Ontem chegamos ao final daquele que é um dos maiores sucessos da televisão, a série Sucession, criada por Jesse Armstrong e com produção executiva de, entre outros, Mark Mylod, Will Ferrell e Adam McKay. Eu geralmente torço ao nariz para tudo que está na moda; o hype, afinal, é geralmente uma grande besteira.
Mas não dessa vez.
Eu demorei para entrar na série mas, depois que comecei, não consegui parar. Succession de fato é uma obra magistral, daquelas que nos fazem lembrar o que é a verdadeira arte da televisão dramática e serializada.
Digo isso por que, desde que entramos na tal da Golden Age of Prestige TV, marcada pelo sucesso de séries de The Sopranos, Mad Men, Six Feet Under, Breaking Bad, True Detective, House of Cards, Game of Thrones etc que passaram a dominar a “conversa cultural”, suplantando o papel de livros e cinema, cristalizou-se a ideia, principalmente entre cineastas, de que a TV é o futuro. Não, não é, e cinema e TV são coisas diferentes. Não obstante tenhamos séries como Euphoria, Tokyo Vice, Rings of Power e Too Old to Die Young, que possuem um acabamento estético melhor do que muitos filmes que vemos por aí, a verdade é que elas são exceções, e a arte da TV dramática não é essa. A arte de uma série não é a arte do diretor, mas sim a do showrunner e, depois, a dos roteiristas e do elenco. Estrutura narrativa, divisão de arcos temáticos e de conflitos ao longo de uma temporada, que se articulam em episódios, cenas, beats dramáticos. Seu sucesso estético se dá pelo talento dos atores, da fina carpintaria do roteiro e, no plano da direção, algo fortemente inspirado em Howard Hawks: duelos violentos que se dão nos planos dos diálogos, da mise-en-scéne extremamente sofisticada e, mais do que tudo, uma montagem que costura isso perfeitamente. Uma das marcas de Hawks era justamente a sua habilidade de montar cenas de diálogos com três ou mais personagens, com todos falando um sobre os outros. Poucos conseguem fazer isso, e é mérito que os diretores de Succession, liderados por Mark Mylod, tenham conseguido fazer isso. Dito isso, não vou entrar nestes méritos sobre a arte da TV dramática serializada. Quero comentar um pouco sobre a série, tendo em vista que ela chegou recentemente ao seu final.
Succession é nada menos que um dos maiores sucessos culturais recentes. A série abocanhou os principais prêmios, com membros do elenco - Brian Cox, Jeremy Strong, etc - vencendo repetidamente estatuetas pelo seu trabalho extraordinário. A série em si - mais uma no estelar catálogo da HBO - é sucesso de audiência, e é justo dizer que poucas conseguiram mobilizar o debate cultural como ela.
Além disso, Succession parece entrar no zeitgeist de obras que abordam a vida dos super-ricos: os filmes The Glass Onion: A Knives Out Mystery (idem, 2022, de Rian Johnson), O Menu (The Menu, 2022, de Mark Mylod, de Succession), Infinity Pool (idem, 2023, de Brandon Cronenberg), Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness, 2022, de Ruben Östlund) e, claro, séries como The White Lotus são alguns dos exemplos mais notáveis (e notórios). Com seu estilo documental, um falso cinema veritè (lembra um pouco o seriado The Office), Succession também entra nessa mesma categoria, de desnudar e satirizar os hábitos e estilo de vida excêntrico e dispendioso dos super-ricos.
Mas Succession vai além, ainda que aborde temas semelhantes aos dessas obras (inclusive, o de classe - em época de identitarismo doentio, o ressurgimento e persistência do discurso sobre classes sociais e econômicas deveria ser notado e analisado com mais carinho por resenhistas e críticos culturais). Isso se dá pela forma nada menos brilhante que o showrunner Jesse Armstrong costura referências que vão de William Shakespeare a Aldous Huxley, montando um complexo emaranhado de personagens ambíguos, multifacetados, e jogos de poder labirínticos. Succession é o mundo dos super-ricos, sim, mas é também o mundo de William Shakespeare e suas complexas intrigas palacianas, recheada de múltiplas traições, desejos sexuais e demonstrações de crueldade e estupidez patética.
Comece com um indivíduo e, antes que se dê conta, você concluirá que criou um tipo; comece com um tipo e concluirá que o que criou foi - nada. Isso é porque todos nós somos aves raras, e mais raras ainda no que se passa por trás dos rostos e vozes, naquilo que escondemos dos outros e que nem nós mesmos conhecemos. Quando ouço um homem dizer que é “um sujeito comum, honesto e franco”, já sei que ele tem alguma perversão terrível a esconder - e que a afirmação de ser comum, honesto e franco é apenas uma forma de lembrar a si mesmo o próprio crime.
Não existem tipos, nem generalizações. Existe um menino rico e esta é sua história, não a de seus irmãos. Passei a vida junto de seus irmãos, mas só dele fui amigo. Além disso, se fosse escrever sobre os irmãos, teria de começar criticando todas as mentiras que os pobres já contaram sobre os ricos e que os ricos já contaram sobre si mesmos. É uma estrutura tão bem urdida que, quando pegamos um livro sobre os ricos, já nos preparamos instintivamente para a irrealidade. Mesmo os narradores mais neutros e inteligentes pintaram o mundo dos ricos de forma tão irreal quanto uma terra de conto de fadas.
Vou lhes contar sobre os muito ricos. Eles são diferentes de mim ou de você. Habituaram-se desde cedo a possuir e usufruir, e isso modifica alguma coisa dentro deles, faz com que sejam suaves naquilo em que somos duros, cínicos quando somos esperançosos. No fundo acham-se melhores do que nós, porque temos de descobrir por conta própria os refúgios e compensações da vida. E, mesmo quando mergulham profundamente em nosso mundo ou descem abaixo do nosso nível, ainda assim continuam achando que são melhores do que nós. Eles são diferentes. A única maneira que tenho para descrever Anson Hunter é abordá-lo como se fosse um estrangeiro e teimar até alcançar o meu ponto de vista. Se aceitar o ponto de vista dele, mesmo por um segundo, estarei perdido - e nada terei a mostrar a não ser um filme grotesco.
“O Menino Rico”, de F. Scott Fitzgerald. Tradução de Ruy Castro.
Logan Roy (Brian Cox) o poderoso bilionário que comanda o império midiático Waystar Royco. Inspirado no controverso magnata australiano Rupert Murdoch, dono da Fox News, Roy é proprietário de inúmeros jornais, canais de televisão (como a ATN, fortemente inspirada na Fox News), estúdios de cinema e televisão (dessa vez, inspirados na 20th Century Fox, recentemente vendida para a Disney), parques de diversão e uma série de outros empreendimentos no ramo da comunicação, entretenimento e turismo. No começo da série, Logan tem um AVC e chega perto de morrer. Seus filhos - Kendall (Jeremy Strong), Roman (Kieran Culkin) e Siobhan (Sarah Snook) - passam a lutar para assumir o controle do seu império. O problema é que Logan sobrevive, e logo se decide por retomar o controle da sua empresa, para o desespero dos filhos. O que se segue é um espetáculo grotesco de luta pelo poder, com os filhos guerreando entre si pela coroa da Waystar Royco. No meio disso, temos as tramóias do conselho de acionistas da empresa; de antigos funcionários, como Gerri Kellman (J. Smith Cameron), Frank (Peter Friedman), Karl (David Rasche); e também de outros pretendentes ao trono, no caso Primo Greg (Nicholas Braun) e Tom Wambsgans (Matthew Macfayden), que é casado com Siobhan (ou Shiv, como é chamada). Para completar toda essa intriga palaciana, temos o próprio Logan. O patriarca da família Roy é um homem duro, cruel, com uma genialidade diabólica e cujo poder se estende até as mais altas esferas do governo americano. Logan não hesita em instigar os filhos uns contra os outros, claramente estimulando um conflito estilo survival of the fittest, e os humilha constantemente diante de funcionários e do público em geral.
Armstrong coloca uma série de referências dramáticas em sua série: Charles Dickens, F. Scott Fitzgerald (há uma referência explícita ao conto O diamante do tamanho do Ritz, um dos favoritos deste que vos escreve) e, claro, William Shakespeare. E, como não poderia deixar de ser, ao tratar da vida e obra de um magnata das comunicações com um enfoque shakespereano, naturalmente pensamos em Orson Welles e seu Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Sem dúvida vale a pena explorar estas referências na série, pois Armstrong compreende como poucos estas referências e também a sua relevância com o mundo atual. O grande triunfo de Armstrong, para além da forma como ele compreende e costura todas essas referências, além do seu brilhante talento para diálogos, construção de personagens e trabalho temático, é o seu senso de humor. Sucession é uma série de humor negro e ácido, que retrata esse covil de lobos com um senso de humor arrebatador e implacável.
O grande conflito que anima as quatro temporadas de Succession se dá em torno da pergunta “Quem assumirá o controle da Waystar Royco após a saída de Logan?”. O conflito vai escalando ao longo das suas quatro temporadas, que são marcadas por tantas negociações, traições e reviravoltas que perdemos o senso de direção. Os filhos, não obstante tenham sofrido uma criação dura e cruel dos pais, são eles mesmos canalhas, dados a atos de crueldade e sordidez que rivalizam com os piores comportamentos de Logan. Não há heróis e vilões, e no meio disso nós, espectadores, sequer sabemos para quem “torcer”. Na verdade, não há como torcer. O drama é saber quem chegará em primeiro, sim, mas também como vão chegar em primeiro.
Ao mesmo tempo em que este conflito ocupa o eixo central da série, Armstrong costura outro: no caso, a própria sobrevivência da Waystar Royco - uma parte da legacy media que se vê ameaçada por start-ups de comunicação digital, dados e redes sociais. Logan percebe que as novas tecnologias - aplicativos, redes sociais, streaming, coleta de dados etc - são o futuro, e se a Waystar não se adaptar, será engolida e destruída por elas.
Na primeira temporada, Kendall compra uma gigante digital, a Vaulter (inspirada no site Gawker), claramente tentando guiar a Waystar para esse futuro. Kendall não percebe, no entanto, que comprou uma empresa que está claramente em dificuldades financeiras e potencialmente fraudando seu desempenho, e sua manobra acaba que por empoderar o seu dono, Lawrence Yee (Rob Yang), que despreza os Roy - e Kendall em particular. Tão logo se recupera, Logan ordena que Kendall se desfaça da Vaulter, eliminando a ameaça de Yee ao mesmo tempo em que humilha o seu filho - então o sucessor natural ao cargo. Ao fazer isso, abre espaço para que os outros filhos, assim como Greg e Tom, comecem a lutar pelo trono. Mas é exatamente essa mesma trama que faz com que Kendall, mais uma vez, tente não mais comprar, mas sim vender a Waystar para Matsson (Alexander Skarsgård), magnata sueco dono da GoJo, um império digital e tecnológico que precisa do catálogo da Waystar para expandir suas operações. Ou seja, ao longo das quatro temporadas, o que Armstrong faz é, na verdade, abrir e fechar um ciclo onde os conflitos se dão de forma rimada. E essas rimas e repetições permitem que estudemos os personagens e compreendamos sobre o que a série está de fato falando.
Pouco antes da exibição do último episódio, eu escrevi no Twitter que apostava que Tom Wambsgans seria eleito como CEO e, portanto, como herdeiro da coroa de Logan Roy, que faleceu no começo da quarta temporada. Apesar de ter acertado previsão, a verdade é que Tom não é exatamente o novo Logan - Matsson é. Logan não criou seu império do nada: ao longo das temporadas, descobrimos que não só ele cresceu na mais absoluta miséria, como o primeiro jornal que teve, o Waystar, foi dado a ele por seu tio cruel e abusivo. A partir dele Logan construiu seu império. De igual maneira, Matsson também não é um gênio da computação e programação - o sistema GoJo foi criado e desenvolvido por outra pessoa, e foi “dado” a Matsson, que o expandiu consideravelmente. Ambos - Logan e Matsson - são extremamente duros, diabólicos em suas jogadas empresariais, e a verdade é que nenhum outro personagem é páreo para qualquer um deles. Ao escolher vender a Waystar para a GoJo, Logan já escolheu o seu sucessor, e já concedeu que sua empresa só poderá continuar se for fundida a uma tech giant. Mas isso nos deixa os filhos, sobrinho e enteado, e minha intuição sobre Tom se deu após o segundo episódio da quarta temporada, “Rehearsal”.
O filho mais velho e de outro casamento, Connor Roy (Alan Ruck), que nunca teve interesse nos negócios do pai, está em um karaokê tentando comemorar o seu casamento, após a sua noiva, a garota de programa Willa (Justine Lupe) o largar para festejar com as amigas. Connor é acompanhado dos irmãos, que planejam bloquear a venda da Waystar para se vingar do pai, que ao final da terceira temporada tirou boa parte do poder deles sobre a companhia. Além disso, é aniversário de Logan, e nenhum dos filhos foi à sua festa. Encurralado, o patriarca se dirige até o karaokê para uma conversa franca com eles.
O que se sucede é de fato uma das cenas mais tocantes de toda a série, onde Logan, pela primeira vez, parece de fato se abrir emocionalmente aos filhos, inclusive pedindo desculpas a eles. E pede encarecidamente que eles não bloqueiem a venda, pois é a última chance que a Waystar - e deles, por extensão - tem de sair do negócio mais ricos e poderosos antes que seja tarde demais. Os filhos, no entanto, não querem saber nada disso, e dessa vez eles que humilham o pai. Eles não planejam vender, sob o risco de perderem para sempre o controle da empresa. E então Logan perde a calma e diz aquela que é uma das frases mais importantes da série: “Vocês não são sérios”. Logan sai e, na rua, entrando em seu carro, comenta com sua amante, Kerry (Zoe Winters), que em Nova York as pessoas sobrevivem como ratos, vasculhando comida no lixo, e que seus filhos não tem a menor ideia do que é isso. No episódio seguinte, Logan morre no momento crucial de negociação da venda da Waystar, restando aos filhos a batalha final pelo controle da empresa.
Ao falar que eles não são sérios, imediatamente percebemos que nenhum daqueles que estão presentes podem ter alguma chance ao trono. Logan está certo: nem Kendall, nem Shiv, e muito menos Roman, são pessoas sérias. Eles estão ali só pelo poder, e sequer sabem porque querem a empresa. Tão logo assumem como CEO e COO interinos, Kendall e Roman começam a se comportar da maneira mais estúpida e infantil de todas: primeiro, Kendall manipula imagens do pai para que este o “apoie” após a morte para que, com isso, consiga vender um ambicioso - e impraticável - plano de vida após a morte; e Roman, por sua vez, sai demitindo a torto e direito figuras importantíssimas da empresa, somente por que elas o contrariaram. Kendall e Roman acreditam que o pai governava “do jeito que queria”, sem oposição, moldando a realidade pela simples força de sua personalidade. O que eles não entenderam, e essa é a brutal filosofia de Logan, é que a vida é uma batalha constante. Os filhos não tiveram que procurar na lixeira por comida, e não levam a vida a sério. Mais do que isso: eles não tem consciência da realidade da morte.
Ao longo da série, sabemos que existe uma tal de “irmã de Rose” que faleceu em circunstâncias misteriosas, e que ninguém sabe realmente a verdade sobre o que aconteceu com ela. Durante o enterro de Logan, seu irmão, Ewan (James Cromwell), revela que Rose era a irmã deles, e que faleceu ainda criança, vítima de poliomielite - uma doença que, vale lembrar, aflige classes pobres, economicamente vulneráveis. Esse é um fato que marcou Logan profundamente, e sem dúvida é definitivo em sua formação. Não creio que seja exagero supor que Rose é, na verdade, a Rosebud de Logan.
A morte se torna um dos temas principais da quarta temporada. Não só temos a morte de Logan, mas também a morte simbólica de sua empresa, que é absorvida pela GoJo. Mas a morte é importante também para compreendermos os três filhos que disputam o comando da empresa. Kendall, Shiv e Roman sentem profundamente a morte do pai, mas eles sentem muito mais a oportunidade que isso abre para eles. Esse é um dos pontos magistrais de Succession: a sofisticação em nos mostrar um mundo frágil, onde a balança de poder e o caráter dos personagens não é de fácil definição. Isso fica muito claro na temática da morte, em especial na figura de Kendall.
Ao final da primeira temporada, durante o casamento de Shiv e Tom, que se dá num castelo no interior da Inglaterra, Kendall se envolve num acidente. Viciado em drogas, Ken sai da festa na companhia de um garçom que vai lhe levar a mais drogas. Chapados, o garçom se distrai no meio do caminho e sem querer causa o acidente, lançando o carro num lago. Ken consegue escapar e, mesmo tentando salvar o garçom, ele falha e o rapaz morre. Logan vem ao socorro, encobrindo a história e livrando a barra de Ken. O problema é que, anteriormente, Logan visivelmente destratou o garçom e o demitiu na frente de todos na festa. Isso faz com que, na segunda temporada, Logan tenha que ir prestar suas condolências na casa dos pais do rapaz. Logan exige que Ken o acompanhe e, num momento chave para a série, ele se mostra incapaz que se juntar aos pais do garçom, preferindo ficar escondido na cozinha.
Ken ficou visivelmente abalado com a morte do menino, mas sua preocupação mesmo se dá com sua reputação, e se esse fato pode eventualmente prejudicá-lo ao cargo. Vemos isso se repetir o tempo todo com Ken. Ao final da quarta temporada, por exemplo, sua filha adolescente, de origem indiana, passa a ser hostilizada pelos apoiadores racistas do candidato à presidência Jeryd Mencken (Justin Kirk). Mencken é um proto-fascista, e apoiado pela Waystar através de editoriais inflamatórios divulgados no canal ATN. Apesar de visivelmente incomodado e sensibilizado pela ameaça que Mencken representa, a verdade é que Ken se preocupa ainda mais em ter um aliado poderoso na Casa Branca. Nesse sentido, Ken herdou o que há de pior em Logan, mas sem ter nada para contrabalançar isso.
Do mesmo jeito, Roman é um rapaz pervertido e com sérios problemas de auto-estima, que se protege com um senso de humor afiado e ligeiramente demente. Mas Roman também nutre uma espécie de paixão doentia por Gerri, a responsável jurídica da Waystar e CEO interina. Roman constantemente manda fotos do próprio pênis para ela, e seu pai acaba descobrindo isso por acidente (em uma das cenas mais hilárias da série). O que incomoda Logan não é tanto que Roman seja um pervertido, mas sim que, ao enviar fotos de seu pênis para outras pessoas, ele está necessariamente abrindo flancos e expondo fraquezas que podem ser explorados por adversários inescrupulosos. Roman não sendo “uma pessoa séria”, pois sequer vê Gerri como uma ameaça. Ele, assim como Kendall e Shiv, se acham reizinhos, herdeiros naturais e mestres da realidade - quando a verdade é que eles devem constantemente batalhar para garantirem o poder.
As duas únicas pessoas que entendem isso de fato são os outsiders: Tom e Greg. Greg se faz o tempo todo de bobo e idiota, mas é tão maquiavélico quanto os primos, ao passo que Tom veio de uma família caipira e classe baixa. Tom “comeu da lixeira”, assim como o próprio Logan. Por ter esse skin in the game, Tom de fato sabe o que está em jogo. E Tom, ainda que seja um canalha e um idiota que se humilha, ele faz isso porque sabe que esse é o caminho para o poder. E mais: ele topa se sacrificar por isso. Quando a empresa é abalada por um escândalo de assédio sexual, Tom prontamente se coloca à disposição de Logan, que diz claramente que o ciclo de ataques que a empresa sofre dos acionistas e do governo federal só será interrompido por meio de um sacrifício. Kendall deveria ser a pessoa a ser sacrificada, mas ele dá um truco no pai no final da segunda temporada, armando um esquema para não só se livrar do sacrifício mas também para colocar o seu pai no altar. Tom, na figura de outsider, não tem muita escolha e continua com a ameaça de prisão. Isso faz com que ele seja imediatamente notado por Logan - e somente por ele. Shiv, sua esposa, que nunca levou Tom a sério e o trata como um subalterno e por vezes como brinquedo sexual, despreza completamente o drama que o marido sofre com uma prisão iminente. Na verdade, ela não está nem aí para ele - não é uma pessoa série, não sabe o que é ter que comer da lixeira para sobreviver. Tom engole todas as humilhações, também se fazendo de bobo, enquanto ele mesmo mostra o seu valor como “Yes Man” que cumprirá as ordens dos superiores. Por incrível que pareça, ao se dispor a “puxar cana” pela empresa, Tom se torna uma “pessoa séria”.
“Tom se torna”. Essa é a dica que Armstrong nos deu ao longo de toda a série: Tom é o único personagem que de fato tem um arco. Ele muda e evolui como personagem, ao passo que Ken, Shiv e Roman são incapazes de mudarem. É da natureza deles serem, para sempre, os filhos de Logan, e nunca adultos. Essa incapacidade de amadurecer é notada por Matsson, que prontamente se usa dessa percepção para manipular as circunstâncias ao seu favor. Assistindo a série pelo ponto de vista de Tom, temos quase que uma narrativa de aprendizagem, onde ele aprende a ler o mundo e a compreender seu papel nele, e isso é muito bem realizado por Armstrong na forma como ele constrói o relacionamento de Tom e Shiv. O relacionamento dos dois mostra como a série é uma análise das questões sexuais e de classe que cortam a sociedade americana.
Isso tudo me faz lembrar de um romance de Aldoux Huxley, Contraponto (1928). Trata-se de um romance atípico na obra do escritor, não só por ser longo, mas também por ser uma espécie de roman a clef, que sai das amarras da ficção-científica e especulativa. O romance não tem um enredo propriamente dito, sendo muito mais um retrato da classe superior da Grã-Bretanha. Burgueses, aristocratas em decadência, artistas e mesmo políticos, como fascista Webley (inspirado em Oswald Mosley), são retratados de forma seca, direta e sem romantismo algum. Ao mostrar suas vidas íntimas, mergulhando nas contradições sexuais, nos sonhos patéticos de seus personagens e nos desejos frustrados de muitos deles, Huxley nos desvela uma sociedade em decadência, vivendo o crepúsculo de um império. A comparação com Fitzgerald não é imprópria: além de representar os diferentes núcleos que compõem a alta sociedade inglesa, Huxley também faz um retrato brutal do que foi o período do entre guerras: os roaring twenties.
E Aldous Huxley é um autor que acreditava que toda convicção é só a forma social de um disfarce. Toda pessoa, desse modo, transforma-se imediatamente no esboço de um personagem (…)
A máscara e o disfarce, vinculados à esfera individual, se desdobram na convenção e no artifício vinculados à esfera simbólica: se o mundo humano de Contraponto é marcado por uma superficialidade que beira a histeria, sua metafísica só pode ser um hobby de corruptos - como a ciência se limitava a encenar a sedução da verdade, a arte se limita a encenar a sedução da mentira. Para a severidade agressiva do ideal de Huxley, são duas opções inviáveis.
“Prefácio”, de Sérgio Augusto de Andrade. Pág. 14.
Com isso, “Contraponto é um romance que mostra que toda rã é só um escorpião disfarçado”. Ou seja, Succession, em outras palavras. Com isso, não faço somente alusão ao fato de que Tom Wambsgans presenteia a sua esposa, Shiv, com um escorpião preservado em um cubo de vidro, mas sim ao fato de que Contraponto possui inúmeros paralelos com a série de Armstrong.
Shiv, por exemplo, parece ser a combinação de duas personagens femininas do romance, Marjorie e Lucy. Marjorie representa o clichê da mulher que se faz vítima constante dos homens, grávida e traída por eles, ao passo que Lucy é a epítome da mulher moderna: transa com quer, quando quer, e ainda por cima luta diretamente com os homens em seus espaços de poder. O resultado é uma vida pobre e solitária, pois todos os personagens de Contraponto escutaram aquilo que Huxley denomina de “o cochicho do demônio”. Segundo Huxley, aqueles que se deixam encantar por esse cochicho vê a sua alma se tornar algo estéril, e sua vida esmagada por um “coração seco como poeira”. Ao mostrar a hipocrisia que marca a vida social da elite inglesa, Huxlye nos mostra toda uma classe de pessoas de que tiveram suas almas ressecadas pelo cochicho do demônio. O cochicho do demônio, em outras palavras, é o cochicho daqueles que mentem constantemente não só para os outros mas principalmente para si mesmos, incapazes de verem a realidade de si mesmos.
E não é assim em Succession também? Afinal, todos os Roy são pessoas ressecadas, esmagadas pela própria secura de seus corações. Isso fica muito claro no tenso e memorável diálogo entre Tom e Shiv no episódio “Tailgate Party”, o sétimo da quarta temporada. Tom percebe que Shiv não é só uma pessoa narcisista e auto-centrada, incapaz de empatia, mas também que ela é uma pessoa oca, seca por dentro. Como ele diz, ela é “transparente”.
O próprio Logan não escapa disso, e a série sugere que ele poderia muito bem ter morrido de amargura por ter falhado no seu papel de patriarca. Além disso, ele morre uma morte inglória, no banheiro do seu jatinho particular, longe dos filhos e cercado por cobras que desejam nada menos que tomar o seu lugar. E quem está presente com Logan nessa passagem? Tom.
Tom é um canalha, um mentiroso e um crápula. Ele abusa dos seus funcionários, inclusive usando-os como “mobília humana”. Toda vez que precisa fazer algo importante e potencialmente danoso, ele rapidamente tira o corpo fora e joga suas responsabilidades nos colos dos outros, como Greg. Sim, Tom é um mentiroso, um crápula e um funcionário medíocre. Mas Tom não mente sobre aquilo que é essencial: o amor. Ele de fato ama Shiv, ainda que essa o trate constantemente como um objeto. Sempre a colocou como parceira em seus planos de tomar controle da Waystar, ainda que ele mesmo jamais tenha se imaginado como um sucessor em potencial. Tom também não mente sobre quem é, ao contrário de Shiv, pois assim como Logan, sabe perfeitamente quais são as suas origens. Tom sabe o quer : luxo, riqueza, bons vinhos, boas roupas. Ele gosta desses bens materiais, vive para eles. Ken, Roman e Shiv sequer sabem porque desejam a Waystar - eles querem o poder, e nada mais. É o poder pelo poder, talvez a maior forma de mentira.
Em Contraponto, todos são afetados pelo cochicho do demônio, de uma forma ou de outra, mas um personagem emerge como vencedor: Burlap. Burlap, assim como Tom, é um canalha que aspira a voos mais altos. Editor de livros, Burlap cultiva a aparência de ser um católico fervoroso, moralista, dono da verdade, e que inclusive se compara o tempo todo a São Francisco. Na verdade, Burlap é um verme inescrupuloso, que vive somente pelos prazeres mais hedonistas e fúteis, e que ainda por cima se casou com uma menor de idade profundamente fragilizada e vulnerável, Beatrice, vítima de abusos sexuais. Burlap é, em outras palavras, um medíocre - abusava de seus funcionários, não os pagava, e mentia a todos em buscas de melhores vantagens - mas é a sua mediocridade que faz com que ele ascenda na história, fechando um contrato extremamente lucrativo, e disparando na frente dos outros personagens da história. O narrador (Huxley) é taxativo: é Burlap quem vai “herdar a Terra e o Reino dos Céus”. Assim como Tom, percebe que a canalhice e a mediocridade são as melhores “qualidades” que se pode ter no mundo moderno.
Tom é um “Yes Man”, que topa se submeter e cumprir todo tipo de absurdo que seus superiores pedirem, pois sabe que sua posição no mundo é frágil e constantemente negociável. Ele tem a “consciência da morte” (no caso, a morte simbólica, isso é, a prisão). É por isso que ele é o verdadeiro herdeiro, e não é difícil imaginar o velho Logan aprovando dessa decisão. Logan sabe que é o imperador de um império em franca decadência. As múltiplas neuroses e bizarrices de seus filhos - o vício de Ken, a perversão de Roman, a loucura de Connor e corrupção de Shiv - é uma alusão pouco velada às antigas linhagens degeneradas de antigos monarcas europeus, fruto de relações incestuosas. Logan também percebe que não é só o seu império que está em decadência, mas também os Estados Unidos como um todo. Fugindo da Europa, um continente que é pouco mais que a “carcaça de uma civilização”, nas suas palavras, Logan se tornou um self-made man, um monarca que fez a si mesmo. É um tema eminentemente Fitzgeraldiano (e Wellesiano também), afinal, é o tema do sonho americano.
Segundo o crítico literário Harold Bloom, o sonho americano é um tema recorrente na imaginação cultural do país que, com sua constituição moderna, sem uma nobreza ou aristocracia natural, como nas nações européias, criou o mito social da constante construção e da ideologia do progresso, intimamente associada ao avanço tecnológico e expansão territorial (a conquista do Oeste sendo o exemplo mais famoso). O destino do cidadão americano não se dá em classes sociais rígidas e hierárquicas, mas sim na promessa da construção auto-suficiente, individual e com a ética protestante do capitalismo.
Os Estados Unidos eram o único “país” em que “trabalhador” era a descrição de um emprego, mais que um emblema de classe. Parece que a maioria dos americanos realmente acreditava, como Lincoln disse que deveriam fazer, que suas vidas iriam melhorar, que não havia limite para as perspectivas que podiam ser abertas pelo trabalho duro e pela imaginação. Eles escolhiam o novo quase como uma coisa natural - coisas novas a comprar, maneiras novas de fazer ou produzir as coisas. Era para se livrar dos obstáculos do status conquistados por corporações de artesãos, de práticas comerciais há muito estabelecidas, que eles ou seus ancestrais próximos tinham ido para a América em primeiro lugar. Como povo radicalmente desarraigado, os americanos mudavam laços de trabalho e de lugar com a mesma facilidade que trocavam sapatos velhos. Observadores da época ficaram pasmos com o fato de os pioneiros que ocuparam as terras do Oeste não serem camponeses sem terra, mas principalmente fazendeiros bem sucedidos da Pensilvânia ou de Nova York que queriam subir para operações de maior escala (…) O estilo livre americano deixou condições ímpares para um empreendedor ambicioso. Mesmo muito antes da Guerra Civil, alguns ingleses de visão já começavam a ficar alarmados com o radicalismo da visão americana. [grifos meus]
Os magnatas: como Andrew Carnegie, John D. Rockefeller, Jay Gould e J.P. Morgan inventaram a supereconomia americana, de Charles R. Morris. Trad. Edmundo Barreiros. Ed. L&PM. Porto Alegre: 2017. Págs. 47-8.
A força do mito americano perpassa épocas e diferentes era da história dos Estados Unidos, e Bloom sugere um cânone de autores que, além do próprio Fitzgerald, se engajaram com esse tema: Ralph Waldo Emerson, Mark Twain, Henry James, Wallace Stevens, Ernest Hemingway, Robert Frost, Hart Crane e diversos outros. Para explicar um pouco esse funcionamento, preciso fazer uma breve digressão à obra de Fitzgerald.
O grande Gatsby tem o sonho americano como eixo temático central, um subtexto que informa e anima o mundo habitado por Gatsby, Daisy, Tom e Nick. É um sonho que “qualifica o caráter nacional” dos Estados Unidos, ao mesmo tempo pessoal e individual e coletivo: “A história americana, escreveu Fitzgerald,‘ é a história de todas as aspirações - não apenas do sonho americano, mas do sonho humano…’” [“The American story, Fitzgerald wrote, ‘is the history of all aspiration - not just the American dream but the human dream…’”]. Fitzgerald retrata o sonho americano não tanto como uma história sobre sucesso, mas sobre o fracasso - tema este que, de acordo com o crítico literário Leslie Fiedler, perpassa toda a sua obra. Na verdade, Fitzgerald vê (ou sugere) o sonho americano como a possibilidade de se reinventar constantemente. Ao contrário da sociedade européia, mais tradicional e aristocrática, com seus séculos de história, os Estados Unidos são mais recentes, e imbuídos de uma cultura comercial que permite constantes reinvenções. Ou seja, a obra de Fitzgerald, ao retratar a busca pelo sonho americano, mais do que uma questão regional ou mesmo nacional, é de interesse universal, pois retrata, afinal, o o insaciável desejo humano por uma vida melhor. Justamente por ser insaciável é que ele termina, se não de forma trágica, ao menos com uma conformação e adequação à realidade.
Além de O grande Gatsby, vemos isso se repetir de forma recorrente em outros romances e contos: O último magnata, Menino Rico (1926), Babilônia revisitada (1931), etc. Em O diamante do tamanho do Ritz (1922), uma de suas novelas mais famosas, vemos Fitzgerald adentrar em um universo ficcional surreal e absurdo, próximo ao realismo mágico de O curioso caso de Benjamin Button. Nela, acompanhamos um jovem estudante, John T. Unger, que vai passar as férias de verão do colégio na casa de seu misterioso amigo Percy Washington. Alegando que seu pai, Braddock Washington, é o homem mais rico do mundo, e que possui um diamante do tamanho do hotel Ritz-Carlton, Percy viaja de trem com John até cidade de Hades, Montana, onde a suntuosa e palaciana propriedade de sua família, construída no topo de uma montanha que oculta uma riqueza incalculável em diamantes.
Fitzgerald prossegue descrevendo a bizarra e surreal estadia de John na propriedade dos Washington. Tendo o jovem como guia, aprendemos que a família de Percy divide sua ancestralidade com George Washington, mas que seu avô, Fitz-Norman Washignton, abandonou Virginia para viver de gado e agricultura com seus escravos em Montana. Por um acaso de sorte, Fitz-Norman descobriu a montanha de diamante. Receoso de que outros (principalmente o governo federal) pudessem tomar a montanha de diamante dele, Fitz-Norman fundou um Estado oculto e paralelo: impediu com seu dinheiro e conexões políticas que o território fosse mapeado; fundou a miserável cidade “cenográfica” de Hades para afastar curiosos; montou canhões de baterias anti-aéreas para afastar pilotos curiosos que por acaso pudessem avistar sua mansão do céu; e manteve seus escravos sob controle falsificando uma declaração general Confederado Nathan Bedford Forrest afirmando que o Sul havia triunfado sob o Norte na Guerra Civil, perpetuando a escravidão para sempre. É nessa atmosfera de luxo e riqueza indescritíveis que Fitzgerald descreve uma fábula sobre a perversão e corrupção da história e do sonho americanos. O tom surreal é reforçado em uma passagem onde Percy explica a John como a construção da propriedade de sua família se deu:
John estava encantado pelas maravilhas do castelo e do vale. Braddock Washignton - foi o que Percy lhe contou - providenciara o seqüestro de um paisagista, um arquiteto, um decorador de interiores e um decadente poeta francês, sobrevivente do último século. Pôs os negros às suas ordens, garantiu-lhes que teriam toda espécie de material disponível no mundo e deixou-os livres para desenvolver suas próprias idéias. Mas, um por um, eles começaram a se mostrar inúteis. O poeta decadente quase imediatamente foi tomado de saudade dos bulevares na primavera - fez algumas vagas observações sobre ervas, macacos e marfins, mas não disse nada de valor prático. O decorador, por sua vez, queria fazer de todo o vale uma série de truques e efeitos sensacionais - algo que os Washington não demorariam a se cansar. E, quanto ao arquiteto e ao paisagista, só pensavam em termos convencionais. Isto tinha de ser feito de um jeito e aquilo de outro.
Mas, pelo menos, tinham resolvido o problema do que fazer com eles - certa manhã, todos enlouqueceram depois de passar a noite num único quarto tentando decidir sobre a localização de um chafariz, e estavam agora confortavelmente internados num hospício em Westport, Connecticut.
“Mas”, perguntou John com curiosidade, “quem planejou esses magníficos quartos e salões, corredores e banheiros…?”
“Olhe”, respondeu Percy, “tenho até vergonha de contar, mas foi um sujeito do cinema. Foi o único que encontramos habituado a lidar com uma quantidade ilimitada de dinheiro, embora não soubesse ler nem escrever”.
O diamante do tamanho do Ritz. In: 24 Contos, de F. Scott Fitzgerald. Pág. 62.
A descrição da propriedade dos Washington poderia muito bem se aplicar à San Simeon de William Randolph Hearst, e Fitzgerald usa o palácio cinematográfico dos Washington para reforçar o efeito surreal e alegórico de sua história. Um palácio tão irreal e bizarro que só poderia ter sido construído e concluído por técnicos de Hollywood, e não arquitetos, engenheiros e paisagistas. Hollywood é a indústria que fabrica produtos audiovisuais que, ao serem projetados numa tela grande, terminam que por projetar nossos sonhos ao mesmo tempo íntimos e coletivos.
Ao final, após o segredo do Washignton vazar para o resto do mundo, levando a um sangrento e apocalíptico bombardeio aéreo que destrói boa parte da mansão e tira incontáveis vidas (principalmente dos escravos), vemos o sonho dos Washington, que nesse ponto já se tornou um pesadelo, terminar em um tragédia quando Braddock, no alto da montanha, se dirige aos céus e tenta, literalmente, com toda a sua riqueza, subornar Deus. Bradando aos céus não com um tom de súplica, mas sim de condescendência (“Ei! Você aí em cima!”), e com um grupo de escravos atrás de si carregando um enorme pedaço de diamante bruto, Braddock, tal qual um “Prometeu Enriquecido”, prossegue com sua proposta: “Ele daria a Deus (…) o maior diamante do mundo”, que seria trabalhado por inúmeros homens por diversos anos.
Em troca, Braddock pedia apenas uma coisa, uma coisa que, para Deus, seria absurdamente fácil - que a situação revertesse à de ontem àquela mesma hora e assim continuasse. Tão simples! Bastava fazer com que os céus se abrissem, engolindo aqueles homens e seus aviões - e depois fechasse de novo, trazendo seus escravos mais uma vez à vida.
O diamante do tamanho do Ritz. In: 24 Contos, de F. Scott Fitzgerald. Pág. 72.
Ao fim, Braddock, ainda que monstruoso e tirânico, deseja o mesmo que Gatsby: que o tempo volte para que ele possa recuperar aquilo que perdeu.
Nunca existira alguém com quem Braddock precisasse apostar ou barganhar. Ele se perguntava apenas se a sua oferta de suborno era grande o bastante. Deus teria o Seu preço, é claro. Deus era feito à imagem do homem, assim se dizia. Ele devia ter Seu preço. Mas sua oferta era esplêndida - nenhuma catedral cuja construção tivesse consumido muitos anos, nenhuma pirâmide levantada por dez mil operários poderiam comparar-se à sua catedral, à sua pirâmide.
Fez uma pausa. Aquela era a sua proposta. Tudo seguiria suas especificações e não havia nada de vulgar em sua afirmação de que pedia pouco para o que estava dando. Queria dizer que, para a Providência, era pegar ou largar.
Ao se aproximar da conclusão, suas frase saíram trêmulas, curtas e incertas, e seu corpo parecia tenso e cansado para captar o mais leve sussurro de vida nos espaços em volta. Seu cabelo ficara gradualmente branco enquanto falava e, agora, ele levantava a cabeça na direção do céu como um profeta antigo, deslumbrantemente louco.
O diamante do tamanho do Ritz. In: 24 Contos, de F. Scott Fitzgerald. Pág. 72.
Braddock é um demiurgo, sim; mas é um demiurgo derrotado pela sua própria grandeza arrogante. Há muito que um demiurgo pode controlar, mas nunca a realidade em si:
Foi como se o céu escurecesse por um instante, como se houvesse um súbito murmúrio numa rajada do vento, um som de trombetas distantes, um suspiro como o farfalhar de um grande roupão de seda - por algum tempo, toda a natureza partilhou dessa escuridão; os pássaros pararam de cantar; as árvores ficaram imóveis; e, no alto da montanha, ouviu-se o ronco de um trovão surdo e ameaçador.
Só isso. O vento morreu na vegetação alta do vale. A aurora e o dia retomaram seu lugar no tempo e o sol despejou ondas quentes de bruma amarela que iluminaram a estrada a seus pés. As folhas gargalharam ao sol, e esse riso sacudiu as árvores até que cada galho lembrasse uma escola de meninas na terra das fadas. Deus recusara o suborno.
O diamante do tamanho do Ritz. In: 24 Contos, de F. Scott Fitzgerald. Págs. 72-3.
Observar a natureza, a folhagem, as montanhas, o céu. Fitzgerald nos leva ao terreno da paranóia, buscando sinais na realidade, conexões ocultas, uma percepção aumentada sobre o que é a natureza da realidade. Uma realidade que é comandada por um Deus, um brincalhão malévolo e irônico. De acordo com Stephen King,
[P]aranóia é a consciência perfeita. A isso poderíamos acrescentar que a paranóia é a última defesa da mente sobrecarregada. Grande parte da literatura do século XX, de fontes tão diversas como Bertolt Brecht, Jean-Paul Sartre, Edward Albee, Thomas Hardy e até mesmo F. Scott Fitzgerald, sugeriu que vivemos em uma espécie de mundo existencial, um manicômio sem plano, onde as coisas simplesmente acontecem. DEUS ESTÁ MORTO? pergunta a capa da revista Time…
Danse Macabre, de Stephen King. Gallrey Books. New York: 2010.. Págs. 331-2. Tradução minha.
O problema, como Bloom nota (a partir de Fitzgerald), é que o sonho americano termina em tragédia. O sonho americano é o sonho da humanidade: a expectativa de conquistar a natureza e triunfar sobre as adversidades, fazendo o mundo ao mesmo tempo em que o indivíduo se faz a si mesmo. Vemos isso acontecer repetidamente em livros como O grande Gatsby, O último magnata e Suave é a noite, mas também vemos em contos como “Babilônia revisitada”, “O diamante do tamanho Ritz” e, mais significativamente, “Menino rico”. O sonho americano se torna tragédia quando os homens são tomados pela hubris, e tentam tomar o lugar de Deus. Kendall, com sua tentativa literal de controlar a vida após a morte, é a face mais óbvia disso; mas Roman e Shiv, à sua própria maneira, também tentaram usurpar o lugar de Deus.
E, verdade seja dita, o próprio Logan. Afinal, é significativo que ele tenha morrido em seu jatinho, perdido em meio aos céus e suas nuvens, tentando de uma vez por todas selar o destino de todos a sua volta. A hubris de Logan - ou sibilar do cochicho do demônio - talvez tenha sido a sua incapacidade de aceitar a sua própria fraqueza. Não sei, esse é uma das grandes ambiguidades perturbadoras da obra de Jesse Armstrong, mas o fato é que o único personagem que não excedeu a “medida das coisas” foi o medíocre Tom.
Essa é uma das duras realidades de Succession: num mundo marcado por frouxos, covardes, e insanos pervertidos, o herdeiro do céu e da terra é o medíocre.
Excelente mesmo!!!!!
Ótima análise!