I.
É tarde da noite na cidade de Victory, Missouri. Dois policiais fazem sua ronda em bairro residencial sombrio, dilapidado. Os dois jogam conversa fora e falam de amenidades. Um dos policiais tem o estranho hábito de classificar tudo com pontuações, numa escala que vai de zero a dez. É verdade que Victory é a cidade mais perigosa dos Estados Unidos, uma ruína pós-industrial que está gradualmente sendo soterrada por uma tempestade neve. Então, os policiais notam uma estranha movimentação: uma van preta, com os faróis apagados, bloqueia a rua, impedindo a passagem do carro de polícia. O policial que conduz a viatura repara, no seu espelho retrovisor, que um sedan bloqueou a rua imediatamente atrás.
Assassinos mascarados, armados com rifles automáticos e com os rostos cobertos com balaclavas saltam da van e fuzilam o carro de polícia. Os policiais tem pouco tempo para reagir, e logo uma granada aterrissa dentro da viatura. O policial que conduzia a viatura é lançado como uma bola de carne fumegante na explosão que reduz o automóvel a um amontoado de metal.
Não satisfeitos, os assassinos se dirigem aos cadáveres, arriam suas calças, e arrancam fora os pênis dos policiais, guardando-os em sacos plásticos. Os distintivos também são levados.
É o começo de uma longa noite onde quase todo o departamento de polícia de Victory será exterminado, naquilo que um dos personagens do romance denomina de “cop genocide”.
É nesse ponto que o primeiro ato de Mean Business on North Ganson Street termina, mostrando que a narrativa do livro é, na verdade, outra coisa que não aquilo que esperávamos.
É o quarto romance de S. Craig Zahler, e o seu primeiro percurso no gênero policial, que forma um tríptico com os longa-metragens Brawl in Cell Block 99 (2017) e Dragged Across Concrete (2018), que, por sua vez, complementa o outro tríptico de Zahler, composto pelos romances western A Congregation of Jackals (2010) e Wraiths of the Broken Land (2013), e o filme Bone Tomahawk (2015).
II.
S. Craig Zahler é um dos artistas mais interessantes de nosso tempo. Apesar de seu trabalho estar firmemente no campo de gêneros bem estabelecidos, como o policial, o faroeste, o horror, a ficção-científica e o weird, Zahler combina livremente todos eles em sua obra, e essa combinação só funciona pelo fato de que Zahler possui uma voz única e madura, além de uma visão de mundo bastante particular.
Essa dificuldade de classificação começa no próprio autor. Apesar de ser reconhecido como diretor de cinema e roteirista, Zahler é um artista multifacetado e multimídia. Nascido em Miami em 1973, Zahler, para todos os efeitos, é um nerd. Leitor voraz de histórias em quadrinhos, começou a escrever e desenhar desde pequeno. Em uma entrevista, ele reconta que seus primeiros trabalhos no cinema foram, na verdade, como cozinheiro. Seu pai gostava de levar o filho pelos melhores restaurantes de Miami e dos Estados Unidos, em viagens de exploração gourmet, e Zahler tomou gosto por fine dining. Mas seu tempo como chef durou pouco, pois logo Zahler começou a escrever seus próprios roteiros e romances.
Como roteirista, assinou mais de trinta trabalhos, que foram vendidos para diversos estúdios. Apenas em 2004 ele escreveu seis roteiros, sendo que um deles, o faroeste The Brigands of Rattleborge, chegou a número um na Black List, ranking que classifica os melhores roteiros de filmes não-produzidos. O volume foi disputado a tapa por estúdios, e eventualmente o cineasta Park Chan-wook o adquiriu (o filme ainda não foi produzido). O sucesso de Zahler como roteirista o levou a cursar cinema na New York University (NYU), onde ele se tornou diretor de fotografia, tendo fotografado diversos comerciais, videoclipes, episódios de televisão e longas independentes.
Em 2010, é publicado seu primeiro romance, o faroeste A Congregation of Jackals, que recebe diversas críticas positivas, além de prêmios especializados. Seu segundo romance, o já citado Wraiths of a Broken Land introduz os elementos de violência extrema e horror que são tão característicos da obra de Zahler, e o livro tem seus direitos comprados pela Twentieth Century Fox, que começou a produzir a adaptação com produção de Drew Goddard e direção de Ridley Scott (a produção foi cancelada com a venda da Fox para a Disney). No mesmo ano, mais um roteiro de Zahler, The Big Stone Grid, é vendido para a Sony Pictures, e Michael Mann se interessa em dirigi-lo. O filme também não é produzido.
Paralelamente a esses projetos, Zahler inicia seu trabalho na música. Junto a Jeff Heriot, os dois criam a banda de heavy metal Realmbuilder. Como vocalista, baixista, baterista e letrista, Zahler e Heriot compões três álbuns narrativos, que são produzidos pelo estúdio sueco especializado I Hate Records. Os álbuns tem arte de capa ilustrados pelo próprio Zahler, que também comanda a banda de black metal Charnel Valley, que teve dois álbuns lançados pela gravadora Paragon Records.
Nos próximos anos, Zahler publica os romances Corpus Chrome, Inc (2014), de ficção-científica distópica; o audiolivro The Narrow Caves (2017); Hug Chickenpenny: The Panegyric of an Anomalous Child (2018), um coming of age de horror gótico (e que teve seus direitos adquiridos pela Jim Henson Studio); o thriller policial The Slanted Gutter (2021); e duas graphic novels publicadas pela Dark Horse Comics, Forbidden Surgeries of the Hideous Dr. Divinus (2021) e Organisms from an Ancient Cosmos (2022), ambas de horror cósmico. Zahler, escreveu, ilustrou e coloriu as graphic novels.
Apesar de seu sucesso nesses campos, Zahler continua sendo um artista que opera nas margens. Apesar de seus romances estarem quase todos esgotados, eles foram publicados por pequenas editoras, com tiragens limitadas. Mesmo tendo seus direitos vendidos para grandes estúdios, e com nomes importantes, nenhuma dessas produções vingaram. Mean Business, por exemplo, teve seus direitos vendidos para a Appian Way, de Leonardo Di Caprio, e teve o astro Jamie Foxx cotado para estrelar o papel principal (e rumores de que Martin Scorsese dirigiria). O projeto está parado desde 2016. The Slanted Gutter, por sua vez, foi editado originalmente pela Cinestate. No entanto, na véspera do lançamento do romance, a editora foi à falência, acossada por uma série de alegações de abuso sexual por parte de um dos seus sócios. Obrigações contratuais forçaram a editora a lançarem um pequeno número de exemplares, que rapidamente esgotaram, e foram impressos com uma série de problemas. Zahler teve de publicar outras tantas cópias ele mesmo. Recentemente, uma segunda editora, Den of Iniquity Books, adquiriu os direitos, e o livro pôde finalmente ser distribuído normalmente. Esses problemas, no entanto, criaram uma série de empecilhos no marketing do romance.
A outra parte do azar de Zahler se dá pelo seu próprio temperamento. Os três filmes que dirigiu foram também escritos, musicados, fotografados e editados (com pseudônimos) por ele mesmo, e Zahler raramente se compromete ou aceita interferências criativas em seu trabalho. Apesar de terem recebidos resenhas excelentes, além de prêmios em festivais de prestígio como o TIFF, Veneza e Cannes, todos tiveram distribuição limitada em cinemas. Bone Tomahawk, por exemplo, um western de horror que combina elementos de Sam Peckinpah, Don Siegel e Tobe Hooper, mesmo sendo estrelado por Kurt Russell, e elogiado por Quentin Tarantino (que afirmou, não com certa inveja, que o faroeste de Zahler é superior aos seus próprios filmes do gênero), teve distribuindo limitadíssima, e mesmo hoje não é facilmente encontrado em streamings.
Há também o fato de que seus filmes, apesar de serem de gênero, são inclassificáveis. Brawl in Cell Block 99, por exemplo, é ostensivamente um prison movie. Mas é estrelado por Vince Vaughn, que possui poucas linhas de diálogo, nada de humor, e se passa em um Estados Unidos que parece ser levemente distópico. O sistema prisional foi inteiramente privatizado, e as mega-corporações que os administram não possuem rosto, sendo um tanto orwellianas. Isso não faz com que o filme seja de ficção-científica, no entanto, mas a trama ocorre em um mundo que parece um reflexo invertido e sombrio de nossa própria realidade.



Isso se dá na verdade em todos os trabalhos de Zahler. Dragged Across Concrete, por exemplo, se passa numa metrópole ficcional, Bulwark, e Bone Tomahawk é um faroeste que brinca com ficção histórica. Como o nome da banda de heavy metal de Zahler denota, seu foco é não é só no plano da narrativa, mas sim na criação de universos ficcionais inteiros. E o melhor exemplo disso se dá no romance policial Mean Business on North Ganson Street.
III.
Apesar de ser um romance policial violento e brutal, Mean Business on North Ganson Street combina elementos de horror, faroeste e até mesmo do livro de fantasia. Com isso, não quero dizer que ele seja uma mescla de gêneros, mas sim a forma peculiar com que Zahler aborda o gênero policial. Vou tentar elaborar sobre isso na sequência.
Jules Bettinger é um detetive de 55 anos. Casado com uma artista plástica, e com dois filhos, um menino de 12 e uma menina de 4, Bettinger é o tipo de tira inteligente, experimentado e que tem um forte senso de dever e moral. Fez sua carreira em uma cidade quente, árida e relativamente pacata do Arizona. No entanto, os anos de experiência fizeram com que ele desenvolvesse um senso de realismo, também. O que quer dizer que Bettinger sabe quando deve forçar e torcer as regras para conseguir resolver um caso. Dito isso, é rigorosamente contra a ideia de quebrá-las. Bettinger acredita no trabalho da polícia, ainda que não seja ignorante quanto aos seus limites.
No começo do romance, um bem-sucedido executivo local aparece desesperado na delegacia, pedindo ajuda de Bettinger. Esse executivo se envolveu com uma prostituta mais jovem, negra, e se apaixonou por ela. Foi engambelado por esta, que conseguiu arrancar quase todo o dinheiro do executivo. Bettinger, que também é negro, sabe o que isso significa para o executivo, que é casado e com filhos. Não há nada que possa ser feito. O executivo se apaixonou e, como um trouxa, deu voluntariamente quase todo o seu dinheiro para a prostituta, que desapareceu. Bettinger é brutalmente realista e direto com o homem, que sai do seu escritório, vai até a entrada da delegacia, puxa uma arma e estoura os próprios miolos, “espalhando seus pensamentos culpados pela parede branca do distrito”.
Ocorre que o executivo era um amigo pessoal do governador do Estado, e um importante doador da campanha de reeleição. Bettinger é confrontado com duas opções: a demissão, ou ser transferido para o gélido Missouri, especificamente para a cidade de Victory.
Os próximos capítulos se detém justamente dessa transferência, e Zahler faz um retrato impecável da cidade. Primeiro, Victory é a considerada a pior cidade dos Estados Unidos, uma “mancha urbana que parece ter sido arrancada do Terceiro Mundo e despejada no Primeiro”. Há poucos policiais, as taxas de homicídio rivalizam com a El Salvador pré-Bukele, e tráfico de drogas e atividade de gangues corroem a cidade por dentro.
Para piorar, Victory é uma ruína pós-industrial. Segundo Bettinger, a cidade foi próspera na época em que “asiáticos ainda eram chamados de orientais”. A desindustrialização do país atingiu a cidade em cheio, que se tornou uma ruína. Fábricas e galpões abandonados, assim como conjuntos habitacionais arruinados preenchem a malha urbana da cidade. Os serviços públicos estão em estado de abandono, e nada parece funcionar direito. O hospital é um lugar sujo e lúgubre, a polícia sequer pode contar com um laboratório para processar provas e boa parte da delegacia sobrevive por conta de acordos frágeis que os policiais estabeleceram com as diversas facções criminosas.
O romance opera numa lógica de hiper-realismo. Victory faz a Gotham City de Frank Miller, ou a Detroit de Robocop parecerem cidades norueguesas. Para piorar, uma tempestade de neve castiga a cidade. Isso fica claro logo no começo. Primeiro, Bettinger acessa a cidade por uma rodovia, e passa por debaixo de um viaduto escuro e lúgubre. Lá, todos os dias, ele é acossado por um grupo de deliquentes, que ele rapidamente apelida de “trolls”. As placas da cidade estão vandalizadas com excremento humano. Há gatos mutilados pregados nos postes de luz. Na rua Ganson, que atravessa a cidade inteira, ele passa por bairros que foram apelidados como “Shitopia”, que poucos mais são que conjuntos habitacionais em ruínas, habitados por gangues, mendigos e viciados. Por fim, há um estranho fenômeno na cidade, em que pássaros e pombas simplesmente caem mortos do céu. Há pássaros mortos por toda parte, e ninguém sabe o certo o porquê disso.
A maré de azar de Bettinger não termina aí. Primeiro, boa parte das suas finanças são consumidas na transferência. Para não colocar sua família em risco em Victory, ele se muda para um subúrbio caro, que fica a mais de uma hora e meia de distância. O frio faz com que seu carro quebre, e sem dinheiro, ele precisa comprar um compacto hatch usado, de cor amarelo ovo, o que rapidamente faz com o que o detetive outsider se torne alvo de chacota de seus novos colegas. E, por fim, ele é pareado com o recém-demovido cabo Dominic Williams.
Williams - que, assim como Bettinger, também é negro - é um tipo mal-educado, desbocado e que parece ter pouca paciência para o verdadeiro trabalho policial. Bettinger gradualmente descobre que Williams esteve envolvido em um caso de brutalidade policial, onde ele e seu antigo parceiro, Tackley, um tipo luciferiano sinistro que tem o corpo coberto por manchas de vitiligo, e mais dois policiais, espancaram um traficante local chamado Sebastian, deixando-o paralítico, preso a uma cama de hospital, e com uma bolsa de colostomia. Os policiais só não foram presos por que Sebastian, que ainda está no hospital, estranhamente mudou de ideia e decidiu não seguir adiante com a denúncia. Dito isso, Bettinger repara que o tempo todo Williams ou está no celular, digitando furtivamente mensagens para alguém, ou se encontrando com Tackley. A relação entre Bettinger e Williams é, desde o início, complicada, e logo os dois se veem com um primeiro caso: uma jovem prostituta foi assassinada em Shitopia, tendo sofrido necrofilia logo após a sua morte.
Williams nem quer perder o tempo investigando o caso - é Victory, afinal, e coisas assim acontecem o tempo todo. Bettinger insiste, e eles vão investigar a cena do crime. Bettinger descobre três marcas triangulares no chão empoeirado, e deduz que um tripé fora montado no local da morte. Ou seja, alguém filmou a cena de necrofilia. Acreditando que se trata de um tipo de crime muito elaborado para ser algo isolado, Bettinger mergulha nos arquivos de casos não resolvidos e descobre que há uma longa sequência de jovens prostitutas que foram assassinadas em circunstâncias similares.
Parece que será um típico caso de assassinato em série, talvez com um elemento de submundo de snuff films, certo? Bem, não. Pois logo os dois começam a investigação, e policiais de Victory começam a ser brutalmente executados e mutilados por esquadrões de assassinos. Na verdade, não há padrão. Alguns policiais são mortos por times de assassinos, que percorrem as ruas da cidade em uma van escura. Há um outro assassino, solitário, que usa uma máscara blindada e com careta de demônio, que usa uma picape e uma pistola com silenciador. Há outro grupo de assassinos, que usa uma bela mulher como isca para atrair policiais solitários em bares. O fato é que, ao longo de duas noites, os vinte e quatro policiais de Victory vão sofrer atentados brutais, onde quase nenhum deles escapa ileso.
O chefe de polícia Zwolisnki, um dos personagens mais fascinantes do livro, é um boxeador polonês que parece calejado por anos em uma guerra de trincheira, logo coloca o “cop genocide” na lista de prioridades do departamento, e Bettinger e Williams se veem tendo de sobreviver a um massacre que toma as ruas de Victory.
Enquanto Bettinger tenta proteger sua família e identificar quem está por trás dos assassinatos, ele descobre que a solução do caso pode estar bem ao seu lado.
IV.
Boa parte do miolo do romance é composto por uma série de capítulos curtos, pouco mais do que vinhetas, apresentando diferentes policiais de Victory, que são atacados em diferentes pontos da cidade e por diferentes grupos de assassinos. Ao contrário do que é comum em muitos romances hard boiled, a narrativa é em terceira pessoa, que permite que Zahler possa saltar mais facilmente por diferentes grupos de personagens sem ter que assumir diferentes pontos de vista em primeira pessoa, algo que não só não é fácil de ser feito como, ao meu ver, numa trama rápida e compacta como a de Mean Businness, poderia ficar cansativo.
Mais complicado talvez seja o próprio estilo de Zahler. Ele sem sombra de dúvidas está firmemente na tradição de Raymond Chandler, reproduzindo o gutter speak chandleriano com maestria. Talvez por seu passado como compositor, o texto tenha um ritmo próprio, bem cadenciado, mas sem ser tão poético - por assim dizer - quanto Chandler. Na verdade, o estilo de Zahler é como poesia declamada em voz alta - mas por alguém que parece ter um punhado de cascalho e vidro na boca. É difícil de explicar, mas do mesmo jeito que Zahler descreve (e filma) brutalidade de uma maneira bem peculiar, assim o seu texto também o é.
Apesar da crítica ao romance ter sido bem elogiosa, alguns críticos tiveram seus problemas como estilo de Zahler. Alguns se incomodaram com sua verborragia (não achei o texto verborrágico), outros, com o fato de que ele emprega “palavras difíceis”, como se estivesse querendo se mostrar. Também não achei nada difícil, e olha que o inglês não é minha língua nativa. Acho que autores como James Ellroy, por exemplo, demandam muito mais do leitor.
Se há algo que possa ser criticado é a certa repetição de expressões e metáforas. Por exemplo, há diversas cenas com policiais dirigindo por Victory, caçando bandidos e indo atrás de testemunhas. O tempo todo Zahler descreve os personagens manejando o volante como “dialing the wheel left/right/back”. Nas duas, três primeiras vezes, até vá, mas o tempo todo fica um tanto cansativo. Também não sei se “dial” (“discar”) é a melhor metáfora para ser usada quando você quer descrever uma cena em que a polícia freneticamente percorre ruas em busca de assassinos no meio de uma nevasca apocalíptica. Mas enfim, é algo menor diante do todo que Zahler compõe.
E o tema é a principal composição. Aqui, há algo em comum tanto com seu tríptico western quanto com seu tríptico policial (não posso falar pelos romances Corpus Chrome, Inc e Hug Chickenpenny, nem por suas graphic novels, pois não li essas obras). O tema que perpassa todas essas obras é o da Catábase - isso é, a descida ao submundo (no caso dessas obras, aos infernos).
Como o já falecido crítico de cinema Robin Wood afirmou, em suas inúmeras obras dedicadas ao gênero horror, a Catábase é a narrativa mestre desse tipo de obra. Nele, vemos os protagonistas deixando o mundo “civilizado”, “racional” e “iluminado” em uma jornada - não diferente da jornada do herói, ainda que não seja a mesma coisa - onde eles gradualmente descem em direção ao submundo, um lugar que é escuro, regido pelo sobrenatural (ou pela insanidade) e onde o sublime horrível é uma constante. De Bram Stoker a F.W. Murnau, de Stephen King a Tobe Hooper, de Norman Bates a Freddy Krueger, de Thomas Tessier a Dario Argento, e por aí vai, sempre temos a estrutura da Catábase. A conclusão da jornada pode se dar de inúmeras maneiras. O protagonista pode morrer (o padre Karras, em O Exorcista), pode enlouquecer (Lovecraft et al) ou pode voltar da experiência profundamente traumatizado ou, ao menos, com cicatrizes (Clarice Starling e Will Graham, por exemplo, nos livros de Thomas Harris). Os romances de Zahler optam por esse terceiro caminho.
Em Bone Tomahawk, a jornada de Arthur O’Dywer (Patrick Wilson) para resgatar sua esposa, Samantha (Lili Simmons) o leva até um território habitado por “trogloditas canibais”; em Brawl in Cell Block 99, acompanhamos Bradley Thomas (Vince Vaughn), um criminoso monstruoso e ex-boxeador, numa jornada pelo inferno prisional, terminando numa cadeia administrada por uma corporação que é mais uma masmorra infernal, o nono círculo do inferno, do que uma prisão moderna; o dândi Nathaniel, em Wraiths of the Broken Land, descobre o horror que existe ao sul da fronteira, principalmente em uma cena de tortura - que envolve escorpiões - que é particularmente aterradora. E, claro, há a própria jornada de Jules Bettinger em Mean Business on North Ganson Street. É com isso que quero dizer que há um elemento tanto fantasioso quanto de horror nas obras de Zahler, ainda que, como é o caso dessas seis obras que compõem os dois trípticos, elas sejam “realistas” - ainda que exageradas.
Zahler deixa bem claro quais suas intenções - não nessas obras, mas sim em resenhas que escreveu sobre dois romances “de sacanagem” escritos pelo célebre romancista norte-americano Lawrence Block.
Block talvez seja mais famoso por ter criado o detetive particular católico Matthew Scudder (que já foi interpretado duas vezes no cinema, a primeira Jeff Bridges, no último filme de Hal Ashby, e a segunda por Liam Nesson, em um longa excelente dirigido por Scott Frank), o ladrão gentleman Bernie Rhodenbarr, assim como inúmeros outros romances policiais. Block começou sua carreira no final dos anos 50, e escreveu dezenas de romances sobre uma variedade quase infinita de pseudônimos. Como Lee Duncan, Don Holliday, Paul Kavanaugh e Anne Campbell Clark publicou uma série de romances pulp e paperback originals; como Jill Emerson, Ben Christopher e Sheldon Lord, publicou romances eróticos e pornográficos (no caso do pseudônimo Emerson, Block também explorou a temática lésbica, além de misturar alguns de seus romances eróticos com o thriller). E, por fim, como Andrew Shaw, Block publicou alguns livros mais extremos. São esses romances, que Zahler classifica como “sleaze” (sacanagem), que ele se debruça. Sobre o romance The Sadist (1962), Zahler diz:
Esta obra figura entre os livros mais depravados e amorais que já li, ao lado do horrendo e poético panfleto Bronson: Blind Rage, de “Philip Rawls” (que também resenhei). Embora talvez nada se compare à extrema e repugnante criatividade de um livro de Wade Garrett (com exceção, talvez, de alguns de Edward Lee), The Sadist e Blind Rage não são horror extremo, mas romances policiais amorais, com visões de mundo corroídas, ambientados em uma Terra doente. Assim, a sordidez em The Sadist não é uma demonstração ousada de engenhosidade repulsiva, mas uma extensão do subconsciente vil do personagem. O fato de os autores de ambos os livros terem escrito sob pseudônimos não diz respeito à qualidade das obras, que é bastante alta, mas sim ao conteúdo odioso que elas apresentam.
Link: https://www.scraigzahler.com/fiction/2019/10/31/the-sadist-andrew-shaw-review
Ao leitor comum, pode parecer trivial perder tempo com romances apelativos (“de sacanagem!”) escritos a toque de caixa. É verdade, até porque boa parte do que foi escrito e produzido nesse modo é porcaria. Mas vale lembrar também que Dashiell Hammett, Raymond Chandler e H.P. Lovecraft, para citarmos alguns, também começaram suas carreiras escrevendo em revistas pulp e lowbrow. E, na verdade, é justamente nessas publicações “inferiores”, “de baixa qualidade” que você pode encontrar ouro. É difícil explorar as profundezas perturbadoras da psique humana publicando ficção em revistas como a The New Yorker, a Harper’s Bazaar ou qualquer outra publicação high brow. Do mesmo jeito, no cinema americano, boa parte das grandes obras dos anos 40 e 50 foram em filmes B, tanto westerns quanto policiais, e não nos dramas de época classudos que venciam Oscars (a grande parte desses filmes foi, graças a Deus, esquecida). Ficaram as fitas baratas dirigidas por Samuel Fuller, Fritz Lang, Henry Hathaway e Anthony Mann, para citarmos alguns. Zahler parece ter essa mesma conclusão: “Enquanto alguns paperbacks de literatura depravada dessa época se limitavam a oferecer metáforas coloridas para seios e descrições vagas de comportamentos sexuais ‘aberrantes’, este livro genuinamente dá a sensação de que poderia ter sido ilegal possuí-lo. Uma obra feia e cortante de ódio, The Sadist entrega muito, muito, muito mais sordidez do que sua capa sensacionalista sugere.”
Em outra resenha, também sobre outro livro de Shaw/Block, Gutter Girl, de 1961, ele compara a obra de Shaw com o bestseller de Block, The Sins of the Fathers (1976), o primeiro romance com o personagem Matthew Scudder.
Gutter Girl é outra joia impura atribuída a Lawrence Block, escrevendo sob o pseudônimo Andrew Shaw. Entre este livro e o igualmente notável (e muito mais odioso) The Sadist (que resenhei em outro lugar), li um romance “legítimo” de Block, The Sins of the Fathers, o primeiro de sua longa série protagonizada por Matt Scudder.
Hm.
Ambos os livros de literatura depravada têm bastante sexualidade e depravação, mas também têm coração e uma sensação de urgência, enquanto o livro “mainstream” traz um sujeito desiludido montando um quebra-cabeça de mistério, no qual a maior parte do desconforto é narrada em segunda ou terceira mão, depois dos acontecimentos e de forma fragmentada. O livro do Scudder foi aceitável, mas completamente esquecível — exceto pelo desfecho, que é realmente muito forte.
Obviamente, prefiro os livros depravados, vívidos e angustiantes, embora, claro, ler esse tipo de material exija aceitar certa dose de sexualidade gratuita (provavelmente exigida pelo editor para combinar com a capa).
Link: https://www.scraigzahler.com/fiction/2019/10/31/gutter-girl-lawrence-block-andrew-shaw-review
Após uma breve análise da trama do romance, Zahler conclui sua resenha, dizendo bem claramente aonde moram seus interesses e gostos:
De certa forma, a história investigada de maneira indireta e contida em Sins of the Fathers é a mesma história principal aqui em Gutter Girl — há mais de alguns paralelos —, mas o segundo, apesar de ser um romance depravado, é uma experiência emocionalmente muito mais envolvente. Tenho, sem dúvida, mais interesse por caracterizações complexas de seres humanos falhos, que são seus próprios piores inimigos, do que pela simples pergunta: “quem foi o culpado?”
Pretendo continuar lendo mais de Block, e estou curioso para ver se o Block sem filtros, indecente, continua superando o Block “legítimo” e best-seller em termos de qualidade e ressonância emocional.
Um ponto comum nas obras de Zahler é que elas possuem tramas muito simplistas, até mesmo clichês. Faroestes de vingança, romances policiais com narrativas cops versus robbers, e por aí vai. Realmente, ler as sinopses de seus livros e filmes não prometem muita coisa, mas essas tramas são pouco mais que desculpas para que Zahler possa explorar em detalhe a psicologia de seus personagens, principalmente ao fazê-los passar por situações extremas, de horror inominável.
De novo, suas tramas não são sobrenaturais ou fantasiosas, mas Zahler claramente coloca seus personagens em mundos que parecem regidos por deuses gnósticos perversos. Wraiths of the Broken Land, Brawl in Cell Block 99 e Mean Business on North Ganson Street parecem, por vezes, parábolas bíblicas (Zahler foi criado como judeu, mas é ateu).
Aqui, eu preciso entrar em spoilers sobre a trama de Mean Business on North Ganson Street. Eu geralmente não ligo para esse tipo de coisa, e nem acho que as pessoas deveriam ligar tanto assim para isso, mas vai lá o aviso. Dessa vez, eu acho que ele é necessário. Vale muito a leitura não só desse romance, como também os outros de Zahler (e seus filmes, por óbvio).
V.
A família de Bettinger é atacada por um único assassino. No caso, um tcheco que usa uma máscara de demônio, colete à prova de balas e uma pistola com silenciador. Antes que seja executado por Bettinger, o assassino obriga a esposa e filhos de Bettinger a se despirem. Com um estilete, ele perfura um dos olhos da esposa, e dispara na cabeça do filho adolescente, matando-o.
Arruinado, com sua família possivelmente destruída, o restante do romance mostra Bettinger se unindo ao sinistro Tackley e ao seu parceiro Dominic Williams para caçarem e executarem o verdadeiro responsável pelos assassinatos: o traficante Sebastian.
Sebastian era um antigo aliado e informante da polícia de Victory. Ele podia traficar à vontade, conquanto que controlasse a violência nas ruas. O acordo se rompe quando Sebastian faz acordo com outras gangues, precipitando mais violência. Tackley, Williams e outros policiais retaliam, brutalizando Sebastian e sua namorada. Tackley ameaça fazer um aborto na namorada de Sebastian que, estressada em cativeiro, perde o filho de qualquer jeito.
Sebastian foge do hospital, e se esconde com sua namorada e irmã numa parte ao final da rua Ganson, conhecida como “The Heaps”. Essa parte da cidade é composta por prédios em ruínas e demolidos, fábricas abandonadas e favelas de caixotes e papelão. O trio de policiais se dirigem até o esconderijo de Sebastian, no antigo Fórum de Justiça de Victory, que está abandonado e parcialmente colapsado. No mesmo tempo, uma tempestade de neve vem do Canadá. O trecho final do romance é como um western apocalíptico de John Carpenter, com os três policiais tendo de avançar por uma wasteland urbana castigada pela fúria da natureza. Ao final da jornada, Sebastian é localizado. Ele está preso a uma cama de hospital, e sem querer atira contra seu próprio rosto a queima-roupa. Ainda vivo, mas sem metade de sua mandíbula, Bettinger esvazia a bolsa de colostomia no rosto arruinado de Sebastian.
Tackley, que veio munido de uma caixa marcada como “instrumentos de cozinha”, vai “trabalhar” nas duas mulheres. Bettinger é contra que elas sejam torturadas e mortas, mas sabe que, naquele inferno que é Victory, não há sentido em enfrentar Tackley, arriscando ser morto, deixando sua esposa viúva e sua filha, que acabou de perder o irmão, sem pai.
O epílogo do romance mostra Bettinger voltando para sua antiga delegacia no Arizona. Seu antigo chefe sabe o que ocorreu com o investigador em Victory, mas os dois decidem não falar a respeito. A família gradualmente trabalha o luto, principalmente a filha pequena do casal. Por fim, a esposa, que é uma artista plástica, começa a colocar a sua dor em suas telas, conquistando grande sucesso e prestígio.
Pouco antes de o romance terminar, Bettinger recebe uma ligação de Dominic. Ele solucionou o caso da prostituta assassinada. Não era um serial killer. Na verdade, o ato de assassinato e necrofilia é parte de um rito de iniciação em uma das muitas gangues que operam em Victory. Os atos eram filmados e entregues ao líder da gangue, que mantinha a gravação como “colateral” contra os seus subordinados.
De certa forma, a solução desse caso é ainda pior que a existência de um assassino em série. Victory não se resolve ou se purifica ao final. Ela vai continuar sendo um cancro nos Estados Unidos, um pedaço geográfico do inferno. Bettinger e sua família mal conseguiram escapar desse horror, e sua fuga não foi sem suor, dor, lágrimas e traumas. Mas, aos poucos, eles vão reconstruindo sua família. Para Bettinger e sua esposa, que são dois adultos de meia-idade, a jornada do romance é uma de “amadurecimento tardio”. Para a filha do casal, de quatro anos, é um bildungsroman antecipado. De algum jeito, o mundo não espera a hora certa para atacar, e esse descompasso no cosmos parece ser simbolizado pelos pássaros que simplesmente caem mortos do céu.
É interessante ver um artista multifacetado como S. Craig Zahler, que opera em diversos campos da criação artística, e com uma voz tão única e desenvolvida, operar em gêneros tão surrados quanto o Western e o policial. De fato, não parece haver muita diferença entre os romances dos dois tipos, o que, no caso, não é um ponto negativo. Para além da força do seu uso da linguagem, da caracterização rica e complexa de seus personagens, e da construção de mundos ficcionais vívidos e fascinantes (sua banda de heavy metal se chama Realmbuilder, afinal), a força da sua visão está justamente na sua articulação da Catábase, principalmente em como Zahler pega conceitos narrativos clássicos para explorar os recessos mais sombrios da mente humana.
Não é à toa que Zahler hoje seja considerado um cineasta cult. Seus filmes não ganham ampla distribuição (e divulgação), e seus romances e graphic novels são dificílimos de encontrar. O séquito fiel de fãs e admiradores que Zahler conquistou ao longo dos anos fez com que suas obras publicadas esgotassem rápido. É uma pena. Ao meu ver, seria o caso de editoras maiores e mais prestigiadas pudessem publicar o seu trabalho (afinal, aí temos autores como Dennis Cooper, Bret Easton Ellis, James Ellroy e outros, que são particularmente atraídos pelo lado sombrio da humanidade, que são publicados e distribuídos de maneira apropriada).