Longlegs: Vínculo Mortal (Longlegs, 2024) é talvez um dos melhores filmes que vi este ano. Eu sinceramente não esperava por isso. É verdade que acompanho de perto o trabalho do diretor e roteirista Osgood Perkins. Sim, todos sabemos que ele é o filho de Anthony Perkins, o eterno Norman Bates de Psicose (Psycho, 1960, de Alfred Hitchcock), e apesar de ser artista que já possui uma obra, principalmente no campo do horror, seu trabalho tem existido numa zona cinzenta, discreta. A Enviada do Mal (The Blackcoat’s Daughter, 2015), seu primeiro longa, é uma atualização brilhante do gênero gótico no contexto norte-americano, mas é um filme lento, atmosférico e profundamente ambíguo. É uma estréia formidável, e uma que já mostra plena maturidade de seu realizador ao adotar com maestria o seu gênero de preferência, e um que ele continuaria com O Último Capítulo (I Am the Pretty Thing That Lives in the House, 2016), produção original da Netflix e um que Perkins usou para explorar a célebre ghost story. Apesar de ambos filmes terem adquirido sua parcela de admiradores (eu incluso), o fato é que Perkins é uma figura discreta, que leva tempo com seus projetos e que passa ao largo das inovações do horror nas últimas décadas. Seus filmes são de baixo-orçamento ou, então, mid-budget, um tipo de filme que era comum em Hollywood antes da ascensão da Era das Franquias, mas hoje é uma avis rara. Seria fácil colocar Oz Perkins na mesma chave de diretores como Robert Eggers ou Ari Aster, que geralmente são classificados na alcunha de “elevated horror”, mas seus filmes passam longe destes. O filme que deveria ser seu primeiro grande sucesso, Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel, 2020) teve o azar de estrear nos cinemas pouco antes da pandemia da Covid19, o que afetou sua bilheteria. Mas é sem dúvidas um longa extraordinário, uma reinvenção do clássico conto de fadas dos Irmãos Grimm reimaginada como uma complexa dark fantasy. Apesar de seu grande orçamento, e uma paleta ampla para que Perkins desenvolvesse sua estética peculiar, se trata de um filme tão único e atípico que é extraordinário que o filme sequer tenha sido feito. Talvez seja por isso que Perkins tenha trabalhado nas margens dos grandes estúdios, desenvolvendo seu trabalho com selos como A24, Annapurna e, agora, a NEON, com Longlegs.
Longlegs é um caso curioso também de uma certa tendência que temos visto no marketing de filmes independentes dos Estados Unidos. Nesse sentido, é uma obra irmã de Guerra Civil (Civil War, 2024, de Alex Garland). Ambos os filmes foram produzidos por esses selos butique: a A24, no caso de Garland, e a NEON, no caso de Perkins. As duas películas também se tornaram as maiores bilheterias da história de ambas empresas, e isso se deu em grande parte por causa de campanhas de marketing brilhantes. Todos sabemos que Guerra Civil gerou uma série de polêmicas, apostando na guerra cultural para galvanizar o público; já Longlegs, por outro lado, parecia ter uma campanha verdadeiramente amaldiçoada, com imagens perturbadoras e crípticas se tornando um verdadeiro frenesi nas redes sociais. Por fim, ambos longas fizeram um bem-sucedido percurso em festivais de cinema mundo afora, com estréias e conferências de imprensa precisas. E, por fim, os dois filmes confundiram o público quando este finalmente pode ir aos cinemas para assisti-lo.
Muitos se decepcionaram com o longa de Garland, esperando um tratado político que anteciparia as eleições presidenciais americanas, fazendo um raio X da sociedade, e quem sabe atacando a esquerda - ou a direita (dependendo do lado que você se alia). O filme não era nada disso, sendo, na verdade, muito mais interessante e subversivo que qualquer tratado politico. E mais: o filme é um elaborado estudo sobre o Mal e a entropia no mundo contemporâneo. Longlegs, supreendentemente, não é diferente; pelo contrário, é até mesmo muito parecido - ainda que seja muito mais subversivo e corrosivo que Guerra Civil.
I.
Num primeiro momento, Longlegs é um thriller psicológico prototípico. A história se passa no estado do Oregon, nos anos 90, e acompanha a detetive do FBI Lee Harker (Maika Monroe), que aparentemente possui uma habilidade telepática latente. Após identificar o esconderijo de um suspeito com esse “poder” (que ela não controla), Harker é direcionada para o caso Longlegs por seu superior, Carter (Blair Underwood). Trata-se de um caso aparentemente impossível de solucionar.
Famílias inteiras são assassinadas pelos patriarcas, que logo depois cometem suicídio. Os crimes sempre são cometidos com armas e objetos contundentes da própria casa, e ocorrem seis dias antes, ou seis dias depois do aniversário de nove anos das filhas. E o aniversário das meninas é sempre no dia 14. São famílias normais, sem nenhum histórico de violência ou abuso. A princípio, parecem casos típicos de “aniquiladores de família”, um tipo de homicídio seguido por suicídio onde familiares assassinam toda a sua família e terminam tirando a própria vida. No caso dos crimes de Longlegs, nenhum motivo pode ser delineado - a não ser, no caso, por um detalhe perturbador: investigadores sempre descobrem notas nas casas, repletos de anotações feitas com símbolos estranhos e com uma assinatura: “Longlegs”. A caligrafia não pertence a nenhum membro da família, e nenhuma impressão digital ou vestígio de DNA estranho é encontrado nas casas. Assim, claramente há algum indivíduo que provoca os crimes, talvez influenciando membros da família. Seja como for, dezenas de pessoas morreram ao longo das décadas, e o FBI nunca chegou perto de identificar ou apontar um suspeito. É aí que entra Lee Harker.
O que se segue é um thriller psicológico e de horror onde acompanhamos Lee e o FBI no encalço de Longlegs. A primeira parte do filme é centrada na investigação, e Oz Perkins nos coloca em um terreno familiar. Sua principal influência é O silêncio dos inocentes (The Silence of the Lambs, 1991, de Jonathan Demme), clássico filme de serial killer que nos apresentou a jovem agente do FBI Clarice Starling (Jodie Foster) no encalço de um assassino de mulheres, Buffalo Bill (Ted Levine), e sendo auxiliada pelo assassino canibal Hannibal Lecter (Anthony Hopkins). Mas o filme também ecoa outros clássicos do gênero, como Se7en: os sete crimes capitais (Se7en, 1995, de David Fincher) e Zodíaco (Zodiac, 2007, também de Fincher) e os seriados True Detective (em especial a primeira temporada, de 2014, dirigida por Cary Joji Fukunaga) e as duas temporadas de Mindhunter (2017-19). De fato, Longlegs parece uma combinação de todos esses filmes e séries em sua primeira metade, e seria um filme razoavelmente convencional não fosse pelo aspecto sobrenatural da trama (os poderes de Lee) e pela própria linguagem visual e sonora empregada por Perkins. Seu rigor formal capta perfeitamente a paisagem de gótico americano, que já foi tão bem explorada por fotógrafos como Gregory Crewdson, Robert Frank e Ralph Eugene Meatyard. O filme é lento, deliberativo, onde a atmosfera macabra e sinistra apontam para algo mais perturbador ocorrendo no espaço extracampo. Apesar da classificação indicativa de 18 anos, há pouca violência gráfica - e, misericordiosamente, nenhum jump scare.
A entrada de Lee na investigação precipita novas descobertas e conexões no caso: uma vítima que sobreviveu a um dos ataques de Longlegs, uma nova família como alvo potencial, e uma sinistra e bizarra conexão pessoal de Lee com o caso. O marketing do filme foi muito sagaz em esconder Longlegs dos trailers e cartazes. Enterrado em camadas de maquiagem, o assassino é interpretado por Nicolas Cage em um trabalho que poderia ter vindo na esteira de Despedida em Las Vegas (Leaving Las Vegas, 1995, de Mike Figgis), papel que lhe rendeu um Oscar de Melhor Ator. Essa segunda metade do filme nos mergulha, literalmente, em uma trama de horror sobrenatural satanista. Nos próximos parágrafos vou discutir o final da narrativa, assim como suas viradas. Se o leitor ainda não assistiu o filme, sugiro que pare de ler por aqui.
Sim, Longlegs é um satanista obsessivo, e o psicopata admite servir “O Homem do Andar de Baixo”. Uma sucessão de descobertas bizarras levam Lee e Carter a uma espiral estranha, onde uma força verdadeiramente demoníaca parece conduzir todos os elementos da narrativa. Mas a narrativa muda de uma de investigação de um caso criminal para uma de exploração da própria personagem de Lee, a partir de eventos traumáticos de sua infância e na relação com sua mãe religiosa, Ruth (Alicia Witt).
A virada do filme é que descobrimos que a jovem Lee, então com nove anos de idade, seria a próxima vítima de Longlegs. No entanto, sua mãe intervém e faz um pacto com Longlegs. Ela cede o porão de sua casa para o homem misterioso e bizarro, que o usa como oficina onde ele fabrica bonecas que são fac-símiles das garotinhas das famílias que serão aniquiladas. Essas bonecas se tornam… “possuídas” pelo demônio, e elas influenciam os patriarcas a promoverem suas chacinas suicidas. As bonecas são presenteadas para as meninas por Ruth, disfarçada de freira. O pacto foi feito para proteger Lee de Longlegs e de Satã.
Após essas descobertas, Lee precisa impedir que sua mãe mate a próxima família: no caso, a família do agente Carter. Ela chega atrasada, no entanto, e não consegue impedir Carter de assassinar sua esposa. Lee termina matando Carter e sua mãe, mas não consegue destruir a boneca - sua arma falha antes que ela possa fazer isso. E, assim, o filme acaba.
Não é de surpreender que o filme tenha sido dado como entediante, senão decepcionante, para boa parte do público. Como falei anteriormente, Longlegs possui um ritmo lento, deliberado. Os personagens falam em tons monocórdios, e a própria trama, apesar de ser uma corrida contra o tempo (semelhante a O silêncio dos inocentes e Se7en), o ritmo sempre se mantém lento. Oz Perkins está interessado em criar um universo imersivo. O horror brota das imagens deslumbrantes que ele conjura junto ao diretor de fotografia Andres Orochi, o diretor de arte Danny Vermette e a trilha sonora de Zilgi (Danny Perkins).
Boa parte do filme se passa nessa América do Centro-Oeste, um apanhado de paisagens desoladas e despovoadas: plantações, fazendas, estradas. Casas de estilo suburbano, com ecos do passado colonial e puritano do país, ou então corredores e escritórios funcionais e banais do FBI. Aparentemente encarnando o conceito de unheimlich - desfamiliar - de Sigmund Freud, Perkins consegue fazer o horror brotar dos lugares mais inusitados. O Mal e a perversidade se ocultam por trás do véu que encobre a nossa realidade cotidiana, e de vez em quando conseguimos vislumbrá-lo. Nesse sentido, em termos fílmicos, Perkins reproduz o senso de horror desenvolvido por cineastas do Expressionismo alemão como F.W. Murnau, Paul Leni e Robert Wiene: o verdadeiro horror permanece off screen, entre um enquadramento e outro, no extracampo. Isso reforça a sensação, em Longlegs, de que Aquele Que Não Deve Ser Nomeado está marionetando os personagens e os eventos da história de algum canto obscuro, ctônico. Resta somente aos personagens confrontarem o horror em questão, ainda que de maneira indireta.
Mas é exatamente esse aspecto indireto do filme que parece ter frustrado boa parte do público. Oz Perkins deliberadamente nos coloca em uma posição familiar na primeira metade do filme. Parece que estamos assistindo uma variante sobrenatural de O silêncio dos inocentes, Se7en e True Detective, somente para nos levar em uma direção completamente diferente, e que não é facilmente compreendida. Apesar da temática satânica, Perkins não se rende aos clichês estabelecidos em filmes como O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968, de Roman Polanski), O Exorcista (The Exorcist, 1973, de William Friedkin) e A Profecia (The Omen, 1976, de Richard Donner). Na verdade, ele vai numa direção completamente única e diferente, que no máximo pode ser comparada a filmes recentes como o brilhante O mensageiro do último dia (The Empty Man, 2020, de David Prior) ou Kill List (sem tradução, 2011, de Ben Wheatley).
O caráter indefinível do filme, que toma elementos do thriller psicológico, do horror sobrenatural, do pânico satânico, e do noir aproximam o filme, na verdade, do horror weird. A estética rebuscada empregada por Perkins, centrada em efeitos atmosféricos, fizeram com que o diretor fosse acusado de ser mais um esteta do que um contador de história, a velha cantilena de style over substance. Esse é um tipo de crítica frequentemente direcionada a autores weird como H.P. Lovecraft, Arthur Machen, Algernon Blackwood, M.R. James e Thomas Ligotti, mas o que aparentemente escapa aos críticos é que, neste gênero narrativo, os efeitos rebuscados de linguagem são essenciais para criar um tipo específico de horror estético, que é exatamente o que Perkins faz com tanta destreza. Mas é justamente no campo do roteiro - sem sombra de dúvidas o aspecto mais criticado de Longlegs - que Perkins consegue unir a sua sensibilidade weird com a temática satanista em si.
II.
Recentemente o crítico cultural Ted Gioia publicou um ensaio onde ele explora a estética das tragédias gregas no nosso mundo contemporâneo - especificamente, como dramaturgos gregos da Antiguidade, como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes estruturavam suas narrativas de modo a provocar certas reações emocionais e intelectuais nos seus espectadores. Segundo Gioia, tais narrativas são estruturadas como charadas, mistérios insolúveis. São tramas abertas, projetadas para levantarem discussões. Elas perturbam o público deliberadamente, forçando-os a questionarem questões essenciais como a natureza da justiça, a ética, o livre-arbítrio e mesmo sexualidade. Dito de outra forma: tais histórias possuem eventos narrativos lógicos, que obedecem a estruturação clássica de organizar o drama segundo um jogo de ação e reação, um encadeamento de causa e efeito, e personagens consistentes e reconhecíveis. Nós conseguimos acompanhar facilmente o que está acontecendo, mas nós não conseguimos entender o sentido por trás desses elementos narrativos.
Como Gioia nota, tal tipo de narrativa é ainda mais perturbadora para nós hoje em dia do que era nos tempos de Platão e Aristoteles. Ele usa o exemplo do famoso final do seriado The Sopranos (1999-2007). Nele, não sabemos o que ocorre com Tony Soprano (James Gandolfini). Parte do público até hoje cobra David Chase, o criador da série, por um final definitivo. A trama acabe bem (final feliz) ou mal (final triste) para Tony? Mas a indefinição é exatamente o ponto. Não interessa o que ocorre com Tony, pois Chase passou as últimas seis temporadas explorando exatamente o sentido da vida de Tony, sua busca existencial e como os diversos mafiosos que o cercam terminam suas vidas (doentes, presos, assassinados, exilados como fugitivos etc). As tragédias gregas nos lembram constantemente que a vida é curta, muitas vezes sem sentido, violenta e que o mundo vai continuar mesmo depois que nós morrermos, e que talvez sequer seremos lembrados. No nosso tempo, tal tipo de narrativa é inviável pela brutalidade contundente da tragédia, e isso se dá em grande parte porque tais narrativas, por mais fechadas e lineares que sejam, ainda assim se recusam terminantemente a providenciar respostas ou explicações.
E esse é um dos pontos que me chamou a atenção no ensaio de Gioia: nós vivemos em uma era absolutamente obcecada por explicações. Nessa Era do Conteúdo, nada pode passar incólume. Assim, num filme do Batman, não é só ele que precisa ter uma origem; o Batmóvel e seu traje também precisam. Num filme sobre o Han Solo, temos a origem do seu sobrenome, a origem por trás do apelido de Chewbacca (“Chewie”), e sequências inteiras que ilustram trechos descartáveis de diálogos dos filmes antigos. Com a mania de multiversos, chegamos ao ponto em que os próprios universos ficcionais precisam ser explicados. A proliferação de narrativas seriadas extrapolou isso ainda mais. Em 1990, tivemos o filme Acima de Qualquer Suspeita (Presumed Innocent, 1990, de Alan J. Pakula), que adapta o romance de Scott Turow em duas horas; em 2024, temos uma série de oito episódios que dura um total aproximado de oito horas para contar a mesma história (nem isso, visto que ela não concluiu ainda - precisamos da segunda temporada). O mesmo ocorreu com Gêmeos: Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988, de David Cronenberg), que em 2023 virou uma minissérie. Mas não são só as narrativas que estão infladas e dependentes de explicações e esclarecimentos. O espectador também exige que os criadores deixem suas intenções muito claras com cada filme, série, livro e música que produzem. Ambiguidade, ambivalência e provocações perturbadoras são verbotten.
Com isso não quero dizer que só produzimos coisas ruins. De forma alguma, muito desses filmes e séries são excelentes. Mas é inegável a percepção dessas características em tantas obras contemporâneas. É por isso que Longlegs parece ter perturbado tantos espectadores, pois ele positivamente se recusa a fornecer explicações. Com uma astúcia satânica, Oz Perkins deliberadamente subverte os próprios pilares narrativos que sustentam seu filme, e confunde nossas percepções. A familiaridade que ele busca na primeira metade do seu filme nada mais é do que misdirection, um trompe l’oeil deliberado que nos leva a becos sem saída.
Em seu livro Narration in the Fiction Film, o crítico e teórico David Bordwell empreende aquele que provavelmente é o melhor estudo já feito sobre a natureza da narrativa cinematográfica. Partindo da história da arte e dos trabalhos de Erwin Panofsky, Roman Jakobson e Tzvetan Todorov, Bordwell analisa os modos narrativos desenvolvidos em Hollywood (com suas variantes européias, como cinema francês e alemão, tanto na fase muda quanto sonora), o dito cinema de arte (os filmes de Fellini, Bertolucci, Resnais), o cinema soviético, a desconstrução godardiana e a narração paramétrica (o dito cinema transcendental de Ozu, Bresson e Dreyer). O método comparativo de Bordwell, apesar de altamente complexo, é de clareza cristalina. Mas o que une todos esses diferentes modos de narrar é a concepção básica por trás de toda narrativa: como passar informações ao espectador.
Um cineasta manipula tempo e espaço, além de eventos, para contar sua história. Quem são os protagonistas e antagonistas? Onde a história se passa? Quanto tempo leva para ela concluir? Para explicitar como isso se dá particularmente na linguagem cinematográfica, Bordwell dedica um capítulo de seu livro exclusivamente ao cinema policial, em especial o filme investigativo. Partindo de clássicos como Janela Indiscreta (Rear Window, 1954, de Alfred Hitchcock) e O Último dos Valentões (Farewell My Lovely, 1975, de Dick Richards, sendo este uma adaptação de Raymond Chandler), Bordwell compreende que o cinema noir investigativo encapsula perfeitamente a maneira particular com que filmes controlam o fluxo de informações ao espectador. A principal maneira como eles fazem isso é posicionado o espectador no ponto de vista do investigador protagonista.
Quando um filme desses começa, o detetive é colocado no caso por uma via externa. Alguma personagem o convoca para o caso, e dá uma ideia de onde ele deve começar sua investigação. O detetive começa a seguir provas, evidências, entrevistando testemunhas e suspeitos. Cada cena um pedaço de informação é alimentado ao espectador, que começa a formar uma ideia de como o caso se dá, e começa a construir hipóteses de como solucioná-lo. No meio do caminho, o diretor dá pistas falsas, conduz o investigador a becos sem saída e apresenta outras dificuldades (uma femme fatale pode traí-lo, uma testemunha pode levá-lo ao erro), mas eventualmente o detetive/espectador chega à resolução do caso.
No meio disso, entendemos quem são os antagonistas, quais são as suas motivações para cometerem o crime, e como o investigador protagonista é a única pessoa que pode solucioná-lo. No caso, um detetive particular hard boiled é aquele tipo de personagem que opera nas margens e nas frestas dos casos, com acesso a diferentes camadas e extratos da sociedade. Não é um tira uniformizado, mas também não é um marginal fora da lei. O fotógrafo L.B. Jeffries (James Stewart) é um bom exemplo disso, em Janela Indiscreta.
Mas podemos olhar para o próprio O silêncio dos inocentes para entendermos isso. Há um caso: Buffalo Bill está matando mulheres. Ele acabou de sequestrar a filha de uma senadora, e vai matá-la em X dias. O suspense está instaurado, é uma corrida contra o tempo. A novata Clarice Starling é convocada pelo seu superior, Jack Crawford (Scott Glenn) para entrevistar Hannibal Lecter. Lecter pode ajudar Clarice a solucionar o caso, conquanto que ela participe de seus jogos psicológicos potencialmente destrutivos. Solucionar o caso (conflito externo) é uma maneira de Starling solucionar os seus próprios traumas de infância (conflito interno). A jornada de Clarice, assim, é uma trama de educação, onde ela é guiada por dois “pais”, Crawford e Lecter. O confronto final é um embate em um labirinto, onde ela derrota o Minotauro - uma figura masculina ambígua e ambivalente, parte monstro, parte vítima, parte homem, parte mulher (e ele mesmo um espelho invertido de Clarice). As motivações são claras, a trama, idem.
Se7en segue uma estrutura semelhante, assim como todos os filmes policiais investigativos. A diferença é que o filme de Fincher é estruturado como uma armadilha. Cada pista fornecida esclarece o caso, mas não elucida o assassino. Quem é John Doe (Kevin Spacey)? Não sabemos. Além disso, ele controla todos os rumos da investigação, porque o seu objetivo final é punitivo. Ele destrói a si mesmo pelos seus crimes, ao mesmo tempo em que destrói o investigador, Mills (Brad Pitt).
Zodíaco também percorre uma linha semelhante, mas ele é mais abstrato. A busca de Robert Graysmith (Jake Gylenhaal) não é a busca meramente pelo desmascaramento do serial killer, mas sim uma busca de sentido. Cada pista leva ele não à resolução do caso, mas sim à ideia de que ele precisa se conformar com o fato de que não há qualquer resolução possível. E mais: qual é o sentido dos crimes do Zodíaco? Buffalo Bill e John Doe sabem exatamente por que estão matando aquelas pessoas daquele jeito específico. Seus objetivos, ainda que completamente insanos e irracionais para nós fazem sentido para eles. Mas e o Zodíaco? Não sabemos. Jamais saberemos.
Oz Perkins parece ter todos esses filmes e conceitos em sua mente ao estrutura Longlegs. Mas o elemento satanista é interessante, por que ele literalmente vira toda essa estrutura de cabeça para baixo. O que é apropriada em uma narrativa controlada e regida por Satã, o Adversário. Satanismo, afinal, é inversão. O exemplo mais óbvio disso são os créditos finais serem invertidos. Até pode ser visto como uma piadinha, mas é também uma pista que Perkins nos dá para nos dizer como o filme deve ser assistido.
Talvez aqui valha um alerta de gatilho: Espectadores que gostam de narrativas que seguem as regrinhas de manuais de storytelling e roteiro, ou aulinhas de workshops de escrita criativa certamente não vão gostar de Longlegs. Tal como a possuída Reagan e seu crucifixo em O Exorcista, Oz Perkins alegremente viola as “regras” narrativas que tanto nos confortam. Abandon all hope, ye who enter here.
III.
Como mencionei anteriormente, podemos dividir Longlegs em dois blocos (o filme em si é separado por capítulos, ou partes): na primeira, temos a investigação; na segunda, o horror sobrenatural. O que separa ambas as partes é a aparição de Longlegs em si. Interpretado por Nicolas Cage e com uma aparência monstruosa e bizarra, Perkins o revela para nós assim como Demme nos revelou Buffalo Bill. Nós sabemos quem ele é, e sua identidade, ainda que Lee (e Clarice) ainda não saibam. Clássica construção de suspense, certo? A questão é que Perkins o tempo todo subverte esses conceitos com anticlímaxes. Ele basicamente se entrega para a polícia, e depois se mata na frente de Lee, na sala de interrogatório (não muito diferente de John Doe).
Mas há diversas outras coisas na própria investigação. Lee mergulha nas evidências, pistas e códigos deixados por Longlegs. Mas, depois que os decifra, os textos não revelam nada. Longlegs é um satanista, sim, e quando é preso, carrega duas malas recheadas de cadernos e anotações satânicas. Tais textos não significam nada, e são inclusive usados no filme como forma de alívio cômico (o cinema estava relativamente cheio, e praticamente todos deram risadas neste momento).
O filme é estranho, deliberadamente desconjuntado. Os personagens são clichês, mas eles começam a operar de maneira estranha, errática. Isso fica muito evidente no final, quando Carter e sua família caem sobre a influência do Diabo, mas mesmo antes disso, já percebemos que algo não está certo. Ruth, a testemunha Carrie Ann Camera (Kiernan Shipka) e mesmo as famílias assassinadas parecem ter degenerado em uma espiral de violência autodestrutiva. Os crimes ocorrem porque uma mulher, disfarçada de freira e a serviço de Satã, leva bonecas possuídas como presentes para as garotinhas. As bonecas são fac-símiles das próprias meninas, e que ficam firmemente estabelecidas no “vale da estranheza”. São como robôs, ou inteligência artificial, e geram desconforto exatamente por isso. É uma inversão do próprio sentido de humano, e o “cérebro” das bonecas é uma bola metálica que emite uma sintonia estranha.
Seguindo nessa linha, do mesmo jeito que Clarice tinha dois “pais” em O silêncio dos inocentes, Lee também tem, no caso, Longlegs e Carter. Mas um deles é o preposto do antagonista, e outro é incompetente. Mas e Lee? Talvez ela não seja tão competente assim. Seu talento investigativo não é um dom, ou habilidade sobrenatural, mas sim a influência do demônio que a segue, e que está preso a ela por conta de um pacto que foi firmado entre sua mãe e Longlegs. Há um elemento trágico na trajetória de Lee, não muito diferente da que vemos em personagens das peças da Antigüidade grega. É como se todas aquelas peças que compõem uma narrativa, que comentei anteriormente, não se juntassem completamente. A própria estética do filme revela o estranhamento, o bizarro, que existe em espaços familiares e cotidianos. O fato de termos aniquiladores de famílias já revela o elemento unheimlich, desfamiliar, que existe no âmago do filme. Perkins também pega elementos familiares e cotidianos de personagens, narrativas e conceitos , e os distorce, e mesmo inviabiliza. Ou seja: ele inverte a estrutura narrativa.
A maior subversão de todas é justamente a de sentido. Longlegs sem dúvidas segue os pressupostos narrativos do design clássico (na terminologia de Robert McKee, célebre dos manuais de roteiro e storytelling): protagonista ativo, que se guia pelo seu desejo, enfrentando forças do antagonismo, em conflito externo, dentro de uma realidade consistente e em tempo linear. Os eventos narrativos são conectados por uma relação de causa e consequência, e nos levam a um final fechado com mudanças absolutas e irreversíveis. Há um sentido dramático, e há um sentido temático. Qual é o sentido de Longlegs? Qual é o objetivo dos crimes satânicos? Por que assassinar famílias? Qual é o propósito de Lee? Ora, a inversão. O Adversário do próprio sentido. Longlegs não tem sentido, ele é a sua ausência, o seu vazio. A grande sacada de Perkins é que ele coloca isso não em diálogos, mas sim na própria forma do filme, em sua própria estética. Primeiro ele gera desconforto e perturbação, subvertendo gradualmente os elementos familiares que compõe o gênero narrativo, e depois, e ele inverte completamente o sentido de uma história.
O filme parece possuir um código oculto, que não é acessível a nós. A ideia recorrente do número seis, com crimes acontecendo seis dias antes ou depois do aniversário de nove anos (um seis invertido) das garotinhas. São sempre três pessoas mortas (um múltiplo de seis), e as datas formam um triângulo invertido (de novo, três lados). Como Lee bem nota, Longlegs criou um algoritmo. É algo que aponta para um código ou ritual secreto, do qual os assassinatos fazem parte, mas que não podemos compreender como um todo. Essa ideia de ritual se reforça quando Lee, ao final, usa o carro de Longlegs para se dirigir até a casa da família Carter, na tentativa desesperada de impedir uma chacina. Ela chega tarde, e termina matando Carter (após esse matar sua esposa) e sua mãe, mas não consegue destruir a boneca e quebrar a influência do demônio. Ou seja, ela desempenha o papel de sua mãe (e Longlegs antes dela), cumprindo um ritual ordenado. Esse texto sombra oculta seu verdadeiro significado de nós.
Acho que um dos grandes méritos de Longlegs é o de tratar de seu tema - o seu conteúdo - diretamente na forma, e fazê-lo com sucesso. Em linhas gerais, é a marca de qualquer grande história que se conta, mas em tempos de conteudização de todas as esferas da cultura, é sem sombra de dúvidas um de seus grandes méritos. Uma das imagens recorrentes de Longlegs, para além da ideia de “família” e seus correlatos (como “familiaridade”), temos imagens recorrentes de pessoas convidando o Mal para entrar em casa. Parece que pessoas sempre estão cruzando soleiras de portas para serem mortas (uma das cenas iniciais do filme), convidando estranhos para dentro de casa, ou parentes possuídos por forças estranhas. Essa imagem recorrente perturba o nosso senso de conforto, e provoca paranóia, afinal, quem exatamente estamos chamando para dentro de casa? E o que é aquela tecnologia estranha, misteriosa, vazia e aparentemente indecifrável que Longlegs colocou como os cérebros das bonecas?
Não é à toa que o filme, apesar de seu extraordinário sucesso comercial (faturando quase cem milhões de dólares nos Estados Unidos, tendo custado menos de dez), tenha polarizado o público. É exatamente o que aconteceu com outro filme midbudget, lançado este ano, e distribuído por uma independente de butique, Guerra Civil, que já comentamos anteriormente. Em tempos de algoritmos infernais e inteligência artificial, os filmes de Perkins e Garland parecem até ser antiquados: histórias redondas, contadas de maneira inteligente e única, e custando o que devem custar. Ou seja, nesses tempos invertidos em que vivemos, Longlegs - e Guerra Civil antes dele - são filmes de verdade, e devem ser celebrados por isso.
Congratulations, bloody Good comments and a astonishing knowledge about movie's stuff! I enjoyed it! Thanks a lot.
Incrível, Luís