NO ESCURO nasceu com um breve ensaio sobre a franquia PREDADOR e, em especial, defendendo os méritos artísticos de Predador 2: A Caçada Continua. Comentei brevemente acerca de O Predador: A Caçada (Prey, 2022), o mais novo filme da franquia, dirigido por Dan Trachtenberg, e pretendo expandir um pouco meus comentários sobre este filme notável nesta coluna.
I.
Essa última semana tem sido surpreendente. Um filme da franquia PREDADOR está no centro das discussões sobre cinema e cultura, algo que, em vida, eu nunca vi. Preciso dizer que entrei em contato com o personagem e a franquia antes dos dez anos de idade, nesse ponto os filmes já eram meio antigos. Eu os amei incondicionalmente, e os amo até hoje. Mas, com o passar dos anos, PREDADOR, a franquia, foi ficando cada vez mais com o status de relíquia, filmes de sucesso que pertencem a outro tempo. Nem mesmo com o lançamento dos péssimos Alien vs Predador (Alien vs Predator, 2004, de Paul W. S. Anderson) e Aliens vs Predador 2 (Aliens vs Predator: Requiem, 2007, dos irmãos Strause) a franquia voltou para o centro do debate. O lançamento morno de Predadores (Predators, 2010, de Nimrod Antál) e o fracasso em todos os sentidos de O Predador (The Predator, 2018, de Shane Black) tampouco chegaram perto de suscitar o interesse do público. Prey parece ter se tornado um fenômeno cultural na internet, batendo recordes de exibição na plataforma Hulu e Star+. A recepção, tanto por parte da crítica especializada quanto por parte do público tem sido extremamente positiva, com muitos afirmando que o filme não só é a melhor continuação (discordo dessa opinião, como o leitor pode atestar em minha coluna sobre o segundo filme) como é até mesmo melhor que o original, o que também acho um exagero. Mas isso não significa que Prey seja um filme ruim; muito pelo contrário. O filme de Trachtenberg é supreendentemente bom, e possui uma série de conceitos e propostas que são novos para a franquia PREDADOR, e tudo isso feito com um domínio técnico notável.
Central para o conceito da franquia é a ideia da caçada. No caso, do jogo da caça. Os irmãos Jim e John Thomas, roteiristas dos dois primeiros filmes e criadores da série, se inspiraram na clássica história de Richard Connell, Zaroff: o jogo mais perigoso. Publicada em 1924, nela acompanhamos um conde sádico e cruel chamado Zaroff, que é um exímio caçador. Tendo já vencido todas as criaturas mais perigosas da Terra, só lhe resta uma única criatura que merece ser caçada, a mais perigosa de todas: o ser humano. Homens são levados até a sua ilha particular, coberta por uma selva densa, e lá participam de um jogo mortal com o conde. É um conceito simples, mas fascinante, e isso se mostra pelo volume imenso de adaptações que a história de Connell teve ao longo dos anos, tanto no cinema quanto no rádio, em histórias de quadrinhos e videogames. Para ficarmos somente no cinema, temos, entre as de maior destaque: Zaroff, o caçador de vidas (The Most Dangerous Game, 1932, de Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel); A Fera Humana (A Game of Death, 1945, de Robert Wise); Dois Destinos se Encontram (Run for the Sun, 1956, de Roy Boulting); O Alvo (Hard Target, 1993, de John Woo, e estrelado pro Jean Claude Van Damme); O Peste (The Pest, 1997, de Paul Miller, filme de comédia pastelão com John Leguizamo); A Caçada (The Hunt, 2020, de Craig Zobel); por fim, Jogo Perigoso (Most Dangerous Game, 2020), que começou como série de TV do canal CBS, mas foi lançado em outros países, como o Brasil, como um longa-metragem, disponível plataforma Amazon Prime Video, e tem em seu elenco Liam Hemsworth e Christoph Waltz. E essas são só algumas das adaptações diretas, e podemos ver que quase todas as décadas, a partir da primeira adaptação de 1932, trazem a mesma história com recontextualizações e atualizações. Isso por si só é testamento da força do conceito de Connell. Até mesmo Bacurau (2019, de Kléber Mendonça Filho) contém elementos da história original. PREDADOR, ainda que não seja uma adaptação direta da história de Connell, é obviamente fortemente inspirado no molde narrativo do conto de 1924. Eu diria inclusive que a força do primeiro é em justamente pegar uma trama familiar, mas modificando-a suficientemente, trazendo novos elementos fascinantes (o contexto do cinema de ação dos anos 80, o Predador em si, etc), que fizeram o primeiro filme ser um ícone cultural do cinema dos anos 80, e um que não envelheceu nem um pouco. Mas o interessante é que esse não é exatamente o foco da história de Prey.
Ostensivamente, o filme lida com a caça, tal como os outros da franquia. A tribo Comanche empreende uma caçada no começo do filme; o Predador veio até a Terra para caçar; e os mercadores de peles franceses estão naquela região caçando animais para o seu comércio. Mas isso é um aspecto superficial da trama, por que o foco de Trachtenberg não é na caçada, no jogo perigoso, mas sim na jornada de Naru (Amber Midthunder), a jovem caçadora e guerreira da tribo. Dutch (Arnold Schwarzenegger), assim como Mike Harrigan (Danny Glover) e Royce (Adrien Brody) podem ser os heróis que derrotam o Predador ao final de seus respectivos filmes, mas o foco desses filmes é no grupo de personagens, que vão sendo mortos um por um pelo alienígena. Isso não ocorre em Prey. Desde o começo o foco do filme de Trachtenberg é em Naru e em sua jornada. E essa não é uma jornada qualquer; é um Rito de Passagem, e o filme deve ser compreendido dessa categoria.
Antes de mais nada vale dizer que o filme é muito bem executado, e Trachtenberg dirige as cenas de ação com maestria. O jovem diretor possui um estilo claro, sem firulas, que não chama a atenção para si. As cenas de ação, por exemplo, são captadas forma clara e objetiva. O filme se utiliza de locações reais, e também de efeitos práticos. Boa parte das cenas do Predador são de fato executadas por um ator (Dane DiLiegro) em uma roupa de látex. Claro, algumas sequências requerem o uso de computação gráfica, e boa parte do sangue que espirra e pedaços de corpos que são mutilados são feitos digitalmente (uma pena, e um dos grandes pontos fracos do filme), mas não deixa de ser surpreendente - e positivo - o comprometimento de Trachtenberg e da produção do filme de buscarem recursos reais para realizarem o filme. Isso faz uma diferença enorme; basta comparar com o abismal O Predador, de Shane Black, afogado em (péssimos) efeitos digitais. Um dos toques geniais do filme é na forma como ele usa o Predador. Depois de seis filmes, não há mais surpresa na criatura, então o filme é muito mais liberal na forma como ele revela o monstro. Mas Trachtenberg faz praticamente o impossível, e consegue retornar a aura misteriosa da criatura ao usar tons de horror e ameaça. Toda vez que o Predador aparece no filme sabemos que alguém vai morrer ou sair ferido, e Trachtenberg acerta no tom dessa ameaça do monstro com mão firme.
E creio que boa parte disso se dá porque o filme é focado em Naru e em sua trajetória. Os primeiros 30 minutos são praticamente dedicados a estabelecer esse foco: passamos a ver o seu mundo pelo seu ponto de vista. O que quero dizer com isso é que entramos na mente de Naru. O fato da personagem ser jovem e se sentir deslocada do resto da tribo tornam-a uma outsider - e, portanto, um “veículo” perfeito para gerar identificação com o espectador. Naru deseja ser uma caçadora, rompendo com o papel tradicional reservado às mulheres da tribo. Ela não quer colher frutos e ervas, e tampouco deseja ser o “suporte médico” das caçadas. Naru tem talento com a construção de armas e sabe observar o ambiente, a natureza, tirando vantagens do seu entorno para ser uma caçadora eficiente. Mas ela ainda é inexperiente, principalmente quando comparada aos outros homens da tribo e em especial ao seu irmão, Taabe (Dakota Beavers). Ela não tem a força física, e tampouco as técnicas e as habilidades que ele e os outros homens de seu grupo de caça possuem com as armas. Parte do prazer que tiramos da história é justamente nesse aprendizado de Naru, que se dá pela experiência, de tentativa e erro, de superar as adversidades, conquistando-as. Em um determinado momento, Taabe diz que a grande vantagem de Naru é justamente sua inteligência e capacidade de observação. Ela vê coisas que ele não vê, e sabe criar estratégias que sequer passam pela cabeça dos outros. E não é exatamente isso que Dutch, Harrigan e Royce devem fazer nos outros filmes para derrotarem o Predador? Eles nunca o fazem com armamento pesado, e estão sempre em enorme desvantagem - física e tecnológica - contra o monstro. O mesmo ocorre aqui, portanto.
O que torna PREDADOR uma franquia particularmente bem adaptada para o meio cinematográfico é que ela é construída justamente sobre a visão, sobre o ato de ver - e ser visto. Plano e contraplano, assim como o uso de POV são fundamentais para essa dinâmica narrativa. O Predador se mantém invisível de suas presas, e ainda por cima possui um capacete equipado com visão de calor. Ele consegue ver além, portanto. Já os humanos precisam aprender a se manterem invisíveis, ocultos do Predador e, por sua vez, também torná-lo visível a olho nu. Ao final do primeiro Predador, Dutch camufla a temperatura do seu corpo se cobrindo com lama, e danifica o equipamento que confere a camuflagem de invisibilidade do Predador, expondo-o. Em Predador 2, a equipe de Peter Keyes (Gary Busey) arma uma emboscada para a criatura, cobrindo um matadouro com poeira radioativa, embaralhando a sua visão de calor. Para o azar deles, no entanto, o Predador possui visões alternativas em seu capacete, e uma delas eventualmente permite que ele veja os seus caçadores. E em Predadores, por fim (eu me recuso a comentar o filme de Shane Black), Royce faz o mesmo que Dutch, e se cobre com lama para ficar invisível ao Predador. Prey não é diferente, e ele é ainda mais construído em torno da questão do olhar do que os outros filmes. Naru é a “sucessora” de Billy (Sonny Landham), o soldado indígena do primeiro filme. Sua especialidade era justamente em seguir pistas e encontrar o melhor caminho pela selva. Essa sua habilidade, sua proximidade com a natureza e sentidos aguçados fazem com que Billy sinta o Predador oculto. É quase como uma percepção extra-sensorial, é exatamente a mesma habilidade que Naru possui no filme atual. Essa habilidade, somada à sua inteligência e capacidade de improvisar que a tornarão a mais bem-capacitada para derrotar o Predador. O magistral do filme de Trachtenberg é que ele nos mostra ao longo de todos o filme a trajetória de Naru de aperfeiçoamento de suas habilidade naturais. Cada cena cumpre um papel de torná-la melhor e mais capacitada. Não há gordura alguma; pelo contrário, cada cena, cada ação dramática, por menor que seja, cumpre um papel para formar o todo da narrativa. Toda essa trajetória é justamente o Rito de Passagem, e é interessante vermos que isso transforma Prey em uma ficção liminal.
II.
Um Rito de Passagem se divide, invariavelmente, em três etapas (estrutura tripartite):
RITO DE SEPARAÇÃO: A saída do local familiar, o espaço da vida comunitária: o lar, a tribo, a vila, a cidade, etc;
RITO DE TRANSIÇÃO: A entrada em um espaço onde vamos experienciar as provas do Rito. Estamos sozinhos, afastados de todo o convívio humano. Vencer e superar as etapas do Rito significa assumir uma nova identidade; isso quer dizer que, por conclusão, nossa identidade antiga morreu, foi deixada para trás;
RITO DE INCORPORAÇÃO: Reintegração na vida da comunidade, porém com a nova identidade que foi adquirida. Com ela, vem uma nova posição hierárquica, com tarefas, deveres, responsabilidades e privilégios.
O maior estudioso dos Ritos de Passagem foi o antropólogo francês Arnold van Gennep (1873-1957), cujo livro, Les Rites de Passage (1909), é basilar. Todos os autores que se dedicaram ao longo dos anos com o conceito de liminaridade e Ritos de Passagem precisam lidar com van Gennep e sua tradição antropológica (e sociológica). Victor Turner, por exemplo, expandiu sobre o livro e suas conclusões e disseminou a ideia de liminaridade pelos Estados Unidos. Não cabe aqui refazermos uma história intelectual deste termo (Bjørn Thomassen e outros já fizeram isso brilhantemente; falaremos mais desse autor adiante). De todo modo, o foco do estudo de van Gennep era justamente na PASSAGEM, a parte do “2” dos Ritos. Como ele o compreendeu, tanto indivíduos quanto grupos (inclusive sociedades e civilizações inteiras) podem passar por períodos liminais - liminal sendo a expressão liminal (derivada do grego, “Limes”, que significa a transição) a designada para isso. E, mais importante: o liminal é um conceito universal e atemporal, comum a todos os seres humanos, em todas as culturas e épocas.
Um divórcio, um luto, e mesmo a mudança de uma residência podem ser compreendidos como fase liminais - e Rituais de Passagem. Quando nos divorciamos, por exemplo: nossa identidade anterior, a vida de marido ou esposa, “morre”. Passamos por uma transição (o liminal), na qual temos de aprender quem vamos nos tornar - qual a nova identidade que vamos assumir. Isso é tanto um efeito psicológico quanto físico. Entrar na Passagem, adentrar o liminal, significa entrar em um mundo em fluxo. Percebemos as coisas de forma diferente. O mundo guarda tanto um potencial extremamente excitante e libertador (quem vamos nos tornar?) quanto perigoso. Não completar o Rito significa ficar preso na Passagem. O ser humano precisa se ancorar em uma identidade e assumir um papel, tanto para si mesmo quanto para os outros à sua volta. Hoje em dia pode ser mais difícil compreendermos o aspecto mais ritualísticos da Passagem. Mas ela continua: festas de 15 anos (deixar de ser criança e virar adulto), festas de Carnaval (tanto as que temos no Brasil como as de Mardi Gras ou mesmo do Halloween, nos EUA) e outros rituais do tipo nos inserem na liminaridade. Mas vamos voltar a Prey para explorarmos como isso é claro.
Obviamente é um filme sobre o Rito de Passagem de Naru. Tanto ela quanto seu Taabe estão na “Kuhtaamia”, o ritual de passagem dos Comanche. Nele, o jovem caçador deve enfrentar uma presa que é igualmente capaz de caçá-lo - e matá-lo (olha aí o perigo novamente). E isso é uma mudança em relação aos filmes anteriores da franquia PREDADOR, pois Trachtenberg reconfigura o conceito central da caçada (do “jogo mais perigoso”) nos termos do Ritual de Passagem. E, ao centrar isso em Naru (e não em um grupo de personagens), todo o contexto da série se reconfigura para o liminal.
O filme nos mostra um mundo regido pela lei do mais forte, e isso é muito bem explicitado na bela sequência da “cadeia alimentar”: um inseto é comido por um rato, que por sua vez é devorado por uma cobra, que termina morta pelo Predador. Trachtenberg faz questão de espelhar os atos do Predador com os de Naru; inclusive, fica sugerido que o próprio Predador está no planeta Terra em seu próprio Rito de Passagem, procurando ele mesmo uma caça que esteja à sua altura. O Predador, portanto, segue seu trajeto, escalando os alvos, partindo para o enfrentamento com um lobo e, por fim, o maior predador não-humano daquela região, um urso pardo (o urso é o maior predador terrestre do continente norte-americano). O urso, ainda que dê um certo trabalho para o alienígena, não é páreo para ele, e o Predador o derrota sem utilizar armas. O filme como um todo, e em especial essa sequência do urso, guarda uma semelhança com outro filme sobre sobrevivência na natureza selvagem, o superestimado O regresso (The Revenant, 2016), de Alejandro Gonzáles Iñarritú. A floresta selvagem do continente norte-americano se torna ela mesmo esse espaço liminal, um campo de provas propício para a Passagem. Segundo Bjørn Thomassen,
Espaços liminais são atraentes. São lugares para onde vamos em busca de uma ruptura com o normal. Podem ser lugares reais, partes de um território maior, ou podem ser imaginados ou sonhados. As paisagens liminares encontram-se nas franjas, nos limites (…) As paisagens liminares estão entre os espaços. A beira-mar e as praias são paisagens liminares arquetípicas. A beira-mar é algo mais do que apenas o fim de terra seca e habitada: é um litoral com algo do outro lado da soleira. A liminaridade implica a existência de um limite, um limes, a palavra latina para limiar do qual deriva o conceito de liminaridade. O limite não está simplesmente aí: é para ser enfrentado.
[No original: Liminal spaces are attractive. They are places we go to in search of a break from the normal. They can be real places, parts of a larger territory, or they can be imagined or dreamed. Liminal landscapes are found at the fringes, at the limits (…) Liminal landscapes are in-between spaces. Seasides and beaches are archetypal liminal landscapes. The seaside is something more than just the end of dry and inhabited land: its is a coastline with something on the other side of the threshold. Liminality implicates the existence of a boundary, a limes, the Latin word for threshold from which the concept of liminality derives. The limit is not simply there: it is to be confronted.]
(“Revisiting liminality: The danger of empty spaces”, de Bjørn Thomassen. In: Liminal Landscapes: Travel, experience and spaces in-between, Hazel Andrews and Les Roberts. Pág. 21. Tradução minha)
Um espaço liminal é o “entre”. É tal como um corredor: um trecho de passagem que liga dois lugares. Não podemos viver nem passar muito tempo num corredor; igualmente não podemos passar muito tempo em uma paisagem liminal, tal qual uma praia, uma floresta, ou, para pensarmos em não-lugares modernos, um aeroporto ou uma sala de espera. Temos de mover adiante, sair do “entre”. Há uma temporalidade explícita e obrigatória em todo Rito de Passagem. Ele não pode durar para sempre (pensemos em um luto: a maioria das religiões tradicionais estabelece um período de sete dias para isso). As pinturas do alemão Caspar David Friedrich, por exemplo, são exemplares com a captura tanto do espaço liminal quanto do tempo: geralmente temos personagens (de costas para nós, mas na altura de nossos olhos) contemplando a natureza durante um pôr-do-Sol. O pôr-do-Sol é liminal por excelência: estamos na hora mais escura, no fim do dia e começo da noite. O ocaso do dia guarda tanto um potencial do amanhã como também um receio e mesmo uma tristeza: o hoje se foi, e agora temos de enfrentar o desconhecido. É fácil vermos como o liminal guarda em igual medida a exuberância do sublime, onde beleza e horror caminham de mãos dadas. É um paradoxo? Claro que é. Mas essa é a Passagem, e esse que é - perdoem-me a repetição - o perigo. Não podemos viver indefinidamente num paradoxo.
Naru se insere na natureza, em especial na floresta, no rio, nas montanhas e, crucialmente - em terreno literalmente movediço e transitório - para vencer o Predador. Para vencer seu oponente, Naru precisa dominar o espaço liminal. Ela precisa ser tornar a mestra daquele ambiente, compreendendo a forma como aquele espaço se organiza e é regido. E seu grande poder é, primeiro, a visão e a observação e, segundo, a inteligência (vide a história do castor que ela conta para o seu irmão quando ambos estão amarrados como isca). É justamente isso que a faz vencer o Predador, sendo que este basicamente joga com a vantagem da força e armamentos superiores. Ele não dominou a paisagem liminal, portanto.
O uso do urso, aqui, me parece importante, ainda mais quando levamos em conta que o filme é, justamente, regido por essa lei do mais forte (ou survival of the fittest, a sobrevivência do mais apto). E isso nos traz ao livro Escute as feras, da antropóloga francesa Natassja Martin.
O urso, a essa altura, já se foi há muito tempo, e eu espero, espero a bruma se dissipar. A estepe está vermelha, as mãos estão vermelhas, o rosto intumescido e dilacerado já não é o mesmo. Como nos tempos do mito, é a indistinção que reina, sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto, coberta de humores e de sangue: é um nascimento, pois claramente não é uma morte. À minha volta, tufos de pelo marrom solidificados pelo sangue seco recobrem o chão, recordam o combate recente. Faz oito horas, talvez mais, que espero o helicóptero do exército russo atravessar o nevoeiro para vir me buscar. Garroteei minha perna com a alça da mochila quando o urso fugiu. Nikolai me ajudou a enfaixar o rosto quando me encontrou, esvaziou sobre a minha cabeça as nossas preciosas reservas de spirt, que me escorreram por toda a face junto com as lágrimas e o sangue. Depois me deixou sozinha, pegou meu pequeno Alcatel de campo para chamar o socorro do alto de um promontório, pensando, certamente, na rede instável, no telefone antigo, nas antenas distantes, que tudo isso funcione, porque os vulcões nos cercam, eles, que há apenas alguns instantes celebravam nossa liberdade e que agora acentuam nosso aprisionamento.
(Escute as feras, Natassja Martin. Trad. Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann. Pág. 7)
Durante um trabalho etnológico de campo em regiões remotas da Sibéria, Martin passa por uma experiência extraordinária de metamorfose - uma experiência liminal, portanto. Ela se percebe em um ambiente de Passagem, onde o que então parecia uma paisagem congelada imutável se torna fluida e instável. Cultura e natureza, humano e animal se encontram nessa região de fronteira, e a trajetória de Martin culmina em um perigoso confronto com um urso. O trecho acima, retirado de seu livro, poderia muito bem ser a trama de Prey ou mesmo do primeiro Predador (trocando o urso pelo alienígena).
Escrevo há anos sobre os confins, a margem, a liminaridade, a zona fronteiriça, o espaço entre dois mundos; acerca desse lugar tão especial onde é possível encontrar uma potência outra, onde se assume o risco de se alterar, de onde é difícil voltar. Sempre disse a mim mesma que não se deve cair na armadilha da fascinação. O caçador, coberto dos cheiros de sua presa e usando suas vestes, modula a voz para adotar a do outro e, ao fazer isso, entra em seu mundo, mascarado, mas ainda ele mesmo sob a máscara. Eis o truque, eis o seu perigo. Toda a questão passa a ser então: conseguir matar para poder voltar - a si, aos seus. Ou então: falhar, deixar-se engolir pelo outro e deixar de estar vivo no mundo dos humanos.
(Escute as feras, pág. 90)
O trecho acima descreve perfeitamente tanto Naru quanto o Predador. O monstro irrompe no espaço natural, a nave de seu clã perturbando os céus. Como diz King Willie (Calvin Lockhart) em Predador 2, o monstro é um Outro, que veio de fora. Mas e os seres humanos? Não seriam nós - Naru, os Comanche - também um Outro que veio de fora? Além disso, caçadores tentam se camuflar no ambiente para capturarem suas presas. Humanos pintam os rostos e se vestem com as peles dos animais; o Predador literalmente tem um dispositivo de camuflagem e um equipamento que o permite reproduzir os sons e as falas dos humanos e outros animais. E, bem, ele tem uma máscara - literalmente. E, por fim, Naru quase é engolida pela lama movediça; o Predador é de fato engolido. Ele morre. A cena final, inclusive, é a mais liminal de todas, com uma neve - aparentemente fora de estação - cobrindo a cena. Climas se misturam, humano e alienígena se enfrentam de igual para igual e tudo está em fluxo: “Fui até o fim do encontro arcaico, mas voltei porque não morri. Houve hibridização e, no entanto, continuo sendo eu mesma. Quer dizer, eu acho. Alguma coisa se parece comigo, mais os traços da máscara inimista: estou inside out. O fundo animista dos humanos é o rosto deformado da máscara” (Martin, pág. 90).
Ao final, Naru retorna à comunidade, à sua tribo, carregando a cabeça decepada do Predador e pintada com o seu sangue verde fluorescente. Ela se hibridizou com o monstro (assim como ele antes havia feito com o urso, ao se banhar no sangue do animal). A hibridização aqui deve ser compreendida numa chave metafórica e psicológica, senão existencial e metafísica (e não literal como fez o patético O Predador, de Shane Black).
III.
Toda essa atenção que Prey recebeu nos últimos dias foi também acompanhado pelo discurso de guerra cultural, que parece ser inevitável e inescapável em nossos dias atuais de Twitter, Instagram e cancelamentos. De um lado, os anti-Woke/anti-identitários que denunciaram o filme por verem ele como uma apologia a uma minoria (os Comanche) e por ter uma mulher no papel principal. Segundo eles, Naru seria uma “Mary Sue”, termo usado para designar personagens femininas empoderadas que vencem todo e qualquer obstáculo simplesmente pelo fato de serem mulheres. Ainda que “Mary Sues” existam pela cultura - inevitável no tempo profundamente moralista e politizado em que vivemos - isso não se aplica a Prey. A personagem é claramente comparável à Ellen Ripley (Sigourney Weaver, da franquia ALIEN) e mesmo a Isabelle (Alice Braga), de Predadores. Ou, então, poderíamos compará-la à própria Lara Croft, dos videogames da franquia TOMB RAIDER, que foi interpretada no cinema por Angelina Jolie e Alicia Vikander. Lara Croft, ainda mais nos últimos jogos da franquia, é retratada de uma maneira muito similar a Naru: uma mulher inteligente, porém inexperiente, que deve aprender a sobreviver e a conquistar a natureza com seus próprios recursos e estratégia. Dado o fato de que Dan Trachtenberg é obcecado por jogos de videogame (basta acompanhá-lo no Instagram), eu não duvido que muito da caracterização de Naru tenha saído desses últimos jogos de TOMB RAIDER. Concluindo: não, não há qualquer forma de apologia a identitarismos em Prey, e creio que minha análise tenha ajudado a provar que o filme trata a sua personagem, antes de mais nada, como uma pessoa que passa por um Rito de Passagem. Esse é o aspecto primordial e essencial de Naru (ao passo que ser mulher e ser Comanche, ainda que sejam importantes, são categorias mais superficiais e particulares de sua personagem, como uma roupagem). É justamente essa característica que tornam a narrativa de Prey, e a trajetória de Naru, em algo universal. O Rito de Passagem é algo que todos os seres humanos, em todas as épocas e culturas, passam. Isso implode toda e qualquer característica particular, daquilo que se chama de micropolítica (o identitarismo).
Mas esse lado só ganha tração porque muitos críticos progressistas estão elogiando o filme justamente por conta da representatividade Comanche e pelo fato de que é o primeiro filme da franquia que possui uma mulher como protagonista. Ora, é claro que, ao fazerem esse tipo de análise, eles convidam - eu diria inclusive que eles desejam - as críticas dos anti-Woke. E aí se forma a guerra cultural, que tem marcado as discussões em torno do filme ao longo de sua primeira semana pós-lançamento. Tal compreensão, assim como ocorre no campo dos anti-Woke, é superficial e, francamente, patética. Elas terminam que por trivializar o filme de Trachtenberg, mesmo quando elogiam. Não, não há mérito algum em representatividade, pois isso não é uma categoria ou um recurso estético. Trachtenberg não afoga o seu filme com discursos vazios e as típicas platitudes moralistas que tanto agradam os progressistas. Se isso existe em seu filme, de novo, é um aspecto superficial e mesmo sem importância. Sua história é universal, e não seria nem um pouco difícil reescrevê-la trocando o sexo de Naru. O que deve ser combatido nessa narrativa de guerra cultural é o fato de que ambos os lados reduzem a arte a um mero instrumento a ser usado em disputas ideológicas. Um filme vira um trampolim, um meio a ser usado para o fim que realmente importa a esses críticos, que é à apologia política, seja de esquerda, seja de direita. E essa praga de discurso infectou toda a discussão cultural. No caso de Prey, creio que esse tipo de discurso logo vai arrefecer. O filme capturou um hype estrondoso com sua recepção surpreendentemente positiva, e logo os dois campos, parasitários que são, se aproveitaram desse sucesso para se disseminarem.
Ter uma mulher, ou um negro, ou um trans como protagonista de uma narrativa não faz com que ela seja automaticamente identitária (ou Woke). Alien, o oitavo passageiro (Alien, 1979, de Ridley Scott) não é Woke; Exterminador do futuro (The Terminator, 1984, de James Cameron) também não. Poderíamos citar inúmeros outros exemplos, mas a verdade é que esses dois já bastam. São filmes que, não obstante possuam mulheres fortes que se projetam sobre homens e adversários infinitamente mais capacitados não as tornam narrativas de empoderamento político. São filmes que tem um conteúdo universal, o mesmo de Prey: são narrativas de molde mítico, cuja associação mais clara é a história de David e Golias (tal como Trachtenberg a vê) ou como as de Minotauro no labirinto (que é como eu vejo). Uma narrativa Woke/anti-Woke usaria esses personagens acompanhados de um certo imaginário moralista. O golpe está aí: na construção de um universo ficcional que reduz a complexidade do mundo a uma narrativa moralista e maniqueísta entre o Bem Absoluto (a minoria oprimida) vs o Mal Absoluto (o opressor). Tais narrativas tratam o seu público de forma condescendente e paternalista (ironicamente), pois terminam que por infantilizá-lo. O diretor abandona o seu papel de contador de histórias e se torna um palestrante, um professor que irá nos ensinar, com suas parábolas morais, a forma certa de enxergar o mundo e nos orientarmos por ele. Ou seja, no âmbito do cinema, é tão moralista quanto o Código Hays (o “Production Code”), que vigorou em Hollywood por mais de 30 anos, começando em 1934. Prey - assim como os outros filmes que citei acima - não faz nada disso.
PREDADOR, a franquia, pinta um mundo onde sobrevive quem é o mais forte. A equipe de Dutch, no primeiro filme, é usada como peões descartáveis para cumprir uma missão secreta. O próprio exército americano, representado por Dillon (Carl Weathers), manipula o soldado com mentiras. Ao final, não sabemos quem é herói ou vilão. Em Predador 2, Harrigan e seu time são usados pela polícia de forma igualmente descartável, meros peões em uma guerra contra a criminalidade; e a polícia, por sua vez, é usada pela agência de inteligência que financia o grupo de Peter Keyes. Esse inferno burocrático é desenhado como uma hierarquia de cadeia alimentar, onde quem está no topo sempre abocanha quem está no degrau debaixo. Isso se estende também a Predadores. Um mercenário (Adrien Brody), um membro de esquadrão de extermínio africano (Mahershala Ali), um serial killer (Topher Grace), um assassino do cartel mexicano (Danny Trejo), um estuprador (Walton Goggins) e outros “predadores” do planeta Terra são transportados para um mundo alienígena para serem caçados por três Predadores. Não há heróis no filme de Nimrod Antál, e muito provavlemente a Terra melhorou um pouco sem esses sujeitos por lá; o ponto, no entanto, é que a mesma lógica, tanto de espelhamento humanos X Predadores, assim como a própria lógica da cadeia alimentar se preservam. E o filme de Trachtenberg faz o mesmo. A sequência em Prey, onde o rato come o inseto, para depois ser devorado pela cobra, para que essa, por fim, morta pelo Predador, representa a visão de mundo da franquia in reductio. Essa não é uma visão de mundo Woke/anti-Woke, inclusive porque ela é quase niilista. Não há valor moral algum, para além de Bem e Mal. Há somente a sobrevivência do mais forte, o survival of the fittest.
Ao final, Naru completa o seu Rito de Passagem, derrotando o Predador, e regressa à tribo. Os homens morreram, seu irmão morreu. E para quê? Ela diz ao chefe que a tribo precisa sair daquele local, pois a posição está sendo ameaçada (pelos colonos e caçadores franceses) e, como prova disso, ela lhe entrega a pistola. A pistola, que é a mesma que Harrigan recebe como troféu ao final de Predador 2 (entregue pelo Predador Ancião, o líder daquele clã), com nome de Raphael Andolini. E Harrigan, por sua vez, a entrega para um dos lacaios de Keyes, que está frustrado com o fato de que o Predador foi morto, e não capturado, e a nave com os outros alienígenas partiu da Terra. “Não se preocupe, você terá outra chance”, Harrigan diz para ele, entregando-lhe a pistola. A pistola, a partir de Prey, ganha uma outra conotação, portanto, para além do mero fato de ser um troféu dado a quem vence a caçada: ela representa a cadeia alimentar em si, o constante e interminável ciclo de batalhas travados entre os mais fortes pela predominância. Nem Dan Trachtenberg, nem John McTiernan, Stephen Hopkins ou Nimrod Antál criam um mundo regido por moralismos e maniqueísmos fáceis.
E disso decorre, por conclusão, que o filme não é narrativa de empoderamento feminino. Isso fica mais do que evidente pela forma como Prey constrói o seu design de elenco. Não, não é um filme sobre uma nativa-americana que derrota colonos racistas e opressores, da qual o Predador é meramente uma extensão metafórica. Narrativas de colonização dentro do Western americano (tradição essa à qual Prey pertence, ainda que tangencialmente) necessariamente lidam com a questão do estupro. Sabemos isso após os estudos de Thomas Schatz (Hollywood genres), Robert Sklar (História social do cinema americano), e Richard Slotkin (com a trilogia Regeneration Through Violence; Fatal Environment e Gunfighter Nation, sendo este último mais especificamente voltado para o Western em si). Não vale entrar em todo o debate histórico, estético e sociológico aqui, mas sim comentar um exemplo de caso mais do que emblemático desse tipo de narrativa: Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), o perturbador Western psicológico de John Ford. O estupro de uma mulher branca por indígenas representa uma corrupção da raça branca, além de ser uma humilhação tanto para a mulher quanto para o homem. Mas o risco mesmo é gerar um filho, uma união das raças que, de acordo com o discurso do colonizador, seria a dissolução das barreiras (“naturais”) que separam as duas raças. Manter a separação, cada um em seu lugar, seria parte da estratégia de dominação daquela paisagem selvagem por parte do colonizador. O filme de Ford é profundamente perturbador porque ele lida diretamente com esses assuntos sem desviar o olhar, encarando os problemas de frente. E, enquanto faz isso, ele descontrai a imagem mítica de grande herói branco que John Wayne construiu (com a ajuda de Ford, por sinal) ao longo de toda a sua carreira. Não há conteúdo sexual algum em Prey, assim como não há nos dois primeiros filmes da franquia. Quando Naru é capturada pelos caçadores franceses, Trachtenberg poderia ter inserido uma cena de insinuação de estupro, nem que como forma de tortura para obter informações. Não seria difícil. Mas não, o torturado é seu irmão, Taabe, em uma cena que remete ao primeiro Predador. Naru luta com os homens de sua tribo, mas também não há conteúdo sexual nisso; na verdade, o principal conflito masculino X feminino é configurado como uma rivalidade entre irmãos. Naru gostaria de ter matado o leão, mas quem o faz é seu irmão, que recebe as glórias da caçada. A inveja - e a admiração - corre por baixo dessa relação, e o fato de ser uma relação entre irmãos retira qualquer conteúdo sexual. Prey, portanto, não é uma narrativa colonial, ou pós-colonial.
Mas e a questão tecnológica? Certamente os franceses possuem vantagem, com suas pistolas, garruchas e todo o mais. O Predador, idem (ainda que ele possua um equipamento mais rudimentar e primitivo que o utilizado pelos outros monstros da franquia). Mas Naru utiliza os equipamentos tanto dos franceses quanto do Predador para ganhar vantagem competitiva. É uma batalha, afinal, e tudo vale. Naru não está em um campo separado e distinto e, presumivelmente, mais virtuoso, por ser mulher de minoria Comanche. Nada disso. Naru e seu irmão, por exemplo, após serem capturados pelos caçadores franceses, são utilizados como isca para o Predador, amarrados a uma árvore. E é exatamente o mesmo que Naru faz com um francês depois, mas de forma mais inteligente. Da mesma forma que ela usa uma pistola para arrancar o capacete do Predador, ela usa as mesmas táticas que o franceses. O que os diferencia, moralmente falando? Bem, talvez o fato de que nem Naru, nem o Predador, cacem animais por motivos financeiros, mas até mesmo essa explicação pecuniária é frouxa, visto que o imperativo financeiro é também um de sobrevivência. Sendo assim, o que os separa moralmente? Em última análise, nada.
Críticos progressistas também tem insistido na leitura de que o Predador é um Outro, um alienígena, estranho àquela paisagem, e que perturba e viola a ordem natural daquele ecossistema com sua caça. Isso o tornaria uma extensão lógica dos próprios colonos franceses. Isso é verdade, mas até certo ponto. O Predador, no primeiro filme, é de fato compreendido como um Outro, um demônio que ocasionalmente visita aquela região em anos de muito calor para caçar os homens; em Predador 2, o traficante King Willie (Calvin Lockhart) também compreende o Predador como sendo um demônio que veio de fora, um outsider. O problema nessa leitura é que o Predador:
Possui um código de honra e caça, que não é compartilhado pelos colonos franceses. A cena onde Naru - e posteriormente o próprio Predador - encontra as carcaças escalpeladas dos bisões revela isso. Aquilo é uma chacina, empreendida com um intuito comercial. Não há honra alguma naquilo. Do mesmo jeito, o Predador, por mais brutal que seja, se recusa a matar presas que estão indefesas e vulneráveis, ao passo que os colonos, não;
O Predador, em seu design, evoca um guerreiro tribal. Seus dreadlocks, por exemplo, são um signo evidente disso. Além desse ponto, vale ressaltar que desde o primeiro filme Alan Silvestri, o compositor da trilha sonora, se utilizou de percussão e outros leitmotifs tribais em suas músicas, reforçando esse caráter tanto da caçada quanto do próprio Predador em si.
Essas duas características, por si só, terminam que por aproximar o Predador não dos colonos, mas sim de Naru. O elenco é desenhado dessa forma, inclusive, com os dois sendo rivais perfeitos, um o espelho do outro. Escute as feras: presa e caçador se encontram cara-a-cara e percebem o que há em comum entre eles. O filme deixa isso claro com uma ação: logo no início do filme, vemos Naru tentando caçar um veado na floresta e, durante a perseguição, ele salta e quica uma árvore, em uma manobra que acaba não dando certo. O Predador faz exatamente a mesma coisa que ela, como vemos na cena em que ele desvia dos tiros dos colonos franceses. E, ao final do filme, a mesma ação reaparece, mas Naru se antecipa e monta uma armadilha para o Predador em uma das árvores. Os dois tem ações e técnicas que se espelham um no outro. Não é uma narrativa identitária ou ideológica portanto, visto que, para ser isso, deveria haver uma distinção clara, óbvia e didática entre o herói e o vilão.
Mas o que termina por aproximar Naru do Predador é aquilo que marca o principal motivo visual e temático da série: a visão. Naru observa a paisagem e segue pistas; ela vê aquilo que os outros não veem. Durante os primeiros 30-35 minutos do filme, basicamente acompanhamos Naru empregando suas habilidades de observação, e Trachtenberg espertamente paraleliza as cenas de Naru com a do Predador fazendo o mesmo: as suas caçadas, afinal, são baseadas na observação de presas potencias (o lobo, por exemplo). O espelhamento entre a jovem Comanche e o alienígena é estabelecida e traçada logo no início do filme. O Predador não é uma extensão dos colonos, ele é o reflexo de Naru. Se há alguma organização aqui ela é, de novo, a lógica da cadeia alimentar. Naru começa o filme no ponto mais baixo, mas gradualmente ela vai subindo os degraus (enfrenta os guerreiros Comanche; enfrenta e mata diversos colonos; derrota o Predador). Chegar ao topo é completar o Rito de Passagem, e ao final ela é reintegrada na tribo, com um novo status social e uma nova identidade - agora, como guerreira e líder. Por isso que digo, Prey não é uma narrativa nem Woke nem anti-Woke; é uma narrativa liminal.
IV.
O momento contemporâneo parece ser caracterizado por uma atitude cada vez mais ambivalente em relação à liminaridade: por um lado, o medo de experiências liminares como eventos verdadeiramente transformadores da personalidade; por outro lado, uma postura celebratória em relação a qualquer tipo de liminaridade. Por um lado, e como bem destacou Foucault, o mundo moderno sempre se caracterizou por fechar tudo o que estava além dos limites da racionalidade. Essa marca da modernidade como excludente de experiências-limite talvez tenha sido expressa com mais clareza por Kant. Por outro lado, também foi argumentado, por uma série de pensadores, escritores e artistas, que o mundo moderno é de alguma forma um 'carnaval', uma comédia grotesca e interminável onde as experiências limite se transformam em norma, um frenesi que nunca realmente esfria.
[The contemporary scene seems to be characterized by an increasingly ambivalent attitude toward liminality: on the one hand a fear of liminal experiences as truly personality transforming events; on the other hand a celebratory stance towards any kind of liminality. On the one hand, and as stressed very much by Foucault, the modern world was always characterized by closing off everything that lay beyond the boundaries of rationality. This hallmark of modernity as excluding limit experiences was perhaps expressed most clearly by Kant. On the other hand it has also been argued, by a series of thinkers, writers, and artists, that the modern world is somehow a ‘carnival’, a grotesque, never-ending comedy where limit experiences turn into norm, a frenzy that never really cools down.]
(“Revisiting liminality: The danger of empty spaces”, de Bjørn Thomassen. Pág. 30. Tradução minha)
O mundo moderno é marcado pela proliferação de espaços liminais, aquilo que o antropólogo francês Marc Augé denominou de “não-lugar”. Os espaços de transição se tornam “permanentes” e se espalham e multiplicam: aeroportos, estacionamentos, salas de espera, auto-estradas, estações de trem, lanchonetes de fast-food, postos de combustível e diversos outros são “não-lugares” precisamente pois são anônimos, lugares onde deixamos nossas identidades para nos tornarmos passageiros. Em termos cinematográficos, nos tornamos Jack/O Narrador (Edward Norton), o protagonista de Clube da luta (Fight Club, 1999, de David Fincher), que inclusive se confronta com o seu duplo (e como sabemos ao menos desde Edgar Allan Poe e Fyodor Dostoiévski, duplos são seres “liminóides” - expressão cunhada por Victor Turner). Mas esse perigo do não-lugar já foi identificado por ninguém menos do que Platão, quando de sua discussão acerca do Khora (em Timeu). O Khora, resumidamente, é aquele não-lugar que se situa fora da pólis.
Platão sentiu que o fim do mundo clássico criticamente não tinha nada a ver exatamente com essa proliferação do não-espaço - um espaço no qual o sofista prospera. Khora é um vazio, um abismo, no qual as coisas podem se reproduzir infinitamente, “reflete” como um espelho que não é afetado pela imagem que reflete. Khora é sem limite, sem fundo, sem chão. Como o número zero, que os gregos tanto temem e, portanto, nunca usaram, o Khora é nada e infinito ao mesmo tempo. Platão, o fundador da epistemologia ocidental, de alguma forma viu essa implosão do nada como uma ameaça à espreita ao mundo ordenado ao seu redor. Mas nesse reconhecimento Platão se torna um teórico da contemporaneidade.
[Plato sensed that the end classical world critically had nothing to do with exactly such a proliferation of non-space - a space in which the Sophist thrives. Khora is a void, an abyss, in which things can reproduce themselves infinitely, it “re-flects” like a mirror that is not affected by the image it reflects. Khora is without limit, without bottom, without ground. Like the number zero, which the Greeks dread so much and therefore never used, the Khora is nothingness and infinity at the same time. Plato, the founder of Western epistemology, somehow saw this implosion of nothingness as a lurking threat to the ordered world around him. But in that recognition Plato makes himself a theorist of the contemporary.]
(“Revisiting liminality: The danger of empty spaces”, de Bjørn Thomassen. Págs. 30-31. Tradução minha)
O nosso mundo pós-hiper-super-moderno (de acordo como Fredric Jameson, Gilles Lipovestky ou Augé, para citarmos alguns) - ou a nossa modernidade tardia ou líquida (Ulrich Beck, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman) - é marcado por um mal-estar. O mal-estar que foi detectado primeiramente por Platão com o conceito de Khora. Nosso mundo é esse abismo existencial, e é interessante que, nele, os sofistas se proliferem e ganhem predominância. Wokes/anti-Wokes (ou identitários) são sofistas. Não estão preocupados com a verdade, com aquilo que é sólido e real; estão interessados em transformar o mundo, através da manipulação do vocabulário e de conceitos - nossa percepção do mundo - em um terreno arenoso e instável. Esse é o perigo - e se o recente atentado de Salam Rushdie, a invasão do Capitólio americano no dia 6 de janeiro de 2021 e a ascensão de movimentos extremistas de esquerda e direita querem dizer alguma coisa, é que estamos vivendo o perigo da liminaridade. Esses críticos contemporâneos que citei acima estão captando e tateando esse terreno instável, tentando chegar à origem do mal-estar. E, bem, Ted Gioia - um sujeito infinitamente mais talentoso e inteligente que este vos escreve - sugeriu que a palavra do ano deveria ser “sofisma”. Retomo esse assunto cansativo do discurso identitário em torno de Prey para mostrar justamente como esses sofistas operam em um filme que é, para todos os efeitos, diametralmente oposto e mesmo antitético a qualquer forma de identitarismo, seja ele progressista ou reacionário. Naru e Taabe não querem viver na Passagem, na Transição, no Fluxo. Não querem viver no Khora, no não-lugar. Eles escutaram as feras desse abismo - e conseguiram (Naru, ao menos) sair dele.
O assunto da liminaridade, tanto em suas implicações antropológicas e sociológicas, quanto em suas representações artísticas, é um que considero fascinante. É possível que retorne a ele em algum momento, visto que o liminal é fundamental para compreendermos as obras de cineastas díspares como David Lynch, Terrence Malick, Denis Villeneuve, Wes Craven, Adam Curtis e F. W. Murnau. Além disso, é um conceito essencial para compreendermos a contemporaneidade, chamemos ela de pós-modernidade, modernidade tardia, ou hipermodernidade ou aquilo que Karl Jaspers e Daniel Bell denominam de “Era Axial”. Prey é apenas um exemplo, talvez o mais perto da raiz antropológica do termo (tal como estudado por van Gennep), mas um que é essencial para compreendermos o estofo estético e cultural que preenche o filme de Trachtenberg, e um que de fato lida com a obra em seus termos culturais mais puros, ao contrário das delinquências identitárias, seja os que são a favor, seja os que são contra. Atualmente, o maior especialista no assunto é o antropólogo Bjørn Thomassen, que publicou um livro extraordinário, Liminality and the Modern (2014), onde ele faz, primeiramente, um recapitulação da história deste conceito para, depois, interpretá-lo à luz da modernidade, num raro livro de antropologia onde o antropólogo se volta para a própria sociedade moderna contemporânea ocidental (semelhante ao que faz Marc Augé em sua obra). É leitura indispensável.
Pode parecer ridículo dizer que Prey guarda alguma mensagem profunda sobre o sentido da vida, ou um diagnóstico sobre a sociedade contemporânea. Afinal, é a quinta continuação de uma franquia que começou nos anos 80, onde um alienígena caça tipos como Arnold Schwarzenegger e Jesse Ventura. Bem, antes de mais nada, o mérito do filme está justamente em sua construção “compacta” e modesta. É um filme que veste a camisa do gênero com felicidade e amor à franquia, e sua missão é executar essa narrativa arquetípico da forma mais bem-feita e divertida que isso for possível. E isso deve ser bom o suficiente, ainda mais em um contexto onde muitos filmes celebrados aí afora não tenha um décimo do talento exibido em Prey, e que ainda por cima querem enfiar mensagens moralistas tacanhas por nossa goela abaixo. Mas é um filme que de fato tem uma visão de mundo organizada, e que captura perfeitamente a estrutura tripartite do Ritual de Passagem.
Há coisas que me incomodam no filme? Sem dúvida. Acredito que o longa se beneficiaria de uma estética mais “suja”, algo mais próximo de Predadores. O filme de Nimrod Antál emprega tons mais frios e sombrios, além da própria câmera na mão. Isso confere um aspecto ao mesmo tempo mais ameaçador e cru à película. Trachtenberg e seu diretor de fotografia, Jeff Cutter, por outro lado, empregam uma linguagem que, ainda que seja muito bem composta, é mais clássica, com movimentos de câmera bem desenhados. Talvez o que queira dizer é que o filme seja muito “preciso” e limpinho. Mesmo o primeiro Predador por vezes empregava uma linguagem de câmera próxima ao cinema veritè. Bem, basta comparar Prey com O regresso, de Iñarritù: eu não sou muito fã desde filme, mas é inegável que a fotografia de Emmanuel Lubezki crie um efeito muito mais visceral.
E esse aspecto “limpinho” do filme de Trachtenberg extrapola a própria linguagem e afeta o filme como um todo: Naru não se machuca e se fere tanto quanto os protagonistas dos filmes anteriores, e a maquiagem mesmo é muito mais contida. Às vezes tem-se a impressão de que estamos diante de mais um desses pavorosos remakes em live action de clássicos animados da Disney, com Naru sendo uma espécie de princesa-guerreira, tamanho o grau de, bem, “limpeza” na concepção visual da personagem. Sob o pecado de soar mais repetitivo do que sou, mas falta mesmo uma sujeira, um realismo exagerado. Some-se isso ao fato de que as cenas de mutilação empregam sangue digital, e boa parte destas mesmas mutilações também é realizada com computação gráfica, e tudo fica um tanto imaterial. Na verdade, Prey parece ser um filme mais próximo da fantasia sob essa ótica, algo feito para um público acostumado com as outras produções high profile da Disney, como o Universo Cinematográfico Marvel e Star Wars.
O que quero dizer com tudo isso é que o conservadorismo estético de Prey não só não se segura diante de filmes anteriores da franquia como também por vezes falha consigo mesmo, pois nem mesmo dá conta de capturar a experiência da Passagem. Há outros filmes que, em relação a esse último quesito, obtiveram muito mais sucesso. Mas Trachtenberg ainda assim sabe o que está fazendo, ainda que faça isso de uma maneira um tanto “simplista” (por falta de um termo melhor). Essa inteligência é justamente, e profundo conhecimento sobre o material base, que tornam a experiência de Prey tão interessante. Este é um filme que não vai envelhecer, pois as suas ideias são universais e atemporais.
São detalhes que me incomodam, mas não chegam a prejudicar o filme de forma irreparável. Ele ainda funciona pelos próprios méritos, e boa parte desse sucesso se dá pela forma inteligente que o filme é dramaticamente construído. Prey é um filme que merece ser celebrado justamente por essa inteligência, na forma como Trachtenberg desconstrói a franquia, reduzindo-a a seus elementos básicos, para depois reconstruí-los em algo que é novo e fresco.
Obs: Gostaria de agradecer ao amigo Dionisius Amêndola por me indicar o livro de Natassja Martin. Confiram o trabalho do Dio aqui: https://www.youtube.com/c/BunkerdoDio.