Sem sombra de dúvida vivemos em um mundo dominado pela cultura pop. Filmes de super-heróis que outrora eram obscuros até mesmos para os fãs de histórias em quadrinhos passaram a estrelar suas próprias películas, que comandam orçamentos multimilionários e cujas bilheterias alcançam cifras bilionárias. Tivemos cinco filmes de Transformers que, juntos, passam de dois bilhões de dólares nas bilheterias, e Barbie foi o maior sucesso comercial de 2023. Super-heróis, ficção-científica, ação e aventura e mesmo horror - gêneros que por mais de cinco décadas eram classificados com a letra “B” ganharam a atenção e as luzes da ribalta de todo mundo. E, com isso, invariavelmente tivemos também uma profusão de análises que tentam classificar e compreender esse curioso fenômeno. Temos todo tipo de leitura, grosso modo seguindo a divisão de Umberto Eco de “apocalípticos” e “integrados”. No campo apocalíptico, é comum um certo tipo de viés spengleriano de decadência da cultura, infantilização das massas e depredação das artes e do espírito. No campo dos integrados, por sua vez, escutamos comumente que tais filmes e obras, quando bem feitas, reproduzem mitos populares que comunicam mensagens poderosas e pertinentes para todos os segmentos do público. Lotam salas de cinemas mundo afora, unindo povos e mentalidades que dificilmente encontrariam diálogo em comum. Estou simplificando, claro, e sem querer cair em clichês apaziguadores, diria que os dois lados tem a sua razão. Eu mesmo tenho comentado incessantemente acerca dos problemas da Era das Franquias e a da ascensão do termo “conteúdo” (e dificilmente sou original neste ponto). Mas o fato é que certos gêneros e tipos de filmes, que antes viviam relegados às margens do mainstream, ganharam um papel de destaque extraordinário na cultura nos últimos anos. Mas, por pouco, um outro segmento quase ganhou esse mesmo destaque: o exploitation.
Os anos dourados dos filmes exploitation foram os anos 60 e 70, e tiraram vantagem dos movimentos sociais do período, além do surgimento da drug culture, para capitalizarem com adolescentes e a nascente youth culture do período. Eram filmes de baixíssimo orçamento, feitos completamente fora do circuito hollywoodiano, e eram exibidos em cinemas decadentes ou drive-in. Horror, ficção-científica e suspense eram misturados em películas mal-filmadas e dirigidas por amadores, e boa parte dos seus roteiros eram absolutamente incompreensíveis. O que resta de boa parte dessas, digamos, obras, são imagens de sexo, violência e, claro, gore. Mas, em meio a todo esse som e fúria, onde as fronteiras entre um gênero B e a pornografia pura e simples se dissolvem, alguns nomes emergiram: Russ Meyer, Larry Cohen, George Romero, Herschell Gordon Lewis, Wes Craven, John Carpenter, Stuart Gordon, Roger Corman, Charles Band, Cornel Wilde, Albert Pyun. Até mesmo figuras hoje consagradas, como David Lynch e Samuel Fuller criaram películas para atender o circuito dos chamados midnight movies. Tais filmes geralmente eram exibidos um na sequência do outro, e podia-se passar a madrugada inteira consumindo esse tipo de entretenimento. Mas, com a ascensão de Steven Spielberg e George Lucas, e de seus aprendizes, como Joe Dante e Joe Johnston e James Cameron, além das próprias mudanças sutis dos subterrâneos da cultura, esse tipo de filme desapareceu, ficando confinada nos anos 70. Enquanto isso, esses gêneros B ganharam um banho de loja por parte dos grandes estúdios, chegando às telonas de cinemas de shopping (basta ver que Roger Corman e a Cannon eram responsáveis por filmes de super-herói nos anos 80, e não grandes estúdios). Multiplex tal como vemos hoje em dia. Para todos os efeitos, esse tipo de filme seria uma nota de rodapé em manuais acadêmicos sobre cultura pop, e alguns nomes abraçados como fenômenos cult.
Em 2007 a dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez se juntaram para realizar um projeto que homenageava esse tipo de cinema: Grindhouse. Rodriguez fez Planeta Terror (Planet Terror) e Tarantino, À prova de morte (Death Proof). Os longas eram exibidos juntos, uma na sequência do outro. A imagem de ambos os longas de Tarantino e Rodriguez foram tratadas com filtros de pós-produção que deliberadamente emulavam os negativos mal-tratados de outrora: riscos, aberração cromática, projetores mal-calibrados e mesmo rolos de filme faltantes. Tudo de mentirinha, claro. Apesar de tais filmes conterem roteiros absurdos e ridículos, eles eram feitos por pessoas extremamente competentes que emulavam uma estética trash e de mau gosto. No entanto, Rodriguez e Tarantino foram além, e criaram comerciais fake e trailers de filmes igualmente fake de filmes que, em tese, não existiriam. Rob Zombie fez o trailer de Werewolf Women of the SS (algo como Mulheres Lobisomem da SS), que combina o horror sobrenatural com os filmes softcore naziexploitation e prison movies de sexo. Uma das coisas mais notáveis do trailer fake é a presença de Udo Kier como um oficial nazista e Nicolas Cage como Fu Manchu. O canadense Jason Eisener criou Mendigo com uma escopeta (Hobo With A Shotgun), um filme de vigilante aos moldes dos longas de J. Lee Thompson, Michael Winner e James Glickenhaus e o próprio Robert Rodriguez criou o seu super-herói mexicano, Machete, com Danny Trejo fazendo o papel de uma espécie de Rambo da fronteira. Ambos os trailers eram muito divertidos, e eventualmente viraram filmes de verdade. Mendigo com uma escopeta (a versão longa é de 2008), estrelado por Rutger Hauer, é uma pequena jóia de violência extrema e humor negro; Machete (a versão longa é de 2010), por sua vez, é morno e um tanto incompetente - e quanto menos falarmos de sua continuação, melhor. Mas, de todos esses, o melhor era Thanksgiving (Dia de Ação de Graças), trailer de slasher divertidíssimo de Eli Roth.




Se utilizando de trilha sonora surrupiada de Creepshow (idem, 1982, de George Romero) e empenhado em criar as mortes mais absurdas possíveis dentro de um slasher, Thanksgiving tem o senso humor macabro e doentio de um gibi da EC Comics com a estética sleazy de um video nasty. E a parte divertida de um trailer é, justamente, poder filmar só as cenas mais interessantes e divertidas de um filme, sem necessariamente precisar de um roteiro que as conecte com alguma coerência. Assim, temos um assassino que se veste como um peregrino e assassina os adolescentes da pequena cidade de Plymouth, Massachussetts. Dentre as mortes (gags), temos:
> Judy (Jordan Ladd) fazendo boquete (em, inglês, giving head) em Tucker (Eli Roth). Os dois estão numa típica cena de slasher: em um carro conversível, isolados no meio da mata. Bem no clímax (e Roth faz questão de inserir um bem audível som de deglutição), Judy percebe que, na verdade, Tucker foi decapitado (e o som de deglutição vem acompanhado de um esguicho de sangue do pescoço de Tucker). Give head and lose your head;
> Logo na sequência, Judy corre para os braços de outro amigo, Bobby (Jay Hernandez), que a conforta - e se aproveita para beijar a amiga. No meio do beijo - e absurdamente - Bobby também é decapitado, e Judy fica com a cabeça do amigo entre as suas mãos;




> Uma cheerleader (Vendula Bednarova) faz striptease enquanto pula numa cama elástica. No ar, abre as pernas num espacate, mas quando ela pousa na cama, o Peregrino (Jeff Rendell) rasga o tecido com sua faca de açougue, projetando a lâmina como um pênis de aço;





O trailer é uma sucessão de mortes e assassinatos que ligam diretamente morte a sexo, como é típico que slashers façam, mas Roth tira vantagem do fato de que, dentro toda a infinidade de slashers dos anos 80 que se baseiam em feriados nacionais (Natal, Dia dos Namorados, Ano Novo, Halloween etc), não há nenhum que se centre num dos feriados mais importantes dos Estados Unidos, o Dia de Ação de Graças. Assim como o Natal, o Dia de Ação de Graças possui seu próprio elenco de personagens simbólicos e arquetípicos, e culmina num grande banquete onde um pernil é assado. Pois Roth culmina seu filme com um banquete onde o pernil é, na verdade, um ser humano mutilado. Tudo é absurdo e uma mistura perfeita de horror e comédia, violência e sexo. Tendo em vista que slashers não são particularmente reconhecidos por suas tramas elaboradas e complexas, ou pelo seu alto custo de produção, era uma decepção o fato de que Roth, pelo visto, não tinha interesse, ou não conseguia, fazer o seu slasher - ainda mais com o recente revival do gênero. Por isso que foi um tanto surpreendente ver o lançamento de Thanksgiving (Feriado sangrento) no final do ano passado, 16 anos após o seu trailer em Grindhouse, e muito depois de toda a moda do exploitation.
Desconectado de sua origem como um filme piada feito dentro de uma estética particular, Feriado sangrento é, junto a Aterrorizante (Terrifier, 2016, e o segundo, em 2022, de Damien Leone), os melhores slashers feitos desde a sua era de ouro nos anos 80. Isso se dá pelo fato de que tanto Roth quanto Leone abraçam o gênero não com um ímpeto de homenageá-lo ou de capitalizar sobre nostalgia, mas sim porque ambos compreendem profundamente a natureza mítica, pagã e psicossexual que opera por trás de tramas simples de assassinos mascarados que matam pré-adolescentes embriagados de hormônios e desejo sexual.
Com certeza Eli Roth fazendo sua homenagem a Art The Clown, de Aterrorizante (Terrifier).
Quase todos os beats e assassinatos que estavam presentes no trailer fake de 2007 estão no novo longa, mas Roth abandonou a estética deliberadamente decadente de Grindhouse, e fez algo que está totalmente em linha com sua filmografia mais recente - e madura. Slashers que se apropriam de feriados nacionais invariavelmente seguem a mesma fórmula: no prólogo, o que deveria ser uma típica celebração do feriado termina em tragédia (geralmente por conta de algum tipo de acidente causado por estupidez ou negligência humanas) e, alguns anos depois, descobrimos que a tal tragédia foi varrida para debaixo do tapete. No presente, acompanhamos um grupo de jovens que passa a ser assassinado por um agressor misterioso que encarna uma versão distorcida do feriado - o Papai Noel, um Cupido, um monstro mascarado qualquer. À medida que as mortes ocorrem, a pequena comunidade como um todo precisa fazer as contas com seu passado criminoso. Quando os crimes do passado são exorcizados no presente, o assassino - geralmente alguém que faz parte do grupo de protagonistas - é descoberto e eliminado. Sendo assim, slashers, assim como os giallo italianos dos anos 60 e 70, seguem a estrutura do filme de mistério whodunit, onde o tempo todo ficamos considerando suspeitos em potencial dentro do pequeno grupo de personagens. O exemplo primordial desse tipo de história são as tramas de Agatha Christie, em especial E não sobrou nenhum (1939). No cânone do horror, os exemplos mais famosos são Halloween (idem, 1978, de John Carpenter), Dia dos Namorados Macabro (My Bloody Valentine, 1981, de George Mihalka), Noite do Terror (Black Christmas, 1974, de Bob Clark), Reveillon Maldito (New Year’s Evil, 1980, de Emmett Alston), Natal Sangrento (Silent Night, Deadly Night, 1984, de Charles E. Sellier Jr.) e Noite das Brincadeiras Mortais (April Fool’s Day, 1986, de Fred Walton). Para todos os efeitos, Roth segue à risca a fórmula, mas a maneira como ele trabalha cada um dos beats dessa fórmula batida é que tornam o seu filme algo muito mais interessante do que boa parte desses slashers.






O Dia de Ação de Graças é um dos feriados nacionais mais importantes dos Estados Unidos, pois está diretamente conectado à fundação do país pelos primeiros colonos (os peregrinos). Por isso, é significativo que Roth abra seu filme com uma multidão ensandecida de pessoas se aglomerando para entrar em uma loja de departamentos e eletrônicos que faz uma promoção (estilo Black Friday) na noite do banquete de Ação de Graças. O olhar satírico e afiado de Roth emula os zumbis de George Romero para retratar a fúria consumista anencéfala dos habitantes de Plymouth, Massachussetts. A irresponsabilidade do rico empresário Thomas Wright (Rick Hoffmann, ator regular de Roth), dono da loja, assim como a incompetência e negligência por parte de seus funcionários, além da sanha assassina desencadeada pelo desejo de consumir de alguns clientes transformam a noite de celebração em um massacre desenfreado.






No ano seguinte, apesar das mortes e perdas, o massacre é tratado como uma mera curiosidade viral de internet (as imagens do dia foram vazadas no YouTube) e a própria comunidade trata como se nada fosse - inclusive Wright, que se prepara para mais uma mega-promoção de Dia de Ação de Graças. É quando as mortes começam, perpetradas por um assassino que se veste de peregrino…
Roth percorre com maestria a delicada corda bamba da sátira com o horror e o medo. Parte disso se dá pelo fato de que ele satiriza os seus personagens, e não o gênero - não há nenhum resquício de nostalgia ou homenagem aqui, nem mesmo citações do tipo easter egg. Roth veste a camisa do gênero, e usa o feriado da fundação dos EUA como forma de criticar a forma como o país se corrompeu pela forma mais banal de consumismo e espetacularização da morte e da tragédia. Assim como a Tebas de Édipo, Plymouth (como tantas outras pequenas cidades e comunidades dos slashers de feriados nacionais) é uma cidade em nítida decadência, apodrecendo por conta dos seus crimes não resolvidos do passado. Nesse sentido, Feriado sangrento recupera uma tradição que é muito cara ao horror norte-americano: a sátira macabra.
Os gibis da EC Comics dos anos 50 são o melhor exemplo desse tipo de história, seja em Contos da Cripta, Vault of Horror, Haunt of Fear ou Shock SuspenStories. A linha editorial de William Gaines, Harvey Kurtzman e Al Feldstein sempre foi polêmica. Seus gibis exploravam temas controversos e mesmo tabus, como racismo, sexualidade, misoginia, toda forma de corrupção (política, religiosa, ideológica) e mesmo seus títulos que abordavam temas como a guerra retratavam personagens e histórias que decididamente não celebravam a coragem, a honra e o patriotismo. No entanto, artistas como Joe Orlando, Jack Kamen, Reed Crandall, Al Williamson e diversos outros nomes célebres do cânone da Nona Arte tratavam tais temas com distanciamento irônico e um senso de sátira que só seria suplantada pelos Zines e quadrinhos underground dos anos 60 e 70. Roth se insere perfeitamente nesta tradição, se usando de sexo, violência e horror para expor os lados mais sombrios e irracionais da psique humana e do seu país.
Nesse sentido, a sua atitude é visivelmente de contracultura. O sonho americano não é meramente convertido em pesadelo, mas sim com uma série de reflexos fragmentados e distorcidos de um labirinto de espelhos de parque de diversões; as situações são exageradas, o horror convertido em choque, um golpe de faca é a punchline de uma piada. Para todo banho de sangue e vísceras, há uma inteligência ardilosa em todos os filmes de Roth.
O Albergue e O Albergue 2 (Hostel, 2005 e Hostel: Part 2, 2007) são verdadeiramente o gênero torture porn, muito mais do que filmes que geralmente também são encaixados nesta categoria (como Jogos Mortais). As tramas aparentemente abordam temas como turismo sexual e sadismo, mas são na verdade inteligentes atualizações do gênero. Um grupo de protagonistas jovens que se afastam da “civilização” rumo a paisagens exóticas e pouco exploradas (no caso, o Leste Europeu pós-Cortina de Ferro). Lá, se envolvem com locais em escapadas de sexo e drogas, somente para serem capturados e levados para um submundo de tortura extrema e violência. A invertida de Roth é que os torturadores também são turistas - e provém da mesma “civilização” que as vítimas. Roth inclusive reforça este ponto na continuação, onde as vítimas são leiloadas e vendidas de maneira inescrupulosa através de um site exclusivo. Tecnologia e barbárie animalesca se conectam numa paisagem européia que mistura a arquitetura clássica com galpões abandonados pós-industriais. Mas a verdadeira sacada é como Roth torna o espectador cúmplice: primeiro, ele explora o voyeurismo do sexo, e a nudez e coreografia sexual são deliberadamente espelhadas na mesma nudez e coreografia de tortura dos personagens.
É dessa forma que Roth consegue atualizar as fórmulas dos gêneros Mondo (o exotismo e rituais de outros povos, retratados com um distanciamento de documentário etnográfico) com certa tradição do cinema erótico e de terror japonês: o pinky violence, variante do pink cinema (cinema erótico) que fez tanto sucesso no Japão durante dos anos 60 e 70 (ele corresponde tanto ao slasher norte-americano quanto ao rape and revenge e também às pornochanchadas brasileiras). Trata-se de um tipo de filme exploitation que, no Japão, foi produzido pelos grandes estúdios do país, comandando por vezes orçamentos razoáveis. Ou seja, diferentemente do que ocorreu em outros países, o fenômeno do pink film (que engloba uma variedade de gêneros e subgêneros) é relativamente mainstream. No caso do pinky violence, temos os filmes de Teruo Ishii e Koji Wakamatsu como principal referencial para Roth - além, claro, de Takashi Miike (que inclusive faz uma ponta no primeiro Albergue).
Shogun’s Joy of Torture (Tokugawa onna keibatsu-shi, 1968) e Shogun’s Sadism (ou The Joy of Torture 2: Oxen Split Torturing; Tokugawa onna keibatsu-emaki, 1976) são dois filmes de época e em formato antologia de Ishii que nos transportam ao passado feudal do Japão para mostrar as diferentes formas de tortura física e sexual que eram comuns ao período. Ambos os filmes justificam sua existência com a missão de denunciar o passado bárbaro e violento do país, mas a câmera de Ishii é muito mais ambígua: por vezes, parece querer deleitar o espectador nas cenas de mulheres e homens nus sendo torturados de todas as formas. Ishii na verdade antecipa o Pasolini da Trilogia da Vida e também de Saló, os 120 Dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975, de Pier Paolo Pasolini) ao mostrar certa forma de masoquismo católico, ao nos mostrar como fiéis da religião eram torturados e mortos durante a ascensão do xogunato na Era Edō (1603-1868). Wakamatsu, por sua vez, realizou uma série de pequenos filmes (com duração de 40 a 60 minutos) retratando crimes sexuais de serial killers. Violated Angels (Okasareta Hakui, 1967), por exemplo, se baseia no massacre de Richard Speck, que invadiu um internato de enfermeiras, onde estuprou e matou diversas jovens. Cenas de sadomasoquismo, tortura e assassinato são retratados de forma semelhante, e por isso esse tipo de pinky film é por vezes categorizado como ero goru - ou gore erótico. O direto antecessor do torture porn de Roth.






O diretor norte-americano parece ter a mesma mentalidade de seus antecessores japoneses, que usavam a arte ero goru como forma de confrontar e expor tabus da sociedade através de estímulos antagônicos de atração e repulsa no espectador. Em seu livro sobre o Japão moderno, Ian Buruma detecta o surgimento do ero goru nos anos 1920 ao perceber que a sociedade japonesa passava por uma crise semelhante à da República de Weimar. A Alemanha deu forma às suas crises com o Expressionismo; o Japão, entre outras, com o ero goru. No caso do torture porn, não foram poucos os comentaristas que traçaram paralelos do desenvolvimento do gênero com o pós-11 de setembro, e a publicização de imagens de tortura, seja em Guantánamo, seja em algum porão no Iraque ou Afeganistão. Roth, no entanto, canaliza Ishii, Wakamatsu e Miike pois ele gosta de nos mostrar o lado sombrio da natureza humana, e o que nos separa da barbárie é nada menos que um mero véu.





Ele dobraria a aposta com Canibais (The Green Inferno, 2013), exploitation ao estilo Mondo de Ruggero Deodato e video nasties como as compilações Faces of Death (os filmes ero goru, aliás, foram distribuídos em VHS para capitalizar sobre esse mercado emergente dos anos 80 e 90). Canibais é quase um filme tese de Roth: a protagonista Justine (interpretada pela sua então esposa Lorenza Izzo) é uma universitária e ativista, que viaja com amigos para o coração da selva amazônica para protestar o desmatamento feito por uma mega-corporação americana, somente para serem capturados e brutalizados por uma tribo canibal. O enfoque Mondo que Roth dá ao filme já seria suficiente polêmico, mas o fato da protagonista se chamar Justine (remetendo não só à protagonista sofrida e humilhada de Sade, mas também às protagonistas virginais do mestre trash Jess Franco) já é indicação suficiente de que Roth quer que nós não só tenhamos alguma forma de prazer com o sofrimento retratado na tela, mas que também demos algumas risadas com seus personagens ridículos.





Todo o filme opera numa lógica econômica. Justine se junta ao grupo de ativistas porque tem interesse no rapaz que lidera o grupo; o grupo, por sua vez, parece unido por motivos que não simplesmente a defesa de causas - estão lá por algum tipo de desejo sexual ou pessoal. Mas há também diferentes hierarquias de poder: Justine é rica, filha de um importante advogado que trabalha nas Nações Unidas (o que desperta também o interesse do grupo de jovens nela). E, claro, há a lógica do consumo: seja os das grandes corporações em desmatarem a selva, seja no consumo ritualístico de carne humana. Mondo canibale, Mondo cane.
Mas é errado quem pensa que Roth simplesmente parodia o tipo de documentário etnográfico produzido por Jean Rouch ou Lévi-Strauss nos anos 70. Na verdade, ele filma os universitários com o mesmo interesse antropológico que ele filma seus canibais indígenas. Ambos são exagerados e caricaturizados, e esse tratamento equânime é fundamental para a elaboração da tese do filme: nós, seres modernos e pretensamente civilizados somos simplesmente mais um tipo de tribo canibal no meio da selva.
Canibais representa o início de uma fase mais madura de Roth, onde ele consegue balancear horror, sexo e sátira com perfeição. O thriller erótico Bata antes de entrar (Knock Knock, 2015) e Desejo de matar (Death Wish, 2018) - ambos refilmagens de exploitations dos anos 70 - vão ainda mais fundo na sátira, e Roth não tem medo de trabalhar temas perturbadores, como o vigilantismo, porte de armas e violência policial em seu remake do clássico de Michael Winner e Charles Bronson (aliás, muito melhor do que o original, diga-se). Não é à toa que os críticos torçam o nariz para estes filmes recentes, pois Roth se deleita com paradoxos e ambiguidades.
Ainda acredito que Roth nos deva a sua masterpiece. No entanto, de Canibais até Feriado sangrento, sua maneira particular de filmar exploitation chegou a um novo patamar de maturidade. O Roth de Cabana do inferno (Cabin Fever, 2002) e filmes subsequentes sempre mostrou promessa e uma visão única e consistente, mas sua técnica sempre teve seus altos e baixos. Tanto o primeiro quanto o segundo Albergue são conceitos brilhantes para o cinema de horror (principalmente por conta de sua simplicidade), e ambos os filmes possuem sacadas geniais. Mas eles também possuem tropeços, que vão de castings fracos e irregulares, problemas de ritmo e balanceamento e mesmo um tom que nem sempre transita bem entre o horror e a sátira (é algo que suas influências asiáticas e italianas faziam melhor). Mas seus filmes mais recentes de horror tem encontrado esse balanceamento e acertado nas escolhas. Pode ser que Roth seja um daqueles cineastas onde o conjunto da obra valham mais do que um filme ou dois que se destaquem como master works. Independentemente disso, o fato é há consistência em seus filmes, e uma nítida evolução entre um e outro.








Nesse sentido, há um paralelo entre Roth e outro cineasta, James B. Harris. Apesar de uma extensa carreira como produtor (inclusive produzindo os primeiros filmes de Stanley Kubrick, além do ocasional thriller de Don Siegel), Harris teve uma carreira curta na direção, tendo realizado apenas cinco longas ao longo dos anos 80 e 90. Três deles, no entanto, se destacam: Fast-Walking (idem, 1982), Um policial acima da lei (Cop, 1988, adaptado de James Ellroy) e Boiling Point: Em ponto de bala (Boiling Point, 1993) são neo-noirs, feitos durante o auge do desenvolvimento do gênero e da celebração pós-moderna do noir clássico que, não obstante, não possuem por parte de Harris nem um pingo de auto-consciência ou aceno metalinguístico ao gênero. Roth faz noirs nos anos 80 e 90 porque é o gênero que melhor funciona para que ele desenvolva sua visão de mundo. E, assim como Roth, seu estilo é direto, espartano, pouco estilizado. Atemporal, portanto. Os filmes de Harris foram ignorados pela crítica e público, sendo fracassos de bilheteria, mas é um cineasta que salta da tendência de sua época de celebrar gêneros com citações, nostalgia e homenagens - exatamente como Roth, hoje.
Por isso que se distanciar de Grindhouse e da recuperação do exploitation foi a melhor coisa que poderia ter acontecido a Roth. Não há mais gracejos como aplicar filtros de correção de cor e pós-produção que gerem uma imagem artificialmente tosca e mal-tratada; ele simplesmente faz filmes como faria em qualquer época. Mais do que qualquer outro diretor de sua geração, Roth compreende que o cinema exploitation é algo que apela não ao nosso adolescente interior, mas sim ao Cro-Magnon que nunca deixamos de ser. Seus filmes são como as imagens pintadas nas cavernas, com Roth manipulando as tochas que dão vida àquelas figuras arquetípicas que habitam os corredores mais sinuosos e obscuros de nossa psique. Parte do segredo é compreender que seus filmes não necessariamente operam como gêneros ou fórmulas comerciais batidas, mas sim como histórias que contamos em volta da fogueira. Mitos e símbolos e arquétipos que são constantemente trabalhados, re-trabalhados, mesclados e combinados. Há uma óbvia universalidade nas imagens e tramas que ele conjura. Mas uma das coisas que destaca Roth de seus contemporâneos na cultura pop é a própria rejeição da nostalgia. Cabana do inferno e Canibais, por exemplo, podem ser homenagens explícitas a certos filmes e gêneros, mas nunca são celebrações vazias pop. Se Roth volta a esses filmes - inclusive, com refilmagens - é porque ele quer recontar uma fábula ou história dando a sua própria visão. É como Ésquilo contando o mito de Édipo, ou Eurípedes com Medéia. Apesar de sua amizade e ocasional parceria com Tarantino e Rodriguez, não há em toda a sua filmografia aquela típica piscadela pós-moderna ao espectador. Roth, assim como Harris, usa o gênero e suas convenções porque elas são as mais apropriadas para dar vazão à sua visão de mundo - e talvez por isso que, salvo as polêmicas que seus filmes levantam (como o uso de sexo, nudez e violência extrema), ele praticamente passa desapercebido fora do circuito de horror. E, mesmo dentro desse circuito, ele parece ocupar um lugar próprio. Por um lado, ele não está no mainstream, onde franquias como Pânico, Halloween e O Massacre da Serra Elétrica são revividos pela Blumhouse e distribuídos por grandes estúdios e plataformas de streaming; por outro, Roth também não está na toada do tal do “elevated horror” associado a produtoras como a A24. Isso é curioso, tendo em vista que os filmes de Roth são comerciais e acessíveis como os longas de horror mainstream, e muito mais perturbadores, corajosos e transgressores do que a bullshitagem que se passa por “horror elevado”. Me parece ser uma posição bastante confortável de se ter.
Adorei suas análises, como sempre, Luis Villaverde! Você é incrível!
Já me fez repensar sobre os "monstros japoneses" e agora esse estilo que não assisto há séculos!
Parabéns sempre e muito obrigada por seu aprofundamento em tudo que faz!
Achei interessante você citar Agatha Christie, principalmente seu melhor livro, (E Não Sobrou Nenhum ou O Conto dos 10 Negrinhos), tenho uma curiosidade sobre a autora, mas não conheço ninguém que também tenha reparado o mesmo que eu. Li praticamente todos os livros dela, até os que não suporto, mas depois de ler os originais do autor de Sherlock Holmes, fiquei decepcionada com Agatha Christie, tem frases, contextos e até títulos de Sherlock Holmes! Será que isso já foi analisado e eu não vi?
Obrigada e, como sempre, parabéns! Você me faz pensar! Adooooooro! 🙌