adolescente que já nasceu com uma série de desvantagens. O destino de Matsumoto era, afinal, perder. No entanto, professores que o acompanharam ao longo dos anos notaram duas coisas: primeiro, que ele era extremamente inteligente e, segundo, dono de uma oratória extraordinária. Nasceu com um dom extraordinário de manipulação e persuasão.
Matsumoto se graduou da escola em 1973, e se candidatou para a faculdade de Ciência Política, na Universidade de Tóquio. Rejeitado, Matsumoto passou a estudar acupuntura e técnicas de medicina e farmacologia tradicionais chinesas. A carreira como acupunturista não iria longe: há relatos de que ele feriu alguns de seus clientes, aplicando erroneamente técnicas que ele deveria ter dominado. Sua licença foi cassada, e ele teve de mudar rapidamente de negócio. Casado, e com uma família que só crescia (Matsumoto teria doze filhos, e logo sustentaria uma amante também), recebeu uma ajuda financeira de seu sogro para abrir um pequeno comércio, onde ele vendia chás, ervas e outros produtos naturais, uma pequena farmácia de medicamentos e tratamentos naturais de inspiração tradicional chinesa.
O negócio prosperou. Sua sede por dinheiro, riqueza e poder eram insaciáveis. O negócio em Tóquio se expandiu e se tornou popular, e naturalmente chamou a atenção das autoridades. Em 1982, após uma investigação policial, Matsumoto foi preso. Falido, humilhado e ressentido, Matsumoto cumpriu sua pena e, após isso, junto com sua esposa, Tomoko Ishii, Matsumoto decidiu abrir um novo negócio em seu apartamento de um quarto em Shibuya: aulas de yoga e iluminação espiritual. Para completar a transformação, Matsumoto abandonou seu nome. Agora, ele era Shoko Asahara, guru da organização Sociedade dos Seres Celestiais.
Shoko Asahara.
Durante seu período de reclusão, Asahara leu extensivamente sobre budismo, esoterismo católico e outras grandes religiões e práticas espirituais. Suas leituras eram caóticas, incompletas, e Asahara logo começou a costurar suas leituras espirituais e religiosas com ficção-científica. Asahara era particularmente atraído por Isaac Asimov, em especial a sua saga Fundação, onde uma pequena elite de intelectuais e cientistas se afastaram da sociedade bárbara e incivilizada, aguardando o momento certo em que pudessem emergir de suas cavernas para liderarem o mundo.
Junto a esses estudos, a partir de 1984, Asahara fez uma série de viagens e peregrinações à Índia. Estudou o hinduísmo, particularmente suas origens primitivas. Ele pessoalmente conheceu o 14º Dalai Lama, que anos depois afirmaria se lembrar do “japonês estranho e esquisito”. Asahara dizia a seus alunos de yoga que teria atingido a plena iluminação de Shiva. Isso teria feito com que Asahara desenvolve-se poderes e habilidades sobrenaturais: ele podia ler mentes, ver através de paredes e se levitar. Tendo assumido o controle de uma pequena gráfica em Tóquio, Asahara distribuía panfletos e impressões com fotografias suas levitando (obviamente não passavam de fotos encenadas e cuidadosamente manipuladas). A partir de 1987, suas aulas de yoga se tornaram o centro de uma nova religião, e sua organização passou a se chamar Aum Shinrikyo - ou Verdade Suprema.


Shoko Asahara com seus discípulos e, ao lado, com o Dalai Lama.
Sabendo melhor que ninguém sobre o poder do marketing, Asahara iniciou um plano ambicioso para conquistar os corações e mentes dos japoneses. Seus alvos preferenciais eram homens jovens, estudantes universitários de faculdades de elite. A Aum Shinrikyo, com seus ensinamentos prometendo iluminação espiritual e intelectual, aconselhamento de vida e carreira, e misturando espiritualidade com ciência e ficção-científica, logo começou a conquistar adeptos entre a elite japonesa.
Asahara empregava mulheres jovens e atraentes para atrair homens para suas palestras, que saíram do seu pequeno apartamento de Shibuya e foi para diversos campi universitários. Logo as fileiras da Aum Shinrikyo se preencheu de estudantes de ciência política, biologia, física e química. Amealhando uma fortuna cada vez maior, Asahara investiu cada vez mais em seu braço de propaganda e marketing. Fundou editoras de livros e revistas, e passou a produzir mangás sobre a seita. Dos mangás, fundou um estúdio de animação, e desenvolveu animes que eram vendidos em fitas VHS e exibidos em canais de televisão. Misturando conceitos de filosofia esotérica, religião e ficção-científica, esses produtos culturais de massa mostravam a seita Aum Shinrilyo guiando a nação japonesa contra uma série de ameaças, geralmente conspirações que atentavam contra uma população japonesa indefesa e ignorante.



O anime Chouetsu Sekai, produzido pelo estúdio de animação da Aum Shinrikyo e exibido no Japão. O desenho mostrava Shoko Asahara como um super-herói, enfrentando diversas ameaças planetárias e cósmicas.
A popularidade de Asahara em campi universitários, e entre jovens da elite financeira, cultural e política do Japão fez com que a seita crescesse não só numa velocidade impressionante - até hoje é a religião que teve crescimento mais rápido em toda a história do país - como também fez com que ela recrutasse adeptos que pertenciam a todos os estratos da burocracia do país, inclusive se estendendo à polícia de Tóquio e às Forças Armadas do Japão.
Mais do que uma seita, a Aum Shinrikyo se tornou uma corporação. Asahara se tornou dono de academias, gráficas, editoras, estúdios de animação, agência de relacionamentos amorosos, uma agência de babás e até creches. Em 1989, conseguiram o difícil e cobiçado reconhecimento do governo japonês como uma nova religião. Esse privilégio permitia não só que o grupo se tornasse isento de pagar impostos e taxas, como também blindava o grupo de ser investigado criminalmente pela polícia.
Essa era uma das imagens mais populares de Asahara, que mostravam ele flutuando durante sua meditação.
Asahara se tornou uma figura regular em programas de televisão, reportagens de revistas e jornais e não era incomum ver membros da Aum Shinrikyo - trajando seus robes coloridos - andando pelas ruas, metrôs e edifícios públicos do Japão. A cada dia que passava, a seita ganhava mais membros e reputação, sendo inclusive reconhecida como uma “religião de elite” pelo país.
Assim como Invasion of the Body Snatchers, o clássico filme de ficção científica dos anos 1950, a influência insidiosa de Aum parecia atingir todos os cantos da sociedade. O culto supostamente contava entre seu rebanho cerca de 40 jovens burocratas dos principais ministérios do Japão - educação, correios e telecomunicações, justiça, construção, transporte - além de cobradores de impostos e juízes regionais. Um juiz teria doado ¥ 1 milhão (US$ 9.505) para o culto. Havia também repórteres e editores, incluindo um diretor de programa da NHK, a emissora nacional.
A lista de membros do Aum também incluía mais de 100 especialistas em engenharia, comunicações, computação e outros campos de empresas como Toshiba, Hitachi e IBM Japan - todas empresas de alta tecnologia cujas tecnologias de ponta Aum cobiçava. Alguns acabaram deixando suas empresas para se juntar ao culto em tempo integral; outros apenas doaram grandes somas de dinheiro. Havia também aqueles considerados "adormecidos" — não membros que talvez apenas frequentassem aulas de ioga, mas que poderiam, com o plano certo, ser recrutados para o culto.
Os tentáculos de Aum alcançaram profundamente o exército japonês. Quase 40 membros ativos da Força de Autodefesa se alistaram no exército de Asahara - mais outros 60 veteranos. Um membro da Academia de Defesa Nacional dormiu sob um grande pôster de Shoko Asahara e jurou recrutar outros antes da formatura. Ainda mais útil foi um primeiro tenente da segunda Unidade de Helicópteros Antitanque do Japão que vazou resmas de dados confidenciais para o culto.
Quando a infiltração não conseguiu o que Aum queria, o culto se voltou cada vez mais para a escuta telefônica. Como a tecnologia bioquímica, as ferramentas para conduzir a escuta eletrônica estão agora ao alcance das pessoas comuns - e Aum aproveitou ao máximo. A primeira escuta foi descoberta em 1991 pela NTT, a companhia telefônica nacional. A técnica de Aum era bastante simples. Ela teria obtido uniformes e crachás de identificação da NTT e montado um manual de escuta para suas equipes de segurança e recrutamento. Os alvos favoritos eram doadores ricos em potencial e inimigos de Aum. Os oponentes alegam que pelo menos sete grampos foram encontrados em casas pertencentes a parentes e outros que se opunham ao culto.
Foi a polícia que mais ocupou as mentes dos principais oficiais do Aum. Felizmente para a Aum, seu recrutamento também valeu a pena aqui - pelo menos meia dúzia de membros dos melhores do Japão se juntaram. Um alto funcionário admitiu que dois deles pertenciam ao Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio, amplamente considerado a elite da aplicação da lei japonesa.
Cada vez mais rico e poderoso, Asahara começou a estender sua influência para fora do Japão, principalmente em outros países asiáticos - também na Rússia e Austrália, com planos de se expandir pela Europa e o resto do Ocidente. Mas é aí também que a Aum Shinrikyo passou por extensas e profundas transformações, atraindo gradualmente a atenção de críticos e pessoas de fora que viam a seita com desconfiança.
Não se sabe ao certo, mas em algum momento no final dos anos 80, possivelmente no final de 1988 ou início de 1989, Asahara entrou em contato com milenarismo bíblico. O colapso da União Soviética galvanizou sua imaginação, que se tornou mais apocalíptica e extrema.
Asahara disse que o colapso da União Soviética havia encerrado a luta entre formas conflitantes de materialismo — a economia controlada versus a economia de livre mercado — e havia preparado o cenário para uma nova luta: "o conflito final entre materialismo e espiritualismo".
"Agora é a hora de as pessoas irem além do nível da moralidade comum e alcançarem contato com um mundo superior ao dos seres humanos", disse Asahara na entrevista Brutus. "As pessoas devem trabalhar para se tornarem organismos vivos de um mundo superior".
Os discursos e escritos de Asahara se tornaram cada vez mais paranoicos nos últimos anos, alertando sobre a desgraça iminente e alegando que ele era alvo de ataques com gás venenoso.
Em seu livro mais recente, intitulado "A Terra do Sol Nascente Está Caminhando em Direção a um Destino Amargo", Asahara previu um ataque nuclear dos EUA ao Japão entre 1996 e 1998.
Mas seus seguidores, ele escreveu, sobreviverão.
Fonte: https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1995-03-27-mn-47649-story.html
A lógica de crescimento da Aum Shinrilyo sempre foi uma de escalada. Desde que criou sua aula de yoga em 1984, Asahara introduzia novos ensinamentos, conceitos e estudos espirituais aos seus alunos e seguidores. Era uma religião dinâmica, comandada por um líder carismático, persuasivo. Suas profecias eram contraditórias, grandiloqüentes, em igual medida racionais e delirantes, megalomaníacas. A partir de 1989, inflada de milenarismo e a promessa de apocalipse nuclear, Asahara passou a exigir mais de seus discípulos. Só no Japão, neste ano, ele tinha mais de dez mil filiados, e cinquenta mil fora do Japão (principalmente na Rússia - o colapso da URSS permitiu que Asahara aumentasse sua influência no país).
Se as escolas não o levam para sua própria mente, o ambiente o faz. Em uma terra onde a urbanização conhece poucos limites, onde casas e escritórios são demolidos em uma sucessão infinita, a única terra que a maioria dos japoneses conhece é a expansão crescente da megalópole. Milha após milha, as cidades do Japão continuam, um mar urbano implacável de linhas de energia, estradas e edifícios pouco inspirados de aço e concreto. Há multidões aparentemente em todos os lugares, nos trens, nas ruas, nas rodovias. Em uma área do mesmo tamanho da Califórnia, há mais de quatro vezes mais pessoas.
Pode-se entender por que, então, os japoneses dizem que preferem cultivar o espaço interior - o interior de suas casas, o interior de suas mentes. E o Aum ofereceu o espaço interior definitivo, um que levaria seus seguidores em uma linha direta para o espaço sideral. "Os membros do Aum viviam em um mundo puramente imaginário", observou Shoko Egawa, uma jornalista que acompanhou o culto por anos. "Um que combinava o medo primitivo com uma versão de desenho animado da realidade controlada por computador." Outro observador do Aum acrescenta: "Foi uma realidade virtual tornada real”.
Então eles vieram. Não apenas os curiosos e alienados, mas os muito brilhantes e muito talentosos. Em 1989, notavelmente, Asahara havia reunido ao seu redor algumas das melhores mentes jovens de todo o Japão - químicos, biólogos, médicos, programadores de computador. As crianças de alta tecnologia do Japão pós-industrial ficaram fascinadas pelas alegações dramáticas de Aum sobre o poder sobrenatural, seus avisos de um futuro apocalíptico, seu espiritualismo esotérico.
Houve Seiichi Endo, 28, que deixou a prestigiosa Universidade de Kyoto, onde fez experimentos em engenharia genética no Centro de Pesquisa Viral da faculdade de medicina. Outro, Masami Tsuchiya, 24, um aluno de pós-graduação de primeira linha na Universidade de Tsukuba, abandonou o trabalho de ponta em química orgânica para se juntar ao culto. Fumihiro Joyu, 26, chegou com um diploma avançado em telecomunicações da Universidade Waseda, outra escola importante, onde estudou inteligência artificial. Joyu foi trabalhar na Agência Nacional de Desenvolvimento Espacial do Japão, mas pediu demissão depois de apenas duas semanas. "O trabalho", ele disse a autoridades atônitas, "é incompatível com meus interesses em ioga".
Novos membros era estimulados e coagidos a “abandonarem” a sociedade tradicional e se entregarem totalmente ao grupo. Eram obrigados a fazerem extensas e onerosas doações, inclusive de bens, como roupas, veículos e até imóveis, mesmo que fossem divididos com parentes e familiares que não faziam parte da seita. Por conta do status adquirido como religião oficial perante o governo, a fortuna de Asahara saltou de 430 milhões de ienes (aproximadamente 4.3 milhões de dólares) em 1989 para 100 bilhões de ienes em 1995 (aproximadamente 1 bilhão de dólares) em 1995. Neste ano, Aum Shinrikyo já tinha escritórios na Alemanha, Indonésia, Taiwan, Estados Unidos, além de mais de cento e trinta empresas de fachada, onde seus seguidores trabalhavam em um regime análogo à escravidão.
As rotinas de iniciação na Aum Shinrikyo se tornaram mais extremas. Não só novos aderentes doavam seus bens materiais, mas também seus corpos. Doavam sangue (que era guardado e armazenado) e colocados em reclusão, em quartos que mais pareciam celas. Participavam de sessões de “yoga e meditação”, onde eram dopados (sem consentimento) com altas dosagens de LSD. Eram amarrados e colocados de ponta cabeça, onde ficavam por mais de seis horas nessa posição, sendo obrigados a meditarem sob o som repetitivo de mantras e gravações de Asahara. Eram submetidos a sessões de eletrochoque e também submergidos em banhos em águas geladas e escaldante - sempre como parte do processo de se adquirir a “iluminação final”. Neste estágio, que havia sido atingido somente por Asahara, o indivíduo ganharia poderes sobrenaturais.
Com inúmeras casas, apartamentos e instalações espalhados por todo o Japão e diversos países, as operações da Aum Shinrikyo se tornaram mais sombrias, secretas.
De fato, 1989 é um ano importante para o grupo, por conta de três eventos significativos. Primeiro, durante um desses rituais excruciantes, um discípulo que possuía deficiência mental foi submetido a horas de “meditação” de ponta cabeça. Quando ele passou a passar mal e convulsionar, foi imediatamente submergido em uma banheira de gelo. Morreu imediatamente. Os membros da seita responsáveis optaram por cremar o corpo. Isso se deu no complexo que o grupo mantinha próximo ao Monte Fuji, um local isolado na natureza. Tudo teria dado certo, não fosse pelo fato que um dos companheiros do morto testemunhou tudo, e ameaçou ir a público com o que sabia. Asahara direcionou seus discípulos a se livrarem da ameaça. Foi prontamente atendido, e a ameaça, estrangulada (e incinerada). Tal incidente revelou a Asahara que ele poderia fazer demandas extremas de seus seguidores, conquanto que ele sempre os mantivesse motivados com uma crescente de ensinamentos e profecias - que deveriam se realizar a qualquer custo.
O outro fato de 1989 foi a tentativa de Asahara e diversos membros da Aum Shinrikyo de se elegeram nas eleições daquele ano. Após uma extensa e cara campanha política, a derrota que Asahara e seus companheiros sofreram nas urnas foi tão maciça e gigantesca que ele terminou o pleito não só humilhado, mas profundamente ressentido. Foi como seus tempos de infância, mais uma vez. Tal derrota fez com que Asahara ficasse mais paranóico, e seu ódio da sociedade japonesa aumentasse ainda mais. Suas profecias ficaram mais violentas, apocalípticas, e ele passou a profetizar uma guerra nuclear entre Estados Unidos e Rússia, e depois com o Japão. O mundo seria destruído, mas somente Asahara e seus seguidores - a elite intelectual e espiritual - sobreviveriam.
É importante notar que, na rígida e extensa hierarquia da Aum Shinrikyo, Asahara conseguiu recrutar não só membros da polícia, do exército e do governo, mas também estudantes e cientistas brilhantes. Seu círculo íntimo continha cientistas com PhD em química, física, microbiologia e médicos. Asahara dividiu a organização em diversos departamentos - denominados de ministérios - que operariam em autonomia completa um do outro, se submetendo somente a ele, o grande líder.
Havia um Ministério do Trabalho, da Justiça, de Inteligência, de Correios e Telecomunicações, Comércio, Construção e Tecnologia… eram vinte ministérios, todos liderados por pessoas experientes e formadas nas faculdades e universidades de elite do Japão. Hisako Ishii, por exemplo, era a Ministra de Finanças. Graduada em Administração e Finanças, e tendo trabalhado em instituições de financeiras de prestígio, foi ela a responsável por ampliar a fortuna da Aum Shinrikyo. Não só ela estabeleceu o sistema de doações, amealhando o patrimônio de novos discípulos e estabelecendo as empresas de fachada do grupo, que geravam sua economia interna, como foi ela também que criou medidas bizarras, como vender o sangue de Asahara por dez mil dólares o frasco (e, caso você não tivesse essa quantia, era vendida também a água de banho de Asahara por menos da metade desse valor, de certa forma antecipando práticas que se tornaram comuns em tempos de OnlyFans). As empresas do grupo passaram a atuar no ramo de alimentação, computação (desenvolvendo e distribuindo hardware e software para diversas lojas) e até mesmo clínicas e hospitais que seriam administrados pelo Ministério da Saúde do grupo. Pessoas eram internadas compulsivamente nestes hospitais, e posteriormente obrigadas a pagarem quantias exorbitantes pelo seu tratamento.
O Ministério de Ciência e Tecnologia, liderado por Hideo Murai, um cientista com doutorado em Astrofísica, que desenvolveu uma variante do “soro da verdade”, que era administrado a “pacientes” nos hospitais do grupo. Pacientes que, na verdade, eram membros do grupo que podiam guardar segredos valiosos, ou que estavam pensando em abandonar e delatar o grupo.
Brilhante, intenso e de fala mansa, Murai se tornaria o cientista-chefe da Aum e engenheiro do apocalipse. Um garoto quieto que gostava de andar de bicicleta e ciências, ele foi aceito na prestigiosa Universidade de Osaka, onde obteve um diploma avançado em astrofísica pela altamente competitiva Escola de Pós-Graduação em Ciências. Lá, ele estudou as emissões de raios X de corpos celestes e provou ser um gênio em programação de computadores. Após a graduação, ele se juntou à Kobe Steel, um conglomerado de ¥ 1,1 trilhão (US$ 10,5 bilhões) por ano com interesses em metais, máquinas, eletrônicos e biotecnologia. Murai trabalhou na seção de P&D da empresa, realizando experimentos para tornar o aço supermaleável, como caramelo quente. Trabalho interessante para o jovem físico, mas não muito gratificante.
Depois de dois anos na Kobe Steel, o comportamento de Murai começou a mudar. Enquanto navegava por uma livraria, ele pegou uma publicação da Aum sobre ioga e percepção extrassensorial, e ficou viciado. Ele falou com colegas de trabalho sobre como a levitação e a telepatia poderiam ser possíveis e perdeu o interesse em sua carreira. Para seu casamento, ele levou sua noiva não para o Havaí, como muitos homens japoneses fazem, mas para o Nepal. Em seu retorno, Murai anunciou a todos que estava deixando a empresa para se dedicar totalmente à Aum e sua nova vida espiritual.
Os pais de Murai tentaram desesperadamente convencê-lo a desistir. Mas seu filho simplesmente lhes entregou uma cópia de Jonathan Livingston Seagull, o antigo best-seller sobre a luta de uma gaivota para aprender a voar. O romance, ele disse a eles, expressava seus verdadeiros sentimentos. ("Eu odeio esse livro", sua mãe disse mais tarde.)
Murai prosperou dentro de Aum. Ele devorou os ensinamentos de Asahara e se tornou um discípulo premiado. A vida de Murai era tão ascética que ele se mudou permanentemente para uma pequena cela usada para meditação. "Esta sala é muito pequena e escura para aqueles que querem escapar", ele disse uma vez. "Mas se alguém quer meditar, é tão grande quanto o universo."
Murai, de 30 anos, era o cientista sênior do culto, e Asahara o via com crescente favor. Murai e os outros tinham ideias sobre como levar adiante as ideias de Asahara, usando as ferramentas e técnicas da ciência moderna. Havia maneiras de analisar as qualidades únicas do sangue e das ondas cerebrais de seu guru, explicou Murai. E havia tecnologias que o culto poderia usar para se proteger da era das trevas que se aproximava.
Murai e os outros cientistas emprestaram detalhes arrepiantes à visão de Asahara de um futuro apocalíptico. O guru ficou fascinado enquanto seu jovem grupo de cérebros falava de armas fantásticas que apressariam o fim do mundo: lasers e feixes de partículas, agentes químicos e biológicos, novas gerações de bombas nucleares. A terra seria devastada como nunca antes, eles garantiram ao seu líder.
Para Hideo Murai, o astrofísico, ele finalmente havia encontrado um lugar no mundo. O que ele ouviu da voz de seu mestre se encaixava perfeitamente com seus próprios pensamentos sobre o universo. De fato, tudo isso já havia sido previsto antes, ele disse aos outros. Muito mais importante do que Jonathan Livingston Seagull era outra obra de um escritor americano. E os livros desse homem serviriam como o plano mestre para os cientistas de Aum.
O Ministério da Saúde era liderado por Ikuo Hayashi. Filho de uma família de médicos, membro da elite japonesa, Haysahi era cardiologista, formado em medicina pela universidade de Keio, uma espécie de Harvard do Japão. Trabalhou por anos no Ministério da Ciência e Tecnologia do país, e era um dos profissionais mais reconhecidos e respeitados de sua área no Japão. Em 1990, ele abandonou tudo - seu cargo, posto e família - para se tornar membro da seita, onde se tornou um dos favoritos de Asahara. Sob sua liderança, formou um time de especialistas, que passou a criar instalações de fabricação de compostos químicos e drogas, como LSD, que era administrado nos cultos, e também o “soro da verdade”. Com capital de mais de 30 milhões de dólares a sua disposição, Hayashi e Murai estabeleceram uma série de instalações no país, equipadas com maquinário industrial de ponta, onde podiam fabricar compostos químicos altamente complexos, além de desenvolverem atividades paralelas no campo da fabricação de armamento (o grupo tentou fabricar o fuzil AK-47), explosivos, anthrax, gás VX e gás sarin, além de manterem culturas de vírus Ebola e Malária. Nos hospitais do grupo, Hayashi criou técnicas que combinavam o uso de químicos e psicodélicos com tratamentos de choque, na tentativa de apagar as memórias de novos membros (e obteve algum sucesso nisso).
"Temos uma nova iniciação", disse o médico da seita. "Por favor, beba isso."
Era setembro de 1994, e o Dr. Ikuo Hayashi estava fazendo experimentos. Um cirurgião cardiovascular, Hayashi, de 48 anos, se juntou à Aum depois de quase matar uma mãe e uma filha em um acidente de carro. Com sua esposa anestesista e uma dúzia de médicos e enfermeiros do culto, Hayashi presidia uma loja de horrores de testes em humanos, drogas e remédios malucos.
A vítima dessa vez era um veterano do exército japonês, um guarda-costas pessoal de Asahara de 25 anos. Hayashi convocou o membro do culto e entregou a ele um copo usado para amostras de urina. Dentro havia um líquido amarelo. "Logo fiquei tonto e desmaiei", lembrou o homem. "Quando acordei, eu estava na cama e não sabia o que estava acontecendo. Parecia que muitos dias tinham se passado, mas eu não tinha memória. Quando toquei minha cabeça, havia pontos inchados - eles eram tão dolorosos tanto dentro quanto fora da minha cabeça. Era uma dor surda e dolorida."
As "manchas" eram, na verdade, incisões cirúrgicas, feitas em quatro pontos do crânio do homem - uma em cada têmpora e duas nas costas. Cada corte tinha 1 centímetro de comprimento e 2 centímetros de largura. Cicatrizes recentes e áreas calvas inchadas apareciam no que restava de seu cabelo.
O homem foi resgatado mais tarde e tratado até ficar saudável. "Quando fui para casa, fiz um exame completo do meu cérebro", disse ele. "Mas uma tomografia computadorizada não mostrou nada. Quanto às quatro cicatrizes, acho que eles podem ter colocado eletrodos na minha cabeça."
"Eletrodos na minha cabeça" - a frase ecoa, como se fosse de um futuro retrógrado distante. Aum, o culto à morte de alta tecnologia, conheceu o mundo cyberpunk de Neuromancer, o clássico de ficção científica de William Gibson. No livro de Gibson, um "cowboy de console" chamado Case ronda as vielas holográficas de Tóquio e conecta sua mente diretamente a redes de computadores. Ele pode ter se sentido em casa dentro dos laboratórios de Aum.
Os cientistas de Aum eram fascinados por eletrônica e o cérebro. Seu foco principal, no entanto, não era tanto fazer login, mas sim trancar - em encontrar novas maneiras de obter controle mental. Dogma, drogas e lavagem cerebral aparentemente não eram suficientes para manter as legiões de Asahara na linha. O que Asahara realmente queria criar era um reino de zumbis.
Os padrões de ondas cerebrais sempre interessaram os cientistas de Aum. Afinal, eram a base das capas de eletrodos usadas pelo sacerdócio do culto. Mas o escopo de seus experimentos se expandiu radicalmente. Um conjunto de testes realizados pelo Dr. Hayashi usou choques elétricos para apagar as memórias de seguidores suspeitos. De acordo com os registros médicos detalhados de Hayashi, 7 choques de 100 volts cada, aplicados no couro cabeludo, foram suficientes para apagar a memória de curto prazo de um dos motoristas de Asahara, que havia sido rotulado de espião. O homem não conseguia se lembrar de ter dirigido o carro do guru.
Um trabalhador do complexo que tentou escapar recebeu 11 choques, enquanto um seguidor do sexo masculino acusado de relações sexuais recebeu 19. Durante um período de três meses, começando em outubro de 1994, o Dr. Hayashi administrou mais de 600 choques elétricos em 130 seguidores. Depois, alguns deles esqueceram em qual culto estavam, como o guru era chamado, até mesmo seus próprios nomes.
Ele também raspava as impressões digitais dos membros, e conduzia cirurgias plásticas nestes locais, com o intuito de alterar a aparência de membros do grupo, que dificultavam seu reconhecimento.
Perder as eleições no país não atiçou simplesmente o ódio e o ressentimento de Asahara, mas também o estimularam a criar uma organização que, mais do que uma seita, era efetivamente um governo paralelo. E, à medida que suas profecias se tornavam mais violentas e apocalípticas, ele também precisaria investir cada vez mais em armamento. Se suas profecias não se concretizassem, então, eles as provocaria. Mas voltaremos a esse ponto.
O terceiro e último evento de 1989 se tornou crucial para o grupo foi particularmente brutal.
Apesar das dificuldades em se investigar o grupo, tanto por conta de seu status protegido quanto pelo fato de que a seita havia penetrado nas camadas mais altas da burocracia do país, ainda assim relatos perturbadores de familiares que perderam seus parentes para a Aum Shinrikyo começaram a se espalhar pelo Japão.
O advogado Tsutsumi Sakamoto tornou-se famoso no Japão por perseguir e condenar diversas seitas e oganizações religiosas. Seu caso mais bombástico havia sido uma ação coletiva contra a Igreja da Unificação do Japão, que também possuía privilégios legais e status. Mobilizado por familiares, Sakamoto usou a mídia e protestos de rua para mudar a opinião pública contra a seita, e seu caso foi bem-sucedido. Passou a dar entrevistas em rádios e jornais, condenando seitas e organizações religiosas bizarras. E, então, passou a ser procurado por familiares de pessoas da Aum Shinrikyo.
Sakamoto seguiu o mesmo script: começou a organizar manifestações e protestos contra a seita, e logo chamou a atenção da mídia, como preparação para a ação judicial que promoveria, a nome dos familiares, contra a Aum Shinrikyo. Caso emergisse como vitorioso, Sakamoto poderia levar a seita a falência, assim como fizera anteriormente com a Igreja da Unificação.
Assim, em outubro de 1989, a emissora TBS (Tokyo Broadcast Corporation) realizou uma entrevista com Sakamoto a respeito de sua ação contra a Aum. No entanto, temendo retaliações, ou qualquer tipo de resposta, a emissora secretamente compartilhou o vídeo da entrevista com membros da seita, e o material chegou até Asahara. Importante frisar que essa atitude violou o acordo de proteção de fonte - no caso, Sakamoto, que não fora notificado sobre esse gesto. Após assistirem a entrevista e perceberem o teor altamente danoso da ação e declarações do advogado, a Aum exerceu seu poder para pressionar a TBS, e a entrevista nunca foi ao ar.
Sakamoto continuava sendo uma ameaça, mas agora a seita tinha plena consciência do que ele poderia fazer contra ela. Asahara designou Kiyohide Hayakawa, seu Ministro da Construção, a organizar uma ação contra Sakamoto. O grupo que conduziria a operação seria composto por Hideo Murai, o cientista chefe do grupo e ministro de Ciência e Tecnologia da seita, Tomomasa Nakagawa, um mestre em artes marciais, e Kazuaki Okazaki, um jovem desajustado e com problemas psicológicos.
Às três da manhã do dia 5 de novembro, os três chegaram até a residência de Sakamoto, e entraram nela por uma porta que estava destrancada. O grupo estava munido de martelos e seringas de cloreto de potássio. Tsutsumi Sakamoto recebeu um golpe de martelo na cabeça, depois uma injeção de cloreto de potássio e, por fim, foi estrangulado. A esposa de Sakamoto, Satoko, foi injetada com o composto, espancada e estrangulada. Por fim, o bebê Tatsuhiko Sakamoto, de 14 meses, recebeu uma injeção de cloreto de potássio e foi estrangulado no berço. O grupo retirou os corpos da casa e deixaram tudo em ordem. Posteriormente, arrancaram os dentes dos cadáveres e os pulverizaram, para dificultar a identificação. Cada corpo foi colocado em um barril de metal diferente, e cada barril foi abandonado em um local diferente e distante um do outro. Por anos a polícia deu como desaparecida a família Sakamoto.
Todos esses eventos de 1989 posicionaram a Aum Shinrikyo para o futuro próximo, onde a guerra apocalíptica profetizada por Shoko Asahara se avizinhava. A derrota nas eleições, e a violência praticada pelos “impuros” que se opunham à seita eram a prova irrefutável de que o governo japonês precisava ser derrubado - com brutalidade. Havia uma urgência nos planos paranóicos de Asahara. O mundo inteiro estaria engolfado em conflito, e somente os escolhidos sobreviveriam.
[CONTINUA]
Que intrigante. O início do texto me lembrou "Lost Highway" do David Lynch