I.
Na manhã do dia 18 de abril de 2016, um dos alunos de Terri Leann “Missy” Bevers entrou na igreja Creekside, em Midlothian, Texas, para a aula de treino e exercício físico. Era pouco depois das cinco da manhã, e Missy Bevers conseguiu um espaço dentro igreja para sua aula, que geralmente era dada no estacionamento. Por conta de um forte tempestade, trovoadas e ventania, ela optou por dar sua aula no interior do vasto complexo. O aluno encontrou sua professora morta, e ligou para a polícia na sequência.
Missy Bevers tinha 45 anos de idade. Casada e com três filhos, ela dava aulas de fitness para diversos alunos de Midlothian e região. Midlothian é uma pequena cidade de pouco de mais de trinta mil habitantes. A principal economia da cidade é industrial, principalmente do ramo do cimento: a maior empresa da região é a brasileira Gerdau, que emprega boa parte da população.
Midlothian é só mais uma típica cidade colarinho azul, situada ao sudeste de Dallas, capital do estado. Pacata, sem graça e sonolenta, o assassinato de Missy Bevers - que até hoje não foi solucionado - despertou um furor midiático por conta da descoberta que a polícia fez ao analisarem as imagens do circuito fechado de câmeras.
A aula de Bevers estava programada para as cinco da manhã do dia 18. Câmeras de segurança captaram a instrutora entrando no edifício às 4h18 da manhã. Ela é captada entrando e saindo do prédio, levando o equipamento de treino de seu carro para a sala de treino. No entanto, meia-hora antes de Missy Bevers chegar na igreja, as câmeras captaram outra pessoa dentro do prédio.
As imagens mostram uma pessoa, vestindo um traje completo da S.W.A.T. - que, no entanto, não é o uniforme oficial da corporação, mas sim uma fantasia - entrando na igreja. A pessoa caminha calmamente pelos corredores da igreja. Portando um martelo, o indivíduo vandaliza tranquilamente o edifício, quebrando vidros, quadros… aparentemente sem objetivo. Abre portas, e anda para cima e para baixo pelo lugar. Como a pessoa está aparamentada dos pés à cabeça, com botas, colete e capacete, além de luvas, é impossível determinar o gênero do indivíduo pela imagem. Além disso, ele(a) tem um jeito distinto de caminhar.



Somente a imagem deste indivíduo foi liberada pela polícia. As imagens de Missy Bevers não foram liberadas, e a polícia também não elaborou se a instrutora topou com este sujeito. O que sabemos é que o corpo de Missy continha marcas e feridas que foram causadas por “ferramentas” - incluindo um martelo - que foram encontrados ao lado do seu corpo. Dito isso, a polícia também não confirmou a causa da morte de Missy, nem mesmo a extensão dos ferimentos em seu corpo, e se as ferramentas que foram encontradas ao lado do seu corpo tinham alguma relação com sua morte.
Nos dias seguintes à descoberta de seu corpo, as autoridades descobriram que o casamento de Missy não ia bem. Além de dívidas e dificuldades financeiras, havia acusações de infidelidade - tanto do lado de Missy quanto de seu marido, Brandon.
Isso se dá pelo fato de que, nos dias anteriores à sua morte, Missy recebeu uma série de mensagens estranhas, senão perturbadoras, de um homem desconhecido em seu LinkedIn. No entanto, quando a polícia aprofundou sua investigação sobre essas mensagens, e localizou este homem, não só determinaram que ele tinha um álibi sólido, como as mensagens em si, quando colocadas em contexto, revelavam uma natureza íntima entre o homem e Missy. A polícia não revelou ou divulgou essas mensagens, a identidade do homem e mesmo se Missy de fato se encontrou com ele.
Inicialmente as autoridades trabalharam com a possibilidade de Missy ter sido morta em um assalto, mas seu corpo foi encontrado com a carteira, dinheiro e documentos intactos. Seu celular e iPad estavam junto com ela. Nada foi levado dela, ou da igreja. Assim, a teoria da polícia é que seu assassinato foi intencional e premeditado.
A suspeita recaiu sobre o marido de Missy, Brandon, e seu sogro, Randy. No entanto, após ambos serem extensivamente investigados, eles não são mais considerados suspeitos. Primeiro, por que ambos estavam fora do Texas na noite do crime e, segundo, nenhuma evidência foi encontrada que os ligasse ao assassinato. A polícia emitiu um mandato exigindo a liberação de dados celulares de Missy, pois eles acreditam que ela tenha tido contato com seu assassino, e que o assassino em si possa ter gravado e registrado o crime em seu celular. Nenhuma informação adicional sobre esse mandato foi liberado até o momento.
A última informação que a polícia liberou ao público é mais uma imagem de câmera de segurança. Se trata de uma série de imagens de câmera de segurança que captam o estacionamento da loja SWFA Outdoors. A igreja Creekside fica em um complexo de lojas de departamento, um mall onde o estacionamento é compartilhado pelos estabelecimentos no local. As imagens foram registrados às duas da manhã, portanto, horas antes do suspeito não identificado entrar na igreja, e mostram um carro, possivelmente um Nissan Altima, 2010-2012, entrando no estacionamento. O local está deserto. O motorista exibe um comportamento estranho: dirige lentamente e sem rumo pelo estacionamento. Pára em algumas vagas, apaga os faróis. Volta a dirigir. Liga e desliga o farol alto repetidas vezes. Estaciona novamente em locais afastados. Por fim, o carro sai do estacionamento e desaparece na auto-estrada.







A polícia não sabe dizer se o motorista do Nissan Altima tem alguma relação com o crime, tendo em vista que nem o carro, nem o motorista, foram identificados. O crime continua em aberto.
II.
Em 1960, o cineasta austríaco Fritz Lang (1890-1976) lançava o seu último filme, Os Mil Olhos do Dr. Mabuse (Die 1000 Augen des Dr. Mabuse, 1960). Nele, Lang retorna ao personagem que fez sua fama em primeiro lugar, o master criminal Dr. Mabuse. Uma espécie de Dr. Moriarty alemão, Mabuse foi criado por Norbert Jacques, e apareceu em uma série de romances folhetinescos de ação e suspense. Mestre do disfarce, poderoso hipnotista, e líder de uma vasta organização secreta, Mabuse era um autêntico supervilão, aterrorizando a frágil República de Weimar. Lang fez dois filmes com o personagem nos anos 20 e 30, verdadeiros épicos policiais que ajudaram a sedimentar o gênero do thriller paranóico, uma das grandes invenções de Lang, e que influenciaria diretores como Alan J. Pakula, Francis Ford Coppola, Christiopher Nolan e David Fincher, para citarmos alguns.
Uma das características mais interessantes de Mabuse é que, não obstante ele possua poderes vagamente sobrenaturais, eles são também extensões, ou complementos da tecnologia moderna. Desde o primeiro filme, Dr. Mabuse, o jogador (Dr. Mabuse, der Spieler, 1922), Lang associou o gênio do crime a invenções tecnológicas como trens, aviões, carros, maquinário de destruição (rifles automáticos, explosivos controlados remotamente, gravadores e microfones escondidos etc) e, claro, esquemas criminosos como a manipulação da Bolsa de Valores, falsificação de dinheiro e assassinatos furtivos, mascarados como acidentes. O mundo de Mabuse é um de sombras, mistério, manipulação e, sim, vigilância.
Leituras de época, assim como contemporâneas, identificam o vilão de Lang como uma espécie de precursor de Adolf Hitler: um manipulador mestre, líder de uma vasta organização criminosa composta tanto pela arraia-miúda da bandidagem quanto por ricos industriais e aristocratas, formando uma teia de criminosas que penetra todos os estratos da população alemã. Mas é interessante que justamente o terceiro filme da trilogia, e o derradeiro de Lang, seja o seu mais paranóico e surreal.
Mabuse é morto ao final do primeiro filme (perdão pelos spoilers de um filme de mais de cem anos), mas seu espírito, senão a sua influência maligna, continua perpassando e manipulando vítimas insuspeitas além túmulo. E, no filme de 1960, a principal manifestação dessa influência maligna se dá na forma da vigilância.
Lang nunca leu Jeremy Bentham ou Michel Foucault, mas seu último filme certamente parece algo conjurado pelos dois pensadores. Nele, acompanhamos uma série de vítimas que percorrem um hotel de luxo na Alemanha Ocidental, e são vigiados sorrateiramente por uma miríade de câmeras de segurança, todas conectadas a um supercomputador que reside de forma oculta nalguma parte do hotel.
Após a ascensão do nazismo, Lang se refugiou na França e, por fim, nos Estados Unidos, onde teve uma longa carreira, trabalhando para todos os estúdios de Hollywood (e até mesmo para os de filme B, como a Republic). Ao final da vida, e desencantado com o sistema de produção em Hollywood (sem contar com o McCartismo, e a crescente caretice que reinava na cultura do país), Lang decide enfim retornar à sua terra natal.
No auge da desnazificação, e início da Guerra Fria, Lang identificava que, apesar de Hitler ter sido derrotado e a Alemanha, esmagada, o fantasma de Mabuse continuava pairando pela sociedade liberal e “pacificada” do pós-Guerra. Para ele, a proliferação de sistemas de vigilância, sem contar a catalogação de seus cidadãos por uma vasta burocracia impessoal (uma preocupação que Lang já manifestara em M, o vampiro de Dusseldorf [M, 1931]) seria uma forma de germe totalitário que persistira fantasmagoricamente no seio de democracias modernas e liberais. As obras do já citados Bentham e Foucault, sem contar as vindouras de Jean Baudrillard, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Shoshana Zuboff e tantos outros, principalmente com a ascensão do Big Data e das Big Techs, parecem mostrar que Lang tinha sua razão.
É inegável que estamos constantemente vigiados. É praticamente impossível uma pessoa comum não existir online, e muito menos não deixar algum tipo de vestígio. Ao sairmos na rua, para passear com o cachorro, irmos à padaria ou simplesmente para explorar, estamos sendo captados. Nossos smartphones estão constantemente conectados; guaritas de prédios residenciais, agências bancárias e toda sorte de edifício estão constantemente vigiando o perímetro com câmeras de circuito fechado; e mesmo veículos que transitam pela cidade possuem câmeras e microfones.
Parte do suposto “desaparecimento”, senão “declínio”, do caso de assassinos em série em todo o mundo desenvolvido se dá pela onipresença da vigilância. É difícil de imaginar que Jeffrey Dahmer, Gary Ridgway, Ted Bundy ou o Zodíaco ficariam ocultos por muito tempo. Jack, o Estripador? Nem pensar. Já teria sido pego em seu primeiro assassinato (vide o caso de Elize Matsunaga, flagrada usando o elevador de seu prédio com as malas que continham os pedaços de seu marido).
É verdade que, neste caso, a onipresença - e onipotência - de câmeras seja para o bem. Lang, assim como os pensadores da dita “sociedade de vigilância”, tinham algo muito mais sinistro em mente, como o Grande Irmão, de George Orwell, ou os prédios de vidro transparente de Evgeni Zamiatin. Agora, temos até mesmo o “olho no céu”, para pensarmos na expressão de Philip K. Dick, que fotografou e mapeou boa parte do território terrestre, e deixa isso disponível para nós via Google Maps e Earth, facilmente acessado via meros cliques no teclado.
III.
Mas, talvez, o Grande Irmão não seja tão poderoso assim. Talvez a sua visão seja um tanto míope. Ou, então, ao invés de esclarecer, como a câmera clara de Roland Barthes, ela obscurece, nos deixando perplexos. Sim, os crimes de Dahmer, Bundy e outros só podem ser inferidos pelos ferimentos, testemunhos e vestígios que deixaram. Hoje, eles podem ser vistos e assistidos e, ao invés de explicarem, nos confundem. Talvez seja o espírito de Mabuse, mais uma vez desafiando nossa tecnologia, hackeando o sistema, e mostrando que essas ferramentas somente se prestam a nos dar uma falsa sensação de segurança. E isso me traz ao caso de Jennifer Kesse.
Kesse tinha 24 anos de idade quando desapareceu, no dia 23 de janeiro de 2006. Jovem, atraente e bem-sucedida, a sua vida estava encaminhada. Formada em administração e finanças pela universidade de Central Florida, Kesse morava em Orlando. Recebeu uma série de promoções em seu emprego, numa empresa de Timeshare, e havia recentemente adquirido um apartamento no condomínio Mosaic at Millenia. Próximo à Conroy Road, se trata de uma região nova e afluente da cidade que é destino turístico de todo o planeta.


No final de semana anterior ao seu desaparecimento, ela havia passado as férias nas Ilhas Virgens com seu namorado. Quando voltaram da viagem, num domingo, ela foi da casa dele até o seu trabalho, na segunda-feira, dia 23.
Jennifer sempre foi uma pessoa bastante preocupada com segurança. Todos os dias ela ligava para o namorado, tanto antes de ir ao trabalho quanto quando voltava. Mesmo quando saía tarde de lugares, ela tinha o costume de telefonar ou para ele ou para os seus pais, que moravam em outro município, a mais ou menos duas horas de distância.
No dia 23, ela saiu do trabalho por volta das 18h, quando ela falou com seus pais. Chegou em casa, e às 22h, conversou com seu namorado. Foi o último contato que qualquer pessoa conhecida teve com Jennifer.
No dia seguinte, seu chefe estranhou quando ela não apareceu para o trabalho. De igual maneira, nas duas vezes em que seu namorado tentou ligar para ela, a ligação caía direto na secretária eletrônica, indicando que o celular estava desligado ou fora de área. Como Jennifer tinha uma série de reuniões importantes naquele dia, seu namorado julgou que ela simplesmente estava muito ocupada, e desligou o aparelho.
No entanto, com mais de quatro horas sem ter qualquer sinal de vida por parte de Jennifer, seu supervisor na companhia decidiu ligar para seus pais e avisá-los. Eles imediatamente entraram em contato com o namorado de Jennifer. Ambos compartilharam as informações que tinham naquele momento, como o fato de que seu celular estava desligado, e combinaram de se encontrarem no condomínio Mosaic.
Quando eles entraram no apartamento, não notaram nada de estranho. A cama estava desarrumada, e o kit de maquiagem de Jennifer estava aberto sobre o balcão da cozinha. Era comum que ela saísse apressada do apartamento, fazendo a maquiagem na cozinha. Roupas estavam estiradas sobre a cama, possivelmente uma indicação que ela estava em dúvida do que vestir naquela manhã. No banheiro, o box estava molhado e havia uma toalha úmida sobre a bancada da pia. O carro de Jennifer também não estava no apartamento.


Sem escolha, decidiram acionar a polícia. Por conta de uma série de regulamentações do estado da Flórida quanto a pessoas desaparecidas, a polícia não pôde começar a investigar imediatamente. Jennifer era uma mulher adulta, e ela poderia ter optado por desaparecer voluntariamente - o que é direito dela. Os pais, claro, sabiam que isso não era característico da filha.
Com 24 horas do seu desaparecimento, a polícia enfim deu início aos trabalhos. Refizeram os passos de Jennifer nos últimos dias, conversaram com seus parentes e namorado, e vasculharam o apartamento - que, obviamente, fora contaminado pela presença de seus pais e namorado.
Os pais de Jennifer relataram que ultimamente ela vinha expressando preocupação em relação a trabalhadores e operários que faziam obras no condomínio Mosaic. Era um empreendimento novo, com vários blocos de apartamento, e muitos deles ainda não estavam completos. Havia diversos homens transitando pelo local, e muitos deles moravam em apartamentos em reforma, alguns no mesmo andar que ela. Ela reclamava de receber cantadas, comentários obscenos ou simplesmente se sentir observada por alguns homens, quando saía para o trabalho ou chegava em casa. Vizinhas que moravam no Mosaic, quando entrevistadas pela polícia, também compartilharam relatos semelhantes.
A polícia notou que o registro de funcionários mantido pelo síndico do Mosaic era incompleto, cheio de lacunas. Descobriu também que um molho de chaves havia sido roubado alguns dias antes do desaparecimento de Jennifer. Mas, como o condomínio ainda estava sendo implementado, não haviam instalado as câmeras de segurança ainda. Ao contrário de muitos condomínios de apartamentos de classe média na Flórida - e nos Estados Unidos, em geral - o Mosaic era gradeado e tinha ronda de seguranças. Essa segurança adicional foi um dos motivos de Jennifer ter escolhido seu apartamento ali.
Seja como for, não havia muito o que a polícia podia fazer. Isto é, quando dois dias depois, o carro de Jennifer reapareceu, em outro condomínio, há quase dois quilômetros de distância. E, ao contrário do Mosaic, esse condomínio tinha câmeras de segurança.
Por volta da meia-noite, o carro de Jennifer é avistado entrando no estacionamento desse condomínio. Uma figura sai de dentro, deixando o carro para trás. O ângulo da câmera capta tudo isso à distância, e a baixa qualidade da imagem não permite uma boa identificação.
Outro ângulo de câmera, no entanto, é mais promissor. Ele capta o indivíduo caminhando pela calçada, acompanhando um muro gradeado. O problema é que a câmera tinha um delay de três segundos entre cada frame, e quando o sujeito entra em foco, ele é obscurecido por uma barra de ferro da grade. A polícia conseguiu determinar que o sujeito era do sexo masculino, tinha aproximadamente 1,70m, e vestia um macacão de serviço, como aqueles usados por pintores e pedreiros.
Por conta da baixa qualidade da imagem, e pelo azar da figura ter sido obscurecida pelas grades, a melhor pista da polícia era de pouco uso. Anos depois, a própria NASA forneceu ajuda, tentando clarear e limpar as imagens de CCTV com softwares avançados, mas de nada serviu. A segunda pista era o próprio carro. Primeiro, detectaram que alguns itens pessoais de Jennifer tinham desaparecido: sua bolsa, documentos pessoais, carteira, cartões de crédito, iPod e seu celular. O interior do carro tinha sinais de ter sido limpado completamente. O capô do veículo continha traços de uma luta, como se alguém tivesse sido lançado sobre o capô, e se apoiado nele com as mãos espalmadas. Numa das muitas críticas que a polícia recebeu, eles não fizeram nenhum teste no capô do carro.


De 2006 até o presente, quando o desaparecimento de Jennifer Kesse completou dezenove anos, nenhuma nova pista surgiu. A teoria sustentada pela família, policiais e também por detetives particulares que trabalharam no caso é que Jennifer Kesse foi sequestrada pela manhã do dia 24 de janeiro, possivelmente às sete da manhã, quando saiu de seu apartamento e caminhou até seu carro, no estacionamento de seu condomínio. E as evidências e testemunhos apontam para um trabalhador. Alguém que provavelmente estava todos os dias no condomínio de Jennifer, e podia acompanhar sua rotina e movimentos, e sabia quando e como atacar.
IV.
Ao contrário do que vemos no cinema, imagens de CCTV e outros dispositivos são perturbadoras por serem banais. São fragmentos, recortes da realidade nua e crua, que parecem conter alguma qualidade de obscenidade. Orwell e Zamiatin já tinham intuído que há algo de pornográfico nessa exposição e exibição crescentes, mas principalmente quando vemos algo que parece que não deveríamos. Penso no caso do assassino em série inglês Stephen Griffiths, autor da onda de crimes que ficou conhecida como “os assassinatos de Bradford”. Griffiths, um estudante de psicologia com especialização em criminologia, é um psicopata de nascença, e nunca escondeu dos outros a sua natureza violência. Psiquiatras e terapeutas que o atenderam ao longo de sua vida já haviam relatado que ele fantasiava com a possibilidade de se tornar um serial killer, e foi isso o que ele fez, nos anos de 2009 a 2010.
Susan Rushworth, 43 anos, desapareceu no dia 22 de junho de 2009; Shelley Armitage, 31 anos, no dia 26 de abril de 2010; e, por fim, Suzanne Blamires, 36 anos, no dia 21 de maio do mesmo ano. Partes dos corpos das duas últimas mulheres foram encontrados no rio Aire, no condado de Shipley. Os restos mortais de Rushworth nunca foram localizados. Todas as três mulheres eram prostitutas que atuavam na região de Bradford.
O que fez com que Griffiths fosse capturado foi, justamente, câmeras de segurança. A polícia já sabia do histórico violento e incriminado de Griffiths, e notificou a sindicância do prédio em que ele morava a prestarem atenção redobrada no inquilino. Parte do esforço seu deu pela instalação de mais e novas câmeras de segurança por todo o complexo de apartamentos.
E, quando a polícia decidiu analisar a câmera que vigiava o corredor do andar do apartamento de Griffiths, eles captaram o momento em que - no que parece uma cena saída de Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis - Blamires emerge do apartamento de Griffiths, e corre desesperadamente pelo corredor. Momentos depois, Griffiths aparece, andando calmamente, com confiança. Ele empunha uma besta. Pouco antes de desaparecer do enquadramento, ele olha para a câmera e faz o dedo do meio para a lente, em desafio.


A imagem completa não foi liberada, mas sabemos que Griffiths disparou uma flecha em Blamires, atingindo-a no corredor (Griffiths, em seu julgamento, se auto-intitularia de “The Crossbow Cannibal”). É algo que parece saído de um filme, mas a imagem granulada, em baixa resolução, somada ao pulos de frames, trazem uma realidade esmagadora a um assassinato real. A coreografia encenada por Griffiths surge como um balé macabro.
V.
A ideia baudrillardiana de que, na pós-modernidade, tudo é um simulacro e uma simulação, onde o signo se tornou autônomo a ponto de perder seu referencial com a realidade, é demolida pela brutalidade dos atos de Griffiths. Na verdade, talvez não seja bem assim.
Se por um lado, a realidade emerge nua e crua - o referente explode em sangue e cadáveres -, por outro lado, esses assassinos, que outrora faziam de tudo para se manterem ocultos, agora parecem querer a todo custo se usarem das câmeras - do simulacro e da simulação - para atingirem notoriedade. E não só Griffiths - assassinos como Luka Magnotta, que documentava desde tortura de animais até assassinato, necrofilia e esquartejamento de humanos, disponibilizando os filmes na internet, passando por mass shooters como o terrorista responsável pelo massacre na mesquita de Christchurch, Nova Zelândia, em 2019, transformando o seu ato em uma sequência que parece saída do game Call of Duty, o que vemos é algo que mescla a realidade com a ficção, a bruta noção grotesca de crimes inimagináveis com um tipo de ensaio e coreografia que parecem saídos de um thriller de Hollywood. Há um quê de pornográfico - contando inclusive com a dessensibilização subsequente, por trás dessas imagens.
Sim, Dr. Mabuse está olho, mas nem ele é capaz de acreditar - entender - aquilo que vê.
Referências
> Missy Bevers
https://www.fox4news.com/news/who-killed-missy-bevers-8-years-later
https://www.fox4news.com/news/new-video-surfaces-in-missy-bevers-murder-mystery
> Jennifer Kesse
https://www.realtor.com/news/trends/inside-florida-condo-jennife-kesse-missing/
https://people.com/jennifer-kesse-disappearance-missing-case-8774071
https://www.foxnews.com/us/missing-jennifer-kesses-family-holds-hope-possible-dna-evidence
https://www.cbsnews.com/news/jennifer-kesse-kidnapping-phantom-figure/
A capital do Texas é a cidade de Austin.